quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Mortos e mortes



1) Como de hábito, Sciascia foca sua atenção nos momentos em que os extremos quase se tocam, momentos em que a traição quase toca o heroísmo, momentos em que a falta de consideração pela vida quase toca o sacrifício abnegado em direção ao outro. Em I pugnalatori, há uma passagem na qual Sciascia fala das "mudanças de regime" e de como, nessas situações, os "confidentes" da polícia se multiplicam: a polícia arrisca "não entender mais nada", pois existem "os velhos que querem construir méritos novos", "os novos que querem suplantar os velhos" e também os "diletantes", que se adaptam aos ventos na medida em que sopram (p. 24).

2) "As aparências enganam" é, frequentemente, a fórmula que condensa o procedimento de Sciascia - algo que ele constrói a partir de elementos multifacetados como a "carta roubada" de Poe, a "crônica italiana" de Stendhal e os "jogos de espelhos" de Pirandello (como em Enrico IV, o louco fingidor que decide fingir a loucura definitivamente). Isso aparece também no modo como Sciascia lê os textos: em I pugnalatori, comentando um escrito do procurador Giacosa, Sciascia ressalta o uso de um advérbio, "inexplicavelmente", um "advérbio que normalmente se utiliza quando existe uma claríssima explicação" (o seu relatório some, e não havia cópia - é precisamente esse desaparecimento que é "inexplicável" (p. 64)).

3) O evento que dá o ponto de partida a I pugnalatori, de resto, multiplica o elemento que frequentemente está no centro das preocupações de Sciascia: o crime, a morte. Ao contrário dos livros sobre Raymond Roussel e Aldo Moro, por exemplo, fixados em um único cadáver, a história dos "apunhaladores" conta com potenciais 13 vítimas, que duplicam quando os culpados são executados (menos o delator do grupo, que é condenado à prisão perpétua). Em Sciascia, a morte é combinada frequentemente à mise-en-scène do tribunal: em 1912+1, Maria Tiepolo mata Quintilio Polimanti, Sciascia analisa a imprensa e o processo; Portas abertas, Palermo, 1937: um homem mata três pessoas, o regime fascista quer a pena de morte, o juiz responsável pelo processo, no entanto, é contrário.

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