quinta-feira, 30 de abril de 2020

O bastardo


Vincere, de Marco Bellocchio: a mulher, a razão e a loucura; a descrição da infelicidade, a resistência e a capacidade/coragem de dizer a verdade; uma contranarrativa patográfica que escova a história do fascismo a contrapelo.

Outro detalhe que indica como a "desrazão" de Ida Dalser confronta a "razão" de Mussolini e do fascismo é a menção a Napoleão logo no início do filme: Ida escuta um discurso de Mussolini no qual ele cita o Imperador; horas depois, sozinhos, ela resgata o nome de Napoleão para compará-lo ao futuro Duce; ele diz que não, será ainda maior que Napoleão. A figura de Napoleão, afinal de contas, é uma das mais efetivas metonímias da loucura: identificar-se com Napoleão é a ponta do iceberg que esconde um subterrâneo carregado de megalomania, paranoia e delírio.

Mais do que isso: Bellocchio une a questão da loucura com a questão da bastardia - o filho de Ida Dalser e Mussolini recebe o nome de Benito Albino Mussolini; quando adulto, Bellocchio mostra o filho bastardo em uma cena de imitação do pai, do líder, do Duce e, pouco adiante, mostra o filho-imitador no manicômio, onde morre em 1942 (Mussolini que imita Napoleão, o filho bastardo de Mussolini que, em sua loucura, imita a figura do líder, assim incorporando em sua patografia as duas derivas, da loucura e da bastardia).


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"Assim como o surgimento de Dom Quixote e Robinson no campo da literatura ocidental está em relação direta com uma situação histórica definida - para o primeiro, as aberrações sociais e espirituais causadas por uma ordem teocrática retrógrada; para o segundo, a revolução burguesa de Cromwell e as perspectivas por ela abertas ao sonho individual -, também a trajetória do Bastardo no século da História do romance é propriamente inconcebível sem a escalada de Napoleão. O aventureiro sem nascimento nem fortuna, que, num piscar de olhos, coroa-se a si próprio, instala seus irmãos em todos os tronos da Europa por ele desapropriados e forja-se um império em uma recentíssima república de que é incipiente cidadão, pertence ao romance por todas as fibras de sua personalidade: Napoleão é romance de ponta a ponta, um romance que se faz à medida que influencia os acontecimentos da história. É o Bastardo encarnado, o renegado perfeito que deixa o mundo em polvorosa ao realizar sem escrúpulos nem remorsos o que seus semelhantes mal ousam sonhar. Torna-se então, para o Bastardo contemporâneo, o inspirador, o mestre, o ídolo que não esmaga, mas soergue seus fiéis; e, para o romance moderno, o gênio libertador cuja ação mesma, no limiar entre a ação e o sonho, recua como nunca antes os limites da imaginação."

Marthe Robert. Romance das origens, origens do romance. Tradução de André Telles. Cosac Naify, 2007, p. 179.

domingo, 26 de abril de 2020

Dizer a verdade

É preciso fixar essa imagem de Ida Dalser dentro de um carro que a leva de novo ao manicômio: "O Duce tem sempre razão", é o que diz o muro, ao contrário - acompanhamos com o movimento do carro a frase andando ao contrário, a contrapelo (para dizer com Walter Benjamin), e a história que Bellocchio conta de Ida Dalser é justamente a exposição desse "ter sempre razão" (escovar a história a contrapelo é justamente o que faz Bellocchio no confronto da história oficial de Mussolini com a história lateral de Ida, e sua trajetória dentro do carro é a representação visual desse procedimento).

A história de Ida Dalser mostra que tal razão é falha, fictícia - a "razão" que está no muro é falha, porque o fascismo é tudo menos "racional"; do mesmo modo, é a "razão" de Ida que está em jogo - não há nada de "loucura" em sua trajetória, sua desrazão opera naquele campo da parresía de que fala Foucault em seus seminários (ou seja, a capacidade/coragem de dizer a verdade diante do poder, tema que Foucault apresenta de 1982 a 1984 em dois de seus seminários - Governo de si e dos outros - no Collège de France). Das muitas cenas possíveis - na perspectiva da parresía - a decisiva é aquela na qual Ida Dalser está diante da junta médica e, sem qualquer traço de hesitação ou desorientação, mais uma vez diz a verdade.

