quarta-feira, 30 de março de 2011

Talismãs

1) Em seu ensaio sobre Walser (Serrote, 5), Sebald diz que foi com muito cuidado que ele se aproximou da obra de Robert, sempre pelas bordas, nunca com muita urgência. Para Sebald, Walser lembrava seu avô - eles morreram no mesmo ano, 1956. Sobre a morte de seu avô, Sebald escreve: nunca fui capaz de superar. A julgar pelas fotos que acompanham o ensaio, foi o avô quem passou ao pequeno Sebald o gosto pelas caminhadas. Lá está ele, de calças curtas, segurando um pedaço de pau, de mãos dadas com o avô, olhando para a câmera (será que estava num tripé? será que havia uma terceira pessoa?).
2) Assim como Walser e seu avô, Sebald valoriza a errância. O exercício da caminhada parece não guardar qualquer relação com a utilidade ou mesmo com aquilo que entendemos hoje como exercício. Isso é certo. Os livros de Sebald sempre surgem depois de muitas caminhadas, sem que haja um destino fixo, uma intencionalidade primeira. As fotos estão lá para marcar essa cartografia do acaso - e Sebald não apenas como um fotógrafo atento, mas como um colecionador, aquele sujeito que vai coletando uma porção de elementos negligenciados, jogando dentro da mochila sem pensar muito na razão. E um dia a caminhada se encerra, Sebald volta para casa e despeja sobre a mesa de trabalho todos os talismãs encontrados. E sobre essa mesa, na dimensão deshierarquizada desse horizonte plano, ele faz sua montagem. Reconhecemos os elementos, mas o efeito é sempre único. É impossível não se emocionar com a franqueza desse arranjo que só Sebald sabe montar.
3) Agamben diz que vê em Benjamin e em Robert Walser a presença do tempo messiânico (glorioso, pleno) no tempo profano - e essa presença se dá a partir de formas míopes e distorcidas, de elementos que hoje são considerados infames e sem valor. É a partir do contato com esses objetos e desejos de pouco valor que se dá a experiência da redenção - a réstia de luz que nasce em nossos defeitos e nossas pequenas baixezas não era senão a redenção, escreve Agamben. Essa relação com o perdido (que Sebald cultivou em seus livros e que me ensinou a cultivar a partir da leitura de seus livros) é algo como uma vida póstuma que aproveitamos ainda no impossível do presente. Talvez sobreviva ainda na ficção um pouco dessa experiência passada adiante, não mais dentro da família ou de um círculo comunitátio, mas que escolhemos quando escolhemos os livros que lemos.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Uma nota sobre método em Dolf Oehler

1) "Uma nota sobre método em Dolf Oehler" quer dizer, além daquilo que já diz diretamente (por mais impossivelmente "direta" que possa ser a língua), uma anotação à margem de um movimento interpretativo feito por Oehler, que pretende se inserir em sua lógica e escandir ao máximo seu movimento, como numa decupagem.
2) Oehler afirma, em Quadros parisienses (Companhia das Letras, 1997), que é uma ingenuidade crítica (repetida por muitos e muitas vezes) considerar o conceito de modernidade em Baudelaire somente a partir do momento em que a palavra - modernité - aparece de fato (num ensaio de 1859). Isto é o óbvio e o superficial. As feições características e o papel histórico da arte moderna já estavam desde o início em Baudelaire, desde antes de 1846 - mais de dez anos antes do surgimento do significante modernité, portanto.
3) O que é ainda mais interessante, e que Oehler vai mostrando aos poucos, meio aos tropeços, é que um dos modelos para essa estética moderna de Baudelaire é Goya, cujos quadros ele via no Museu Espanhol, levantado com as pilhagens de Napoleão. Há um pensamento mestiço aí, que é simultaneamente exaltado e escamoteado: a crítica privilegia o ensaio de 59 (sobre um pintor holandês de nascimento, Constantin Guys, mas que sempre circulou por e retratou Paris) e, com ele, a evidência evidente do significante modernité; Oehler cavoca o trauma dos massacres na Espanha e mostra como o desenvolvimento do conceito de moderno em Baudelaire está ligado não apenas à contemplação de um quadro "estrangeiro", mas também, e principalmente, um quadro que condensa a violência em duas camadas: em seu tema e execução e em seu sequestro napoleônico.

sábado, 26 de março de 2011

Gênios, 5

1) O gênio tem muitos nomes: autor, fantasma, ausência, obra. Ele é ao mesmo tempo aquilo que torna o texto único e aquilo que percorre todos os textos. O gênio é volátil - responde pela força invisível que leva o homem à negação de si e responde também pelo papel amarelinho, pela caneta especial e pelos cigarros envoltos em papel preto, conforme o gosto pessoal exposto por Agamben (Paul Auster também gosta dos cigarros escurinhos). É interessante como essa zona de não-conhecimento, território do gênio e de suas mensagens sussurantes, também oferece espaço para essas materialidades neuróticas do cotidiano. O gênio também está no patológico, na repetição nervosa do sintoma.
2) A operatividade do gênio, segundo Marx, estará sempre ligada a um contexto de trabalho e produção. O artista só pode realizar aquilo que está tecnologicamente disponível para seu contexto histórico - a partir dessas contingências, o artista armaria suas possibilidades. Quando Marx fala da vacuidade da individualidade do trabalho científico e artístico, valoriza aqueles artistas que sabem ler as demandas de seu tempo, reconhecendo que a esfera artística é apenas mais uma ramificação das relações de produção. Quando Marx fala da organização do trabalho parece estar falando da tática de proliferação maquínica de um César Aira, por exemplo, ou dos cem mil livros de Mario Bellatin (ou a enfadonha versão da acumulação de Gonçalo Tavares).
3) Já em Barthes é como se o gênio pudesse ser escolhido, como se fosse uma sombra eleita pelo escritor - um misto de ação e aceitação. Os biografemas voam, pairam pelos textos, átomos epicurianos que caçam seus eleitos, uma espécie de vida póstuma dos gênios que assombraram outros autores, outras camisas de linho azul. O gênio ganha a feição daquele que mais admiramos, ou ganha uma feição tripla, quase monstruosa: Sade, Fourier e Loyola para Barthes. Agamben afirma que a ação do Genius se dá quando não há identidade fixa; Barthes afirma que no Texto há a destruição e dispersão de todo sujeito. São movimentos análogos - e essa volta amigável do autor de que fala Barthes