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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A cidade natal

"A cidade natal não é torre de igreja e não é praça com fonte, nem comércio florescente ou ofício; a cidade natal é um portão onde tivemos um pensamento pela primeira vez, um banco em que estivemos sentados e não compreendemos alguma coisa, um instante sob a água corrente quando numa vertigem a lembrança nos leva a uma existência antiga; um pedregulho liso lapidado que encontramos na velha gaveta da escrivaninha e com o qual já não sabemos o que pretendíamos; o chapéu do professor de religião pontilhado por uma macha marrom, a ansiedade antes de uma aula de história, certas brincadeiras que ninguém entende e relutamos em explicar, uma mentira com consequências sonhadas durante a vida inteira, um objeto nas mãos de alguém, um som inesquecível que ouvimos de noite pela janela aberta, a luz de um quarto, duas franjas na barra de uma cortina" (Sándor Márai, Rebeldes, trad. Paulo Schiller, Cia das Letras, 2004, p. 56).
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"O mundo não passa de um perene balanço: todas as coisas se movimentam incessantemente, a Terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito; tanto com o movimento geral como com o seu. A própria constância não é outra coisa além de um movimento mais lânguido. Não posso ter certeza de meu objeto: ele segue confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Pego-o neste ponto, como ele é, no instante em que me interesso por ele. Não pinto o ser, pinto a passagem: não a passagem de uma idade à outra, ou como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia em dia, de minuto em minuto. Devo adaptar minha história ao momento" (Montaigne, "Sobre o arrependimento", Os ensaios: uma seleção, trad. Rosa Freire d'Aguiar, Penguin-Companhia, 2010, p. 346). 

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Kertész em Viena

Wittgenstein. Em Viena, nem traço dele. Em compensação, nele - em Wittgenstein - me deparo em toda parte com Viena. A concisão elevada à perversão, o ódio do judeu por si mesmo (no fundo, é a melhor oportunidade de estudar no nível mais nobre, mais elevado, a maneira como surgiu e como funciona o antissemitismo); de um modo geral, a insegurança da autoavaliação, como resultado fatal dos pontapés recebidos do pai e do Estado, de repente, a certa altura do caminho forçado rumo à destruição, se torna fértil e fecunda - o pensamento como tentativa de sobrepor-se, o pensamento como vingança, como o último olhar que o fugitivo lança para trás, cheio de desdém e lucidez.

Mahler - diz ele (Wittgenstein) – era um mau compositor. Enquanto traduzo esta besteira, ponho para tocar a fita da Sexta sinfonia. Diz Thomas Bernhard numa entrevista que – ao contrário de seu sobrinho Paul – Ludwig Wittgenstein era “unmusikalisch”(não tinha ouvido musical). Mas não se trata só disso. “Uma coisa é semear ideias, outra, colhê-las”, vou traduzindo das Vermischte Bemerkunge: ora, Wittgenstein não se dispunha a acolher as ideias de Mahler, na minha opinião, porque Mahler era judeu. É fácil assim entender mal uma obra. Ou: as obras são tão frágeis assim? Não, são muito mais frágeis ainda. Todo entender é um mal-entendido. Podemos dizer então que é o mal-entendido que mantém as obras vivas? Não, isto seria difícil de afirmar.

(Imre Kertész, Eu, um outro, trad. Sandra Nagy, Planeta, 2007, p. 16-17).


Como é o caso de Sándor Márai em Weimar, a situação se repete, e se repetirá enquanto houver literatura: o escritor diante da cidade, visitando e revisitando aquilo que, na cidade, é tanto estranho quanto familiar (o paroxismo dessa situação está na relação de Thomas Bernhard com a Áustria, que Kertész não só cita como conhecia bem). A exposição de Kertész em Eu, um outro - que se inicia nesse trecho citado - se expande e complexifica a partir de três caminhos simultâneos e paralelos: em primeiro lugar, lida com sua relação de húngaro judeu com a língua alemã, que usa em sua atividade profissional pós-Shoah (como tradutor e, nesse caso específico, tradutor de Wittgenstein); em segundo lugar, Kertész continuamente reflete sobre a recente dissolução do universo soviético a partir de 1989, e o livro dá conta de uma série de viagens suas por cidades que ainda vivem em parte sob a sombra do regime soviético; em terceiro lugar, o livro, que se apresenta como um romance autobiográfico, é, em grande medida, um diário disfarçado, um diário que não indica as datas, que não indica diretamente a passagem do tempo no calendário (mas que, ainda assim, funciona na acumulação de registros dos dias, meses e anos que passam).

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Márai em Weimar

Em Weimar eu saía todo dia de manhã para o parque, caminhava até a casa onde Goethe nos dias quentes de verão costumava cochilar, entrava nos aposentos, depois voltava para a casa de Goethe na cidade, ficava no quarto escuro do morto que mesmo então carecia de "mais luz" ou num dos recintos abarrotados com a coleção de minerais, manuscritos, gravuras, estátuas e quadros, visitava o herbário do poeta e me esforçava por compreender alguma coisa. Comportava-me como o detetive amador que, incógnito, busca as pistas de um caso misterioso, além de suas capacidades. 

Acampávamos, muitos, no restaurante Elefante, nós que não tínhamos nada para fazer em Weimar e não tencionávamos alardear nossas explorações ou a literatura de Goethe com nossa simples presença; apenas vivíamos na cidade de Goethe como em férias na casa paterna. Tudo convergia para a memória do gênio. Viam-se no restaurante meias escocesas azuis, velhas resmungonas e emocionadas, um humanista à Settembrini que uma década antes do aparecimento da Montanha mágica, de Thomas Mann, recitou para mim quase literalmente, de noite, na ante-sala do restaurante a lição sobre "a beleza do estilo".