Além disso, a imagem de Ida Dalser olhando para quem a olha - olhando em direção à câmera, rompendo o pressuposto da observação desinteressada, "apolítica" e "neutra", nos termos expostos por Didi-Huberman em O que vemos, o que nos olha - mostra que ela também está de fora da "razão" cinematográfica, rompendo as regras tradicionais da quarta parede e da representação (sua trajetória dentro do carro, expondo a frase do Duce ao contrário, é também cinematográfica, como quem enrola de volta o filme da história para montá-lo e apresentá-lo de forma diversa - um gesto absolutamente deliberado da parte de Bellocchio, que preenche vários espaços da narrativa não só com imagens de arquivo de Mussolini e dos fascistas, mas também de outros filmes, como na cena em que, dentro do manicômio, Ida assiste a um filme de Chaplin e, nele, a apresentação intensificada do roubo de seu próprio filho). 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Descrição da infelicidade


Em seu livro de ensaios intitulado A descrição da infelicidade, ou seja, Die Beschreibung des Unglücks, W. G. Sebald escreve, logo no prefácio, que "é certo que autores como Grillparzer, Stifter, Hofmannsthal, Kafka e Bernhard consideram o progresso uma aposta perdida [den Fortschritt für ein Verlustgeschäft]". No entanto, continua ele, a melancolia decorrente dessa situação, "a reflexão sobre a infelicidade consumada", nada tem a ver com o "vulgar desejo de morte; é uma forma de resistência [eine Form des Widerstands]". 

Adiante, no ensaio sobre Elias Canetti, Sebald se aproxima da escritura desse autor que admirava tanto a partir da categoria de "patografia", escrita do pathos, do sofrimento, do excesso e da loucura (uma patografia, de resto, que oscila entre a apreensão da loucura alheia e o desenvolvimento de um método de representação que possa dar conta do excesso e, na medida do possível, absorvê-lo). É da ordem da patografia não só as memórias do juiz Schreber, analisadas por Canetti (e por Freud, Lacan, Deleuze e tantos outros), mas também o método de trabalho desenvolvido por Canetti para sua própria obra, especialmente Massa e poder.


Melancolia, infelicidade, narração, resistência: embora não seja central em todos os casos analisados por Sebald, a opressão política é recorrente como fio de ligação entre os termos. A narrativa armada por Marco Bellocchio ao redor do fascismo italiano (no filme Vincere, de 2009) é exemplar dessa perspectiva sebaldiana: são duas patografias apresentadas, a de Ida Dalser e de seu filho com Mussolini, Benito Albino Mussolini. Ambos são deslocados do diapasão racional tradicional pelo regime fascista e mantidos presos - a trajetória de Ida é uma constante grafia de seu pathos, de sua infelicidade, tornando-se, por conta disso, resistência (ela escreve cartas sem parar, ao Papa, ao Rei, ao Duce (até uma mensagem em uma garrafa ela manda) - em sua última cena ela parte em um carro, depois de ser exaltada por uma multidão; ela olha para quem a olha, olha diretamente para a câmera; é possível observar uma frase escrita no muro do lado de fora - Il Duce ha sempre ragione, o Duce sempre tem razão -, mas uma frase que corre de trás para frente, cacofônica, absurda).

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Waterloo

Henry Shrapnel, 1761-1842
"O escritor representa a verdade, a verdadeira literatura se distinguindo da falsa apenas pelo inefável senso da verdade. Todavia, é preciso dizer que o escritor não é, por conta disso, filósofo ou historiador, mas alguém que colhe intuitivamente a verdade. No que me diz respeito, descubro na literatura aquilo que não consigo descobrir nos analistas mais elucubrantes, que gostariam de fornecer explicações exaustivas e soluções a todos os problemas.

Sim, a história mente e as suas mentiras envolvem com uma mesma poeira todas as teorias que nascem da própria história. Paul Valéry, falando da história, uma vez disse algo do tipo: 'Vi uma carta do general inglês Shrappnel [sic], escrita cinco dias depois da batalha de Waterloo; afirma que foram os novos projéteis inventados por ele que venceram a batalha'. Pois bem, o nome de Shrappnel nós ouvimos somente depois da Primeira Guerra Mundial. Chamavam de 'shrappnel' os projéteis que explodiam a certa altura lançando uma nuvem de detritos, mas nunca ninguém havia mencionado seu uso na batalha de Waterloo.

O próprio Valéry parece ignorar, mas o seu entrevistador, o siciliano-francês Lo Duca, observa que o uso do shrappnel na batalha de Waterloo foi descrito por Stendhal. Quando Fabrizio vê no terreno a lama espirrando à altura de alguns palmos, sem saber Stendhal estava descrevendo não o efeito de uma fuzilaria mas aquele dos projéteis do general Shrappnel.

É assim que se descobre uma verdade histórica, não em um texto de história, mas nas páginas de um romance, não em uma análise erudita, mas graças a uma descrição romanceada. Stendhal provavelmente não se deu conta de estar fazendo uma revelação fundamental descrevendo a batalha de Waterloo, e ainda assim disse algo que ninguém antes dele havia dito."

(Leonardo Sciascia, La Sicilia come metafora (entrevista com Marcelle Padovani), Mondadori, 1979, p. 81-82)

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A dúvida

A dúvida como instrumento de investigação: essa poderia ser uma definição inicial da poética de Leonardo Sciascia, ao mesmo tempo um iluminista e um tradicionalista, ao mesmo tempo um europeu (um erudito interessado no atravessamento das fronteiras) e um siciliano (interessado nas minúcias e nos detalhes da irredutível experiência regional). Três figuras parecem se mesclar em Sciascia, no que diz respeito à dúvida como instrumento de investigação: o detetive que pergunta, escuta e observa; o erudito que viaja e que vasculha arquivos; o morador da cidade pequena sentado na praça (no bar, na varanda, na janela) que observa a vida social.

A dúvida leva Sciascia a rever, por exemplo, as histórias do físico Majorana (assassinado? suicida? fugitivo por conta do assombro moral diante do resultado das pesquisas atômicas?) e do escritor Raymond Roussel (que se suicida em 1933 em Palermo). Sciascia revisita a crônica jornalística dos dois casos em busca de detalhes perdidos, perspectivas deixadas de lado na pressa. Ao mesmo tempo, carrega consigo um conjunto de procedimentos retirados de seus autores prediletos, que relia constantemente (a curiosidade de Montaigne, a capacidade de observação de Stendhal, o jogo de espelhos de Pirandello).

No final de 1912+1, por exemplo (a novela que conta a história do julgamento da condessa Tiepolo, que matou o ordenança do marido militar por supostos motivos de honra), Sciascia declara abertamente aquilo que guiou o relato desde o início: ser uma homenagem a Pirandello. “Tudo era pirandelliano no caso Tiepolo”, anuncia ele, “as várias verdades, o jogo do parecer contra o ser” (algo que se aplica a um relato de Sciascia de alguns anos antes, Il teatro della memoria, lançado em 1981, sobre o caso Bruneri-Canella - o retorno de um homem que teria desaparecido durante a I Guerra Mundial (de resto, algo muito próximo do caso Martin Guerre e do caso do coronel Chabert, de Balzac, tão extensamente utilizado por Javier Marías em Os enamoramentos)).  

quinta-feira, 16 de abril de 2020

O discurso e seus outros

Hans Bellmer
"Todos os motivos para reconhecer algo como obra de arte são parciais, mas sua retórica geral é, inequivocamente, europeia. Essa retórica, como bem sabemos, era aplicada repetidamente à área do humano também. De Flaubert, Baudelaire e Dostoiévski, passando por Kierkegaard e Nietzsche, Bataille, Foucault e Deleuze, o pensamento europeu reconheceu como uma manifestação do humano muito do que, anteriormente, era considerado mau, cruel e desumano.

Assim como no caso da arte, esses autores e vários outros aceitaram como humano não somente aquilo que se revela humano, mas também aquilo que se revela desumano - e exatamente porque se revela desumano. A questão, para eles, não era incorporar, integrar ou assimilar o estrangeiro dentro do próprio mundo, mas, ao contrário, entrar no estrangeiro e tornar-se conforme a sua própria tradição. Em minha opinião, não é necessário demonstrar aqui que esses autores, assim como incontáveis outros na tradição europeia, não podem ser facilmente integrados no discurso dos direitos humanos e da democracia. 
Rudolf Schwarzkogler
No entanto, esses autores pertencem, por esse motivo, à tradição europeia, porque manifestam uma solidariedade interna com o outro, com o forasteiro, até mesmo com o ameaçador e cruel, que está muito mais fundo e nos leva mais além que um simples conceito de tolerância. A obra de todos esses autores é uma tentativa de diagnosticar, no interior da cultura europeia, as forças, os impulsos e as formas de desejo que são, em terras estrangeiras, territorializadas. Assim, esses autores mostraram que a característica verdadeiramente única das culturas europeias consiste em tornar alguém permanentemente estrangeiro ao anular, abandonar e negar esse alguém - e fazê-lo de forma mais radical que qualquer cultura que conhecemos jamais conseguiu fazer. De fato, a história da Europa é nada além da história de rupturas culturais, uma constante rejeição às tradições de alguns."