(Sándor Márai, Confissões de um burguês, trad. Paulo Schiller, Cia das Letras, 2006, p. 258-259)

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Em primeiro lugar, essa compulsão de Márai de buscar o "local do gênio", essa necessidade tão compreensível que retraçar os passos e interesses de uma figura artística do passado. Essa atualização dos gestos do passado é, ao mesmo tempo, uma versão da Nachleben de Warburg e da "angústia da influência" de Harold Bloom. Quando Márai fala do quarto que carece de "mais luz", faz referência às últimas palavras ditas por Goethe antes de morrer - Mehr Licht! Essa cena no restaurante Elefante, que faz referência ao romance de Thomas Mann publicado em 1924, evoca o encontro entre Mann e Márai tantos anos depois, que já comentei aqui. De resto, essa relação tão íntima do húngaro com o alemão, relação essa construída por Márai e logo depois também por Imre Kertész (que traduziu para o húngaro Freud, Wittgenstein, Joseph Roth, Canetti, entre outros). 

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Casanova em Bolzano

É curioso que Sebald não tenha dedicado mais do que uma página a Sciascia em Vertigem, pois em 1912+1 Sciascia toca em uma série de temas caros a Sebald - as notícias de jornal, o relato atravessado pelo ensaístico, o crime, as ironias da história, os encontros ao acaso no tempo e no espaço -, além de citar dois outros autores que estão em Vertigem, citados e transformados em personagens por Sebald: Stendhal e Giacomo Casanova (Stendhal está na primeira parte de Vertigem, "Beyleou o amor", e Casanova na segunda, "All'Estero", retomado especialmente por conta de sua fuga da prisão em Veneza - na página 78 de Vertigem, Sebald inclui a imagem de um recorte de jornal: trata-se da notícia de uma peça a ser apresentada no dia seguinte em Bolzano, cujo título é Casanova al castello di Dux - o que nos lembra do romance de Sandor Márai de 1940, Casanova em Bolzano).
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1) Stendhal e Casanova surgem no texto de Sciascia por conta da beleza da condessa Tiepolo - seu sorriso à Monalisa mobilizou não apenas a compaixão da imprensa, mas também a raiva de uma série de mulheres anônimas que enviaram cartas ao tribunal. As cartas defendiam que "a beleza da acusada estimulava os homens a juízos duvidosos, menos implacáveis", escreve Sciascia, e continua: "'O que é a beleza', exclama com atroz estupor Gioacchino Belli: em um soneto onde, dando como exemplo a opção feita entre os gatinhos recém-nascidos em só criar os mais bonitinhos, jogando os demais no lixo, nos mostra, em toda a sua atrocidade, justamente, um fato que de hábito se pratica ou do qual se ouve falar sem espanto, sem horripilação. Mas a beleza... De uma mulher, a beleza, dizia Stendhal, é uma promessa de felicidade: seja ela reservada a nós ou aos outros" (1912+1, trad. Tizziana Giorgini, Rocco, 1987, p. 52). 
2) Na página seguinte, Sciascia comenta o depoimento "do professor Pompeo Molmenti", "senador do Reino" e "estudioso de história veneziana, dando especial atenção à vida libertina da cidade no século XVIII e a seu cidadão mais ilustre nesse sentido", ou seja, Casanova. "Estava publicando justamente naquele ano os Epistolari veneziani del secolo XVIII, volumoso e ainda utilíssimo livro; e dentre outros tantos trabalhos, já em 1910 dera uma primeira mostra dos Carteggi casanoviani". Polimanti, o homem assassinado pela condessa, é ligado sutilmente a Casanova no texto de Sciascia - Polimanti teria retirado dos escritos de Casanova algumas táticas de conquista, escritos esses tornados populares na Itália justamente por conta do trabalho do professor Pompeo Molmenti. É, enfim, a figura do professor Molmenti que permite a Sciascia uma digressão (mais uma) que o afasta da condessa Tiepolo e do julgamento e permite a Sciascia um comentário acerca de suas preferências narrativas:
O professor Molmenti: que é um daqueles personagens do mundo da erudição, da cultura, que sumamente me interessam, me fascinam: personagens que dedicam quase a vida inteira a seguir as pegadas, quase que a perseguir personagens que são deles, de sua vida, de seus entendimentos, exatamente o contrário. E me veio a expressão "seguir as pegadas" pensando naquele que é o exemplo mais considerável: o católico e quase (ou simplesmente) jansenista Pietro Paolo Trompeo, austero, caseiro, de sempre casta locução, que, começando ainda jovem a seguir as pegadas do ateu e libertino Stendhal na Itália romântica, seguiu-o por toda a vida mesmo em outras partes e conjunturas: com um amor e uma sensibilidade que quase diria inigualáveis. E seu primeiro livro intitula-se justamente Nell'Italia romantica sulle orme di Stendhal. (p. 54).
3) Sciascia revela nessa passagem sua preferência por "personagens" do "mundo da erudição" que perseguem outros "personagens" que são seus opostos. Sebald e Sciascia se aproximam por via dessa predileção por figuras esquecidas, soterradas na história, que por vezes realizam trabalhos metódicos e silenciosos em seus escritórios, ateliês ou laboratórios. "E me veio a expressão", escreve Sciascia, levando a digressão adiante, em direção ao crítico literário Trompeo, especialista em Stendhal, o que permite a Sciascia, finalmente, amarrar aquela breve menção a Stendhal duas páginas antes. "Seguir as pegadas": não podemos deixar de lembrar do método deambulatório e errático de Sebald e, ainda mais especificamente, sua relação com Walser e a aproximação que faz do escritor com seu avô, ambos mortos em 1956 (não se pode dizer, como faz Sciascia acerca da relação de Trompeo com Stendhal, que Sebald lidou com Walser "com um amor e uma sensibilidade que quase diria inigualáveis"?).     