(Boris Groys, "A Europa e seus outros", Arte Poder, trad. Virgínia Starling, UFMG, 2015, p. 220-221)

terça-feira, 14 de abril de 2020

Brecht / Said

"Meus cinco anos (1958-1963) como estudante de pós-graduação em literatura em Harvard foram uma continuação intelectual de Princeton, no que dizia respeito à instrução formal. A história convencional e um pálido formalismo regiam a faculdade de literatura, de tal modo que para preencher os requisitos para minha titulação não havia possibilidade alguma de fazer algo que não fosse a progressão de um período literário a outro até chegar ao século XX. Como o Oriente Médio se distanciava mais e mais da minha consciência, o eventos mais significativos para mim eram coisas como a Nova ciência, de Vico, História e consciência de classe, de Lukács, Sartre, Heidegger, Merleau-Ponty"

(Edward Said, Fora do lugar: memórias, trad. José Geraldo Couto, Cia das Letras, 2004, p. 421)

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"18. 1. 42

Wiesengrund-Adorno aqui. Engordou, arredondou-se, e traz um artigo sobre Richard Wagner, não desinteressante mas limitado a cavoucar, ao modo de Lukács, Bloch, Stern, à procura de complexos, inibições, repressões na consciência do velho fabricante de mitos. Todos eles estão apenas reprimindo uma antiga forma de psicanálise"

(Bertolt Brecht, Diário de trabalho: volume II, 1941-1947, trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo, Rocco, 2005, p. 50)

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A escrita memorialística / autobiográfica / diarística por vezes oferece a performance do visionário: alguém que se comporta de modo distinto da manada, divergente com relação às modas e modismos, formando e defendendo sua independência por vezes de forma intuitiva, quase inconsciente. Parece quase uma exigência do gênero: nesse espaço de exceção e diferença, devo estar à altura da tarefa de registrar aquilo que escapa ao ordinário, e devo começar pela minha própria posição diante do mundo. Mesmo matriculado em curso de histórica excelência, o que Said decide salientar é a fixidez do currículo ("história convencional e um pálido formalismo") e a paulatina construção de sua independência, a partir de leituras fora do programa (Vico, Lukács, Heidegger, etc). Brecht, por sua vez, diante do contemporâneo Adorno (cinco anos mais jovem), resolve em poucas palavras o amplo pano de fundo (Wagner, Wagner-via-Nietzsche, o resgate de Wagner em pleno nazismo, etc) que decide a limitação dos argumentos de seu artigo ("reprimindo uma antiga forma de psicanálise").  

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A pirâmide


É formidável (e instrutivo) em sua simplicidade o exercício de comparação que faz Sloterdijk em seu livrinho Derrida, o egípcio (em homenagem ao filósofo falecido pouco tempo antes). Cada breve capítulo apresenta - em linhas gerais e, ao mesmo tempo, a partir de pontos específicos - o confronto de Derrida com algum outro autor: Hegel, Freud, Thomas Mann, Boris Groys, Luhmann, Franz Borkenau e Régis Debray (diante de um grupo tão heterogêneo, fica claro que o que importa não é a coerência dos nomes e sim o exercício de relação). 

O exercício de Sloterdijk é ambivalente: pouco se "aprende" sobre Derrida ou sobre os autores citados; pouco se "aprende", de resto, sobre o próprio pensamento de Sloterdijk - mais uma vez, isso deixa claro a importância do exercício de relação, trata-se da exposição de um método de trabalho (mas é evidente que diante da mecânica do método muito se aproveita daquilo que, semanticamente, se oferece sobre os nomes comentados). É possível notar, contudo, um núcleo hermenêutico no livro: a estrutura que se forma na equação Hegel + Freud + Thomas Mann = Derrida (aí se resolve, aliás, a questão da "pirâmide" e do "ser egípcio").

Sloterdijk opera em dois níveis: lida com o "caráter egípcio" de Derrida a partir da noção de José como intérprete de sonhos (por isso a aproximação com Thomas Mann, via José e seus irmãos) e de Moisés como o estrangeiro que funda o próprio (segundo a hipótese de Freud em Moisés e o monoteísmo); e lida também com a dimensão "semiológica" da pirâmide via Hegel, uma espécie de imagem da relação entre significante e significado, interioridade e exterioridade, forma e conteúdo. Derrida como "egípcio", portanto, é aquele que liga o biográfico ao teórico a partir de uma relação idiossincrática com os textos e a tradição e, também, aquele que investe contra as fundações da "pirâmide" da semiologia hegeliana, que lê os textos enquanto lê a "História" e vice-versa. 

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Um cachorro voador

"A jornada de Dante através do inferno começa numa noite de Sexta-feira Santa e ele emerge do outro lado da terra na manhã do Domingo de Páscoa. Assim, sua jornada se encaixa no ritmo dos três dias da redenção, onde Cristo é enterrado no fim do dia da sexta-feira, desce aos infernos no sábado e ressuscita na manhã de domingo. Da mesma maneira, na primeira seção de The Waste Land, 'O Enterro dos Mortos', afundamos no mundo inferior da 'cidade irreal' [unreal city], as multidões formigando na entrada como os condenados de Dante. Aqui Cristo aparece como a 'sombra de uma pedra numa terra fatigada' [shadow of a rock in a weary land] de Isaías, antes de descermos às trevas abaixo, ou como o possível poder de ressurreição no vale de ossos secos de Ezequiel."

(Northrop Frye, T. S. Eliot, trad. Elide-lela Valarini, Imago, 1998, p. 68).

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Dias atrás, escrevi sobre a relação (possível) entre Simic e Dante, uma relação entre tantas, um modo entre tantos de se apropriar de Dante. Recuperando - um pouco aleatoriamente - essa citação de Frye, é possível observar também como Eliot pode funcionar como um elo de ligação entre Simic e Dante, um ponto intermediário. 

A fenomenologia do tempo envolvida aqui - a partir da citação de Frye -, contudo, é radicalmente diversa daquela de Simic (ao menos da maioria dos poemas de Simic que já tive a oportunidade de ler): em Dante e Eliot a temporalidade humana corriqueira é, ao mesmo tempo, suspensa e alargada "milagrosamente". O inverso paródico desse esgarçamento do tempo está no Quixote de Cervantes, na passagem da gruta de Montesinos, quando o cavaleiro desce em uma jornada de horas e retorna, maravilhado, afirmando que ficou fora por dias. Simic, por outro lado, busca o detalhe irrepetível, a visão cintilante de um momento oferecido pelo acaso:

It made me remember the Germans marching
Past our house in 1944.
The way everybody stood on the sidewalk
Watching them out of the corner of the eye,
The earth trembling, death going by...
A little white dog ran into the street
And got entangled with the soldiers' feet.
A kick made him fly as if he had wings.
That's what I keep seeing!
Night coming down. A dog with wings

(Two dogs, do livro The Book of Gods and Devils

domingo, 5 de abril de 2020

Retábulo

A poesia de Charles Simic é cheia de museus e bibliotecas, estátuas, monumentos, retábulos, afrescos e pinturas de grande proporção. Ele faz referência aos artefatos e aos espaços que abrigam os artefatos. Em um poema como Reading History (do livro A Wedding in Hell), por exemplo, ele escreve:

At times, reading here
In the library,
I'm given a glimpse
Of those condemned to death
Centuries ago

O olhar de Simic está sempre cindido entre esse momento imediato de distração, o "aqui" e "agora" - reading here -, e o passado arcaico, afastado - centuries ago. Esse mundo dividido diz respeito à sensação de que temos cada vez mais conhecimento sobre o concreto e cada vez menos sobre o abstrato (que é pouco "prático", que "não serve para nada"). Simic é um poeta na linha de Dante: sua intenção é obter uma sorte de pedra filosofal que ofereça o conhecimento das coisas do mundo e, ao mesmo tempo, sabe que tem acesso a muito mais "informação" do que Dante, embora esteja certo/seguro/confiante em um número bem mais reduzido de coisas. 

Nessa perspectiva, fica claro que Simic não pode construir um grande retábulo ou alegoria que reconstrua um mundo em sua extensão e essência: ele foca sua energia em elaborar pequenas cenas das quais não é possível demarcar um sentido claro:

Descartes smelled
Witches burning
While he sat thinking
Of a truth so obvious
We keep failing to see it

(do poema Nearest nameless)

*

É possível reconhecer em parte essa angústia diante da "grande alegoria" também no destino de Erich Auerbach, especialmente no que diz respeito ao contexto de elaboração de seu livro Mimesis (que ele escreve a partir de 1942 no exílio na Turquia, onde chegou em 1936, fugindo do nazismo). Apesar da impossibilidade de alcançar o "grande retábulo" da literatura ocidental, ainda assim Auerbach o faz - e essa ambivalência percorre todo o livro (Simic, que começa a escrever quase 40 anos depois, só pode fazer referência a essa impossibilidade, sem poder acessá-la). Auerbach é o primeiro a se incomodar - como afirma no "Epílogo" - com a pretensão de uma grande suma, afirmando que isso só foi aceitável por conta da situação extrema do exílio. 

(de certa forma, é como se Auerbach ainda vivesse sob um registro de mundo no qual o fim não só estava próximo como era bastante provável - diante disso, é possível forçar os próprios critérios e ceder diante da impossibilidade da grande suma - justamente o que ele faz, narcisisticamente a contragosto, com Mimesis. Simic, por sua vez, já vive imerso no tempo amorfo da destruição mútua assegurada da guerra fria, o fim está continuamente dado em um eterno presente - ao contrário do impulso conferido à geração de Auerbach, o fim para a geração de Simic gera uma espécie de letargia irônica. Diante disso, ceder diante da impossibilidade da grande suma se apresenta como um misto de ingenuidade, otimismo e desatenção, três características que parecem profundamente estranhas à poética de Simic)

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Escolha de objeto

A dinâmica afetiva de Berta Isla, o romance de Javier Marías, me fez pensar no livro de Klaus Theweleit, Objektwahl (All you need is love) Über Paarbildungsstrategien / Bruchstück einer Freudbiographie (um livro de 1990 cuja tradução aproximada poderia ser Escolha de objeto - sobre estratégias de formação de casais / Fragmento de uma biografia de Freud). A ideia de "escolha de objeto" vem de Freud e de seu texto sobre o narcisismo (de 1914): Theweleit elabora o conceito psicanalítico a partir de uma pesquisa sua bem mais extensa - seu Livro dos Reis em dois volumes - acerca do uso que homens "criativos" fazem das mulheres que escolhem como "casal" (daí a "estratégia de formação de casais").

O que está em jogo em Berta Isla é precisamente a formação de um casal: Tomás e Berta se conhecem desde crianças e muito cedo tem a consciência compartilhada de que irão casar. O ponto de Theweleit é que alguns homens escolhem mulheres que tem certas habilidades que podem ajudar em suas carreiras (os exemplos são inúmeros: Dostoiévski casando com a estenógrafa Anna Snitkina; Hitchcock casando com a roteirista e montadora Alma Reville). Marías até certo ponto retrata essa dinâmica, mas inverte decisivamente o foco de atenção: não acompanhamos as aventuras do "homem criativo" (Tomás, o marido-espião), e sim a vida restrita do outro lado do casal.

Em seu Objektwahl, é um pouco esse procedimento de inversão que busca Theweleit, ampliando-o em direção ao tema do "amor", o "amor" como estratégia retórica, construção cultural e artefato midiático (como um meio de levar algo de um lugar a outro). Duas curiosas revisões propostas por Theweleit sob essa perspectiva: com o casamento abalado por conta do caso com Hannah Arendt, Heidegger busca melhorar sua situação com a esposa - antissemita convicta e de primeira hora - ao se dedicar à expulsão de judeus das universidades; Freud, por sua vez, com a intenção de agradar a noiva/esposa (Martha Bernays) e melhor se integrar à família, cuidadosamente utiliza elementos dos campos de trabalho de dois tios de Martha (um especialista em Aristóteles - a passagem da katharsis para a psicanálise - e o outro em Goethe e Shakespeare).