terça-feira, 25 de março de 2014

Goya e o corpo morto

1) Em seu livro sobre Goya, Todorov insiste na centralidade do corpo morto (despedaçado, violado, violentado) em suas gravuras, especialmente aquelas sobre os desastres da guerra. A investida de Napoleão (e a resistência espanhola, não menos cruel) é condensada nessa figura do corpo morto no campo - uma sensação e uma percepção que poucos anos depois alcançarão também a geografia da cidade, com Balzac.
2) Comentando as fotografias de Eugène Atget na década de 1920, Walter Benjamin vai falar desse ambiente propício ao crime que é a geografia da cidade, Paris, e suas ruas desertas - Benjamin condensa a história da modernidade em uma imagem negativa, em sua potência para o recebimento do corpo morto, sua vocação para o crime. Kusniewicz, em O rei das duas Sicílias, se encaixa nessa linhagem que vem de Goya ao colocar no centro do conflito da Primeira Guerra Mundial o corpo morto de uma cigana - ponto de encontro da colcha de retalhos de idiomas e ideologias que é o Império Austro-Húngaro (que será "imagem negativa" também para Joseph Roth ou Sándor Márai, sempre girando ao redor dessa ausência irremediável).
3) Em 1931, Fritz Lang lança M., o vampiro de Dusseldorf, que multiplica os corpos mortos, mantendo também a ligação com a geografia da cidade e com a ideia da ficção como elaboração e reconstrução do real (o filme é inspirado num fait divers, daí o documentalismo que o liga a Atget). A polícia é incapaz de encontrar o assassino com seus métodos (o cada vez mais rico arsenal do "paradigma indiciário" de Carlo Ginzburg, a ciência, a geometria, a química); cabe ao submundo a mobilização - ladrões, traficantes, mendigos se unem para fechar o cerco. Um poder paralelo, uma estrutura subterrânea que vive à margem da sociedade e que, de repente, ganha destaque (o tema de parte da literatura argentina do século XX, especialmente aquela que sente o fluxo dos anarquistas de 1919, como Roberto Arlt, ou Ernesto Sabato - a construção de Sobre herois e tumbas, aliás, lembra o filme/roteiro de Lang, vide a abertura que também remete a uma notícia de jornal e a mobilização do submundo (a Seita Sagrada dos Cegos) - no filme de Lang é um cego que descobre o criminoso, reconhecendo seu modo de assobiar).

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O dia do Juízo

1) Em uma carta datada de 3 de abril de 1982, Bruce Chatwin escreve a Susan Sontag sobre sua vontade de ver uma tradução ao inglês do livro de Salvatore Satta, Il giorno del giudizio. "Nosso amigo Calasso manda lembranças", escreve Chatwin. Foi Roberto Calasso (assim como supostamente fez com Sándor Márai alguns anos depois) quem redescobriu o romance de Satta e arriscou uma nova edição pela Adelphi em 1979. Chatwin diz a Sontag que está vendo com Calasso a possibilidade da publicação em inglês (não há detalhes, não sabemos o que Calasso e Chatwin conversaram sobre Satta; o que há de certo é que Calasso não apresentou o livro a Chatwin, que já havia lido uma versão francesa anos antes).
2) Na mesma carta, 3 de abril de 1982, Chatwin escreve, sobre O dia do Juízo: "George Steiner pronounces it one of the truly great works of the century etc". Onde Steiner fala isso? Será que Chatwin conversou diretamente com Steiner? Pouco provável. Talvez Calasso tenha comentado com Chatwin sobre as impressões de Steiner e agora Chatwin repassa a Sontag. O texto célebre de Steiner sobre Salvatore Satta só foi publicado em 19 de outubro de 1987, na New Yorker, quando a tradução ao inglês de Il giorno del giudizio foi finalmente publicada. "A tradução de Patrick Creagh, The Day of Judgement, ao meu ouvido e ao meu espírito, não capta inteiramente o gênio da prosa de Satta - sua ferocidade ebúrnea, o fogo lento que arde dentro da pedra", escreve Steiner em sua resenha.
3) Uma típica frase de Steiner num típico ensaio de Steiner - esse apelo simultâneo à tradição e ao preparo pessoal, ao mesmo tempo uma esquiva e uma tomada de responsabilidade: "meu ouvido" e "meu espírito". E mais: esse lastro metafísico, "o gênio da prosa de Satta", e essa mescla de iluminação profana e fervor religioso, "o fogo lento que arde dentro da pedra". Mas esse é apenas o início do ensaio, a preparação do terreno, porque Steiner é minucioso e precisa justificar essa animosidade de seu espírito e de seu ouvido para com a tradução. Ele cita trechos do original italiano, tentando mostrar que toda experiência de leitura da obra-prima de Satta fora de seu idioma será sempre parcial: "A réplica do marido é uma das frases mais brutais da literatura - é, literalmente, uma sentença de morte: "Tu stai al mondo soltanto perchè c'è posto" ("Estás no mundo só porque há lugar"). A tradução de Creagh - "You're only in this world because there's room for you" - é mais ou menos exata, mas fica aquém. No italiano, há a conotação de um nicho obscuro, predestinado, onde as vidas insignificantes e prisioneiras são encaixadas sem escapatória. E é precisamente essa falta de escapatória que dá a tais vidas sua base contingente de extrema humilhação" (Tigres no espelho, tradução de Denise Bottmann, Globo, 2012, p. 117).

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Pereira e a versão oficial

1) Pereira trabalha num jornal, o jornal Lisboa, cuidando da página cultural, depois de trinta anos trabalhando como repórter policial de um grande jornal, que não é nomeado. Há no romance esse permanente contato com o jornalístico, com a rotina da notícia, da pauta, da versão oficial - o diretor do jornal não poderia estar mais alinhado ao regime de Salazar e, ironicamente, o único meio do jornalista Pereira obter qualquer informação crítica sobre Portugal é a partir do garçom do Café Orquídea, que escuta, clandestinamente, estações de rádios estrangeiras.
2) Nesse e em alguns outros pontos, Afirma Pereira, de Tabucchi, pode ser aproximado de O ano da morte de Ricardo Reis, romance que Saramago publica em 1984 (que Tabucchi iria reescrever dez anos depois com Os três últimos dias de Fernando Pessoa, de 1994, mesmo com toda a má-vontade do português com o italiano, que de qualquer forma não servia de nada a esse último). Se é possível aproximar a desaparição de Reis e Pereira a partir da perspectiva política (suas "mortes" são respostas ao mergulho de Portugal no fascismo), fugindo da aproximação fácil entre Saramago e Tabucchi a partir somente de Pessoa, é possível também aproximá-los no contato com a rotina jornalística: no romance de Saramago, Salazar aparece nas ridículas palavras de exaltação dos jornais que Ricardo Reis lê no Hotel Bragança, quando faz hora para o jantar ou quando toma o pequeno almoço em seu quarto. Reis vai aos poucos se dando conta que o Portugal que encontra - depois de dezesseis anos de exílio brasileiro - é um Portugal esvaziado, feito da ridícula "versão oficial" (é o fantasma de Pessoa quem lhe dá a melhor definição: se veio para dormir, a terra é boa para isso (O ano da morte de Ricardo Reis, Companhia das Letras, 1988, p. 94), e mais:
Duas horas deram, duas e meia, lidos foram e tornados a ler estes dessangrados jornais de Lisboa, desde as notícias da primeira página, Eduardo VIII será o novo rei de Inglaterra, o ministro do Interior foi felicitado pelo historiador Costa Brochado, os lobos descem aos povoados, a ideia do Anschluss, que é, para quem não saiba, a ligação da Alemanha à Áustria, foi repudiada pela Frente Patriótica Austríaca, até aos anúncios, Pargil é o melhor elixir para a boca, amanhã estreia-se no Arcádia a famosa bailarina Marujita Fontan, veja os novos modelos de automóveis Studebaker, o President, o Dictator, se o anúncio do Freire Gravador era o universo, este é o resumo perfeito do mundo nos dias que vivemos, um automóvel chamado Ditador, claro sinal dos tempos e dos gostos. (p. 123-124 - lembrando que também Ensaio sobre a lucidez Saramago faz uso da imprensa, de forma bastante semelhante àquela de Afirma Pereira, em que o texto veiculado é uma "mensagem engarrafada" destinada a poucos).
3) Essa rotina jornalística era típica da época - basta lembrar, por exemplo, a publicação seriada de Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, em 1929, no Frankfurter Zeitung, jornal que abrigou tantos outros escritores, como Márai, Benjamin e Joseph Roth (e como a obra desses três é marcada por essa serialização, esse sentimento do imediato que vem da contribuição quase diária com os jornais da época). Há também essa curiosa e persistente proximidade entre o título dos periódicos e suas localizações geográficas, o que não deixa de ser irônico diante da intensa "desterritorialização" empreendida pelos autores citados, seja em obra, seja em vida - como está posto na pergunta que Pereira faz ao diretor do jornal Lisboa: "que raça podemos celebrar nós, os portugueses?".    

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O joalheiro de Leskov

Aleksandr II e seu cão, Milord, 1870
1) Nikolai Leskov publica, em 1884, um conto intitulado "Alexandrita (Um fato natural à luz do misticismo)". É uma abordagem da "metáfora do joalheiro" completamente diversa daquela de Sándor Márai. O conto é dividido em onze breves seções - Leskov chama o relato de "pequena comunicação", e mistura um pouco de distanciamento pseudo-científico (ao falar das pedras preciosas) com o tal misticismo prometido no subtítulo e, mais importante, com um tom alegórico, como se estivesse dizendo algo além daquilo que está, de fato, dizendo: as minas de onde se retiraram os melhores exemplares da pedra de Aleksandr II foram inundadas pelas águas de um rio transbordado.
2) A "alexandrita", conta Leskov, foi descoberta no dia em que o imperador Alexandre II atingia a maioridade ("17 de abril de 1834") - por isso a homenagem. O imperador (seu pai foi Alexandre I, que derrotou Napoleão) sofreu vários atentados ao longo de sua vida: em 1879, caminhando pelos jardins de uma guarnição militar, ele vê um jovem vindo em sua direção com um revólver - corre em zigue-zague, escapa de cinco disparos e domina o assassino; no ano seguinte, o imperador chegou atrasado a um jantar no qual onze pessoas morreram e trinta ficaram feridas por conta da explosão de uma bomba. Em março de 1881, contudo, Alexandre II não conseguiu escapar da explosão - morreu sem as pernas e com os intestinos expostos.
3) A pedra que leva o nome do imperador, escreve Leskov, é impossível de ser falsificada: com a luz do dia, a alexandrita é verde; sob luz artificial, torna-se vermelha. O joalheiro místico que Leskov encontra no Bairro Judaico de Praga, na Cidade Velha de Kafka e do golem, se surpreende ao ver a alexandrita que ele porta: Veja só que pedra! Nela a manhã é verde e a noite sangrenta... É o destino, é o destino do nobre tsar Aleksandr! (Leskov, A fraude, tradução de Denise Sales, ed. 34, p. 165).   

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O joalheiro de Márai

1) Sándor Márai ocupa um bom número de páginas com a história do médico do campo de concentração (que comecei a comentar aqui) - algo sintomático se pensarmos na extensão do livro em questão, Libertação, que não ultrapassa as 150 páginas. Talvez tenha ele próprio escutado as histórias sobre os médicos dos campos quando estava escondido nos porões de Budapeste durante a guerra - e talvez as imagens tenham colado irremediavelmente em sua mente (como a imagem daquele jovem esquizofrênico que jamais abandonou Foucault). 
2) A mulher que está no porão com Erzsébet continua a falar sobre o médico, o médico que "apenas olhava, atento, com os olhos azuis, com o olhar de quem conhecia perfeitamente o que via". O médico, diz ela, "conhecia o corpo humano como poucos", "tinha visto centenas de milhares de pessoas nos anos anteriores, quem sabe um milhão". E nesse ponto a mulher atinge uma comparação curiosa: "ele era como um joalheiro, entende?... Talvez somente um joalheiro saiba olhar para o material e ver de imediato, sem nenhum instrumento, se ele é verdadeiro ou falso, de brilho vulgar ou nobre. Era assim que o médico conhecia o corpo humano. Olhava para alguém e logo sabia se era saudável ou doente, se recuperaria a saúde em menos de oito dias ou em mais tempo" (Libertação, tradução de Paulo Schiller, p. 83).
3) A proliferação de uma metáfora: ele era como um joalheiro. Aquele que separa o verdadeiro do falso, que estabelece a hierarquia - e a ironia involuntária da mulher ao indicar um ofício tão judaico. E ainda assim a esperança - talvez também involuntária - da mulher: posso ainda ser uma pedra bruta, pode ainda restar um pouco de energia em mim, somente o tanto necessário para que o médico, ao prestar atenção, ao dedicar seu olhar ao corpo da mulher, decida, finalmente, que ela está apta a continuar, que ela tem condições de, vá lá, viver mais alguns dias. 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A visão ingênua

Lévi-Strauss no Brasil, 1935
1) Mais para o final das Confissões de um burguês, Sándor Márai já apresenta um tom contrariado: passou por Paris, Londres, Leipzig, Budapeste e tantas outras cidades, acompanhou a dissolução do Império Austro-Húngaro, conheceu pessoas, ouviu histórias e, ainda assim, constata que falta autenticidade ao mundo - toda a trajetória de Márai pode ser resumida nesse desejo contraditório: manter vivo, dentro de si, um mundo que já não existe (e seus ritos, seus gestos, sua linguagem), circundado por um mundo real que é cada vez mais homogêneo (o inverso perfeito dessa situação está na obra de Bruce Chatwin).
2) Em 1935, ano de publicação das Confissões de Márai, Claude Lévi-Strauss está no Brasil, dando aulas na USP e percorrendo o interior do país atrás de índios. Chegando a um povoado, vê "restos da carcaça de uma máquina de costura", fósforos, armas de fogo - aquela visão surpreendente, escreve Lévi-Strauss em Tristes trópicos, "eliminou a poesia de minha visão ingênua". Mesmo do outro lado do oceano, a civilização surge como uma força inexorável de normalização (São Paulo era um pouco Paris, um pouco Chicago, um pouco a selva).
3) Não se sabe se Kien, o protagonista de Auto-de-fé (1936), de Elias Canetti, enlouquece com a estagnação da civilização ocidental e por isso busca refúgio na antiguidade oriental ou se, por outro lado, enlouquece precisamente nesse movimento de distanciamento (como se a razão se perdesse no abismo entre uma cultura e a outra). "Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização", escreve Freud em 1930, e mais adiante: "nos guardamos do preconceito que diz que civilização equivaleria a aperfeiçoamento, seria o caminho traçado para o homem chegar à perfeição" (O mal-estar na civilização, tradução de Paulo César de Souza. Obras completas, vol. 18, Companhia das Letras, 2010, p. 47 e 58). O projeto totalitário de Hitler: homogeneizar para vencer.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O médico e o aparelho

1) Em Libertação, Sándor Márai coloca a protagonista Erzsébet em um porão de refugiados e lá, nos subterrâneos, ela conhece uma mulher sem nome que lhe conta uma história: "existe coisa pior do que a morte", a mulher diz, e Erzsébet pergunta: "O que é pior?", e a mulher responde: "O médico no campo". "Os que, logo na chegada, ficavam com os velhos, com as crianças e raquíticos se saíam bem. Eram levados aos banhos. De manhã já tinham queimado, não souberam de nada. Mas os que trabalhavam", continua a mulher sem nome, "eram levados toda semana à presença do médico, e isso era muito ruim".
2) O que a mulher coloca em questão é a percepção do médico - sempre distante, profissional, frio. "Para o meu pai ele só deu uma olhada, e o mandou para o banho". O médico "apenas olhava, atento, com os olhos azuis, com o olhar de quem conhecia perfeitamente o que via. Conhecia o corpo humano como poucos". O médico era objetivo: decidia sobre a morte e a vida, calculava as vidas em termos de produtividade - como escreve Vilém Flusser em Pós-história: "Em Auschwitz, a tendência ocidental rumo à objetivação foi finalmente realizada, e o foi em forma de aparelho" (Annablume, 2011, p. 22).
3) O médico nunca se engana, afirma a mulher sem nome: "conhece o corpo humano, sabe quanta força de trabalho resta num corpo. É capaz de medir em quilos, nervos, dias, calorias, quanto vale um corpo humano". A reincidência maníaca do corpo no discurso da mulher sem nome - gasta a linguagem, gasta o significante, esfola o real: "ele observa corpos humanos nus ao longo de anos, judeus, poloneses, holandeses, sérvios, belgas, noruegueses. Sabe também quantos meses ou semanas vai durar a força existente num corpo" (Libertação, tradução de Paulo Schiller, p. 84).   

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Um batismo comunista

1) Diretamente da Budapeste de Sándor Márai, em algum ponto dos últimos anos da década de 1950 (certamente depois da revolução frustrada de 1956), chega a notícia de um batismo comunista. O responsável pelo resgate é Juan Rodolfo Wilcock, que encontrou a nota nas páginas de algum jornal italiano que já não se sabe mais o título - tudo que sobrou foi aquilo que Wilcock colocou em um dos verbetes de seu inclassificável Fatti inquietanti. A cena poderia ter acontecido em Praga e poderia muito bem ter sido relatada por Bohumil Hrabal - ou, em tom menos farsesco e mais desesperançado, por Milan Kundera. 
2) Wilcock inicia o verbete com a frase “Em um jornal de Budapeste apareceu a estranha notícia...”, e conta a história do batismo de Mihály Czirjancis, filho de um operário, em uma cerimônia que “não se sabe se definir de religiosa”. A secretária da seção local do partido comunista serviu de madrinha, e os ritos foram realizados no pátio da fábrica. O pai e os colegas “cantaram em coro os diversos hinos comunistas húngaros”. Tudo aconteceu porque o pai "não se contentou com a fria burocracia dos trâmites no cartório" (Fatti inquietanti, Milão: Adelphi, 1992, p. 146).
3) Hrabal escreveu um conto que se chama justamente "O batismo" (Křtiny), incluído na coletânea Poupata, que reunia escritos de 1938 a 1952 (a tiragem foi destruída pela censura poucos dias depois da impressão, em 1970). Um padre dirige em direção à igreja e atropela uma cabra, que agoniza em um buraco. O padre estrangula o animal e destroça sua cabeça com uma pedra (aparentemente porque sentia medo). Coloca a cabra no banco de trás e segue viagem. Assusta seu assistente ao aparecer coberto de sangue e de terra. Lava-se e em seguida começa a preparar a sala para o batismo. Antes de começar, diz ao pai da criança: o batismo é um símbolo, mas não faça da sua vida um símbolo.  

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Canetti, Kafka, Stendhal

A primeira edição de Auto-de-fé, 1936
1) É evidente que A metamorfose - a obra-prima de Franz Kafka - atingiu em cheio a poética de inúmeros escritores, mas é particularmente interessante observar (como feito com Sándor Márai) a repercussão imediata da publicação - o relato daqueles que, como Márai, tiveram a oportunidade de tirar aquele "caderno" (a delgada primeira edição) da prateleira de alguma livraria alemã já perdida no tempo. 
2) Alguns anos depois de Márai (que encontrou o livro de Kafka em Leipzig por volta de 1923-24), foi a vez de Elias Canetti, dessa vez em Viena, nos últimos anos da década de 1920, enquanto iniciava a redação de seu romance Auto-de-fé: "eu já concluíra o oitavo capítulo do Auto-de-fé, que hoje se intitula 'A morte', quando a Metamorfose de Kafka caiu-me nas mãos. Nada mais afortunado poderia ter acontecido comigo naquele momento. Ali encontrei, na mais elevada perfeição, a contrapartida para a leviandade literária que tanto odiava: ali estava o rigor pelo qual eu tanto ansiava" (A consciência das palavras, tradução de Márcio Suzuki, p. 248).
3) E refletindo sobre a gênese de Auto-de-fé Canetti também dá sua contribuição à circulação do fantasma de Stendhal - é o autor francês que completa o "sistema de estímulos" que Canetti articulou para si próprio: "Para não me deixar arrastar para demasiado longe, lia repetidas vezes O vermelho e o negro, de Stendhal. Queria avançar passo a passo, e me dizia que deveria ser um livro severo, impiedoso tanto para comigo mesmo como para com o leitor - foi indubitavelmente Stendhal quem me exortou à clareza". Lia repetidas vezes. 

domingo, 6 de janeiro de 2013

Kafka, Márai

1) Imre Kertész, como já visto aqui, menciona em um de seus ensaios a leitura pioneira que Sándor Márai fez de Kafka na década de 1920. Mas a história continua: quando Kafka soube que alguém tinha traduzido suas narrativas ao húngaro, protestou com seu editor Kurt Wolff - "a tradução para o húngaro de suas obras, escreve Kafka na carta", escreve Kertész em seu ensaio, "ele reservava exclusivamente para seu amigo Robert Klopstock". "Esse Robert Klopstock", continua Kertész, "de origem húngara, era um amante de literatura, na verdade um médico, e seu nome aparecera uma vez ou outra nos círculos literários de imigrantes alemães nos Estados Unidos". Assim como Tchékhov, Klopstock era um médico que sofria de tuberculose.
2) "Nessa história", continua Kertész, "é como se o Kafka de carne e osso de repente penetrasse no mundo fictício de uma narrativa de Kafka. Para dar uma ideia do que se trata, seria o mesmo que, digamos, sabedor de que Thomas Mann teria traduzido um de meus livros para o alemão, eu comunicasse a meu editor que confiaria mais no meu médico pessoal, que também sabe um pouco de alemão" (A língua exilada, tradução Paulo Schiller, p. 76). O interessante é que, com apenas um gesto, Kertész consegue elogiar Márai (equiparando-o a Mann), resgatar uma minúcia histórica muito pitoresca e, finalmente, salientar a inépcia editorial do próprio Kafka (guiado mais pelo compadrio do que pela capacidade técnica).
3) Márai apresenta em primeira mão sua descoberta de Kafka - está em seu romance biográfico Confissões de um burguês: "Kafka teve uma influência especial sobre mim", escreve Márai - "encontrar Kafka foi como o encontro do sonâmbulo com o caminho reto. Numa livraria simplesmente tirei dentre os milhares de livros o caderno intitulado Verwandlung, comecei a ler, e de pronto sabia: é ele. Kafka não era alemão. Também não era tcheco. Era escritor, dos maiores, não havia possibilidade de engano, de mal-entendido" (Confissões de um burguês, tradução Paulo Schiller, p. 239). O "caderno" em questão era A metamorfose, editado em 1916 por Kurt Wolff - justamente na cidade na qual se encontrava Márai: Leipzig.      

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Os órgãos de Stálin

1) O gigante era o exército russo, escreve Sándor Márai em Libertação, e continua: a engrenagem da grande máquina se compunha dos canhões, dos órgãos de Stálin, dos aviões, dos lança-minas, das metralhadoras do exército ucraniano (tradução de Paulo Schiller, Companhia das Letras, 2009, p. 36). Órgãos de Stálin? Os rins de Stálin, a bexiga de Stálin? A expressão chamou minha atenção primeiro pela quebra na lógica da enumeração e, segundo, por me lembrar de um livro de Gert Ledig (1921-1999) intitulado justamente Die Stalinorgel.
2) O "órgão de Stálin" é um Katyusha, um lançador de foguetes portátil transportado em um caminhão. A profundeza e amplitude de um termo ou expressão não cansam de impressionar. O apelido do Katyusha foi dado pelos alemães - Stalinorgel: os tubos do maquinário lembravam os segmentos dos órgãos utilizados nas igrejas. A ironia de uma imagem-dialética: une-se o silêncio e a sacralidade das igrejas ao caos ensurdecedor das trincheiras a partir de um significante compartilhado: órgão. Uma dissonância abrupta, desconfortável. E mais: indiretamente, se coloca também o corpo em cena - um corpo repleto de órgãos -, última partícula de resistência diante da máquina de guerra.
3) Michael Hofmann, que traduziu Die Stalinorgel - o livro de Gert Ledig - para o inglês, afirma no prefácio que a obra é a resposta de Ledig ao livro de Ernst Jünger sobre a I Guerra Mundial, Tempestades de aço (de 1920). Hofmann traduziu também esse livro de Jünger ao inglês (além de obras de Herta Müller, Joseph Roth e Thomas Bernhard). Aquilo que em Jünger era exaltação da coragem (e da capacidade da guerra de forjar um caráter forte) transforma-se, em Ledig, na gratuidade e no absurdo da violência - não há engrandecimento da alma na provação, como queria Jünger, apenas destruição do corpo, destruição de um corpo repleto de órgãos.          

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Tive que fugir

"Seremos uma cidade limpa / Comemos pombos novamente", Budapeste, 2009
1) Aleksandar Hemon diz que não há uma razão específica que explique a troca da língua bósnia pelo inglês - porém, mais adiante, reconhece a distância entre os idiomas como "um sintoma do trauma" e reconhece, indiretamente, que sua escolha representa o "fechamento do espaço". Danilo Kis, por outro lado, não apenas manteve a língua materna em sua ficção como fez dela seu ganha-pão (dando aulas) durante um bom tempo na França (Kundera, também na França, começou o exílio (1975) escrevendo ainda em tcheco e, anos depois, passou ao francês).  
2) O alemão de Herta Müller é um signo de resistência, ou melhor, uma fonte de preconceito, trauma e violência que é transfigurada, na ficção, em signo de resistência. A ficção de Müller é moldada pela violência contra a minoria de fala alemã na Romênia da ditadura comunista - e é essa resistência da língua que ela encontra em Cioran, por exemplo, e que também dá força a sua própria obra (Tudo o que tenho levo comigo: "tudo" só pode ser a linguagem).
3) Imre Kertész usa várias vezes em seus ensaios a frase que tirou dos diários de Sándor Márai: tive que fugir da Humgria para ser um escritor húngaro. Vivendo em Berlim, com vinte e um anos, Márai faz amizade com um alemão que, em sua diferença, lhe dá uma lição sobre o próprio: "na sua presença e no seu pensamento eu intuía o 'segredo alemão'", escreve Márai, "a conjuntura dificilmente delimitável da língua, do ambiente e da memória que faz alguém se tornar alemão de modo tão desesperançado quanto decidido, como eu jamais fora saxão nem morávio, embora fosse, sem dúvida, húngaro" (Confissões de um burguês, tradução de Paulo Schiller, p. 290).     

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Szindbád volta para casa

Mitteleuropa, 1914
Entre os famosos húngaros que viviam no exterior, encontramos dramaturgos como Ferenc Molnár e Melchior Lengyel; compositores como Béla Bartók, Ernst von Dohnányi e Emeric Kálmán; os regentes George Szell, Georges Sebastian, Eugene Ormandy e Tibor Serly; violinistas como Joseph Szigeti; diretores e produtores de cinema como sir Alexander Korda, Géza Bolváry, Michael Curtiz e Joe Pasternak; jornalistas como Theodor Herzl e Arthur Koestler; filósofos literários como Georg Lukács; físicos como Eugene Wigner, John von Neumann, Georg Békésy, Leo Szilárd, Theodore von Karman e Dennis Gabor; químicos como Georg de Hevesy; médicos como Robert Bárány; matemáticos como Frigyes Riesz e Lipót Fejér; atores como Paul Lukas; atrizes como Vilma Bánky; fotógrafos como André Kertész, Márton Munkácsi e Brassaï; filósofos como Karl Kerényi e Aurel Kolnai; arquitetos como Marcel Breuer e László Moholy-Nagy; psicanalistas como Franz Alexander; economistas como lorde Thomas Balogh; e sociólogos como Karl Mannheim.
John Lukacs. Budapeste 1900. Tradução de Ana Luiza Dantas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p. 172.

1) Em 1940, Sándor Márai publicou Szindbád volta para casa, uma ficção inspirada no trabalho de Gyula Krúdy. Márai era vinte e dois anos mais jovem que Krúdy - o conhecia pessoalmente e se dizia herdeiro de sua prosa, ao ponto de escrever Szindbád (que é a história do último dia da vida de Krúdy) usando "o estilo do mestre". O romance de Márai foi determinante na redescoberta de Krúdy sete anos depois de sua morte.    
2) A porosidade das fronteiras, das línguas e dos tempos: ao mesmo tempo em que estava intimamente relacionado com aquele que elegeu como seu precursor húngaro (Krúdy), Márai era atravessado por uma série de estímulos estrangeiros - a fala esvolaca e romena dos parentes distantes e daqueles que encontrava quando viajava para o interior, além de toda literatura alemã, austríaca e francesa que podia encontrar. 
3) Essa porosidade é importante também para as obras de Danilo Kis (nascido em 1935), Herta Müller (1953) e Aleksandar Hemon (1964) - como Márai, oriundos de geografias incertas e retalhadas. Diferentes gerações e um ponto recorrente: os deslocamentos forçados, imagem do brutal descompasso entre o desejo individual e os rumos da história - um desejo que, ao contrário das fronteiras cartográficas, não pode ser circunscrito ou demarcado.  

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Desarquivando Márai

Budapeste, 1922
1) Foi Roberto Calasso quem redescobriu Sándor Márai, no início da década de 1990: estava em Paris, lendo livros lançados em fins da década de 1940 por uma editora há muito falecida. Livros de autores do Leste Europeu; livros traduzidos para o francês de línguas como o húngaro, o tcheco e o croata. É aí que Calasso encontra As brasas, de Márai, e decide publicá-lo - e meses depois está na Feira de Frankfurt convencendo americanos, espanhois, ingleses e franceses a fazer o mesmo.  
2) Essa póstuma congregação de idiomas em torno de Márai não deixa de ser curiosa: Márai, assim como seu contemporâneo Nabokov, fez um proveitoso uso das línguas, das viagens e do exílio. Ambos coroaram com a América um périplo que incluiu, entre outras cidades, Berlim, Paris, Roma, Zurique, Londres. Márai tinha fama e leitores já na década de 1930, enquanto Nabokov passava trabalho para publicar poemas em revistas de emigrados (a situação, no entanto, se inverte a partir da década de 1950).
3) Esse múltiplo pertencimento de Márai lhe deu o instrumental necessário para perceber Kafka com muita antecedência: "Márai foi um dos primeiros a reconhecer o significado de Franz Kafka fora do território de sua língua natal", escreve Imre Kertész, "e em 1922 já tinha traduzido suas melhores narrativas para o húngaro". Essa subterrânea curiosidade que une os fios de uma história literária que não respeita restrições de idioma, geografia ou tempo.        

domingo, 30 de dezembro de 2012

Três húngaros

Thomas Mann e Sándor Márai, Budapeste, 1935
1) São escritores húngaros de três gerações: Gyula Krúdy, Sándor Márai e Imre Kertész. Em um dos ensaios de A língua exilada, Kertész escreve: "eu poderia falar da topografia de Gyula Krúdy durante muito tempo" (e o mesmo sem dúvida valeria para Sándor Márai) - ou seja, as praças, ruas, panoramas, becos e monumentos de Budapeste. E com "as paisagens de Budapeste" e "as imagens de Budapeste", segundo Kertész, que Krúdy recria o "mito fundamental de Dante".
2) Dante? Kertész argumenta que muitas das histórias de Krúdy são caminhadas pela cidade - geralmente são duplas que, conversando, vão desbravando recantos cada vez mais obscursos e sinistros de Budapeste. Kertész faz referência a um romance específico de Krúdy, O prêmio das mulheres, de 1919, "justo em meio ao inferno europeu", escreve Kertész, e continua: "mais ao Ocidente, nascia naquele momento o romance que no final evocava o pensamento de Dante: da orgia universal da morte e da catástrofre... renascerá o amor?. Essa é a Montanha mágica, de Thomas Mann".  
3) Essas palavras de Kertész, lidas como cartas na Rádio Europa Livre em 1991, são, portanto, muito anteriores ao recebimento de seu Nobel em 2002. Kertész não está fazendo uso de sua influência para lançar luzes internacionais sobre os escritores que gosta - ao falar de Krúdy e Márai, está marcando sua linhagem (por isso Kertész, algumas páginas adiante, insiste em uma frase que encontra nos diários de Márai: tive que fugir da Hungria para ser um escritor húngaro).

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Libertação

Sándor Márai, 1924
1) Libertação mostra um Sándor Márai distante de seus temas recorrentes - ele desloca a narrativa do interior burguês (as casas, as mobílias, as conversas, os jantares, as roupas, os segredos) em direção à voragem da guerra. Libertação demorou mais de cinquenta anos para ser publicado - foi editado postumamente em 2000, e Márai o escreveu logo depois da guerra, aproveitando sua própria experiência de refugiado e fugitivo na Budapeste da II Guerra Mundial.
2) É importante, dentro da poética de Márai, esse deslocamento de cenários: se em 1934-35 ele estava publicando Confissões de um burguês e, no ano seguinte, Divórcio em Buda (justamente o ano em que Benjamin e Lukács estão refletindo sobre os vínculos entre narração, burguesia e sociedade), dois livros bastante emblemáticos da Primeira Fase de Márai, com a guerra esse retraimento será abandonado.
3) Os principais eixos dos livros de Márai anteriores à guerra sobrevivem também em Libertação - com a diferença sensível de que nesse livro esses eixos foram desfigurados pela vivência da destruição. O viver-junto de Libertação não é o mesmo de As brasas: não mais a sala ampla com lareira, mas o porão úmido e insalubre; não mais a conversa sobre acomodações em Marienbad, mas a engenharia dos corpos no refúgio; não mais as cascas de laranja cristalizada, mas o pedaço de pão mofado dividido entre cinco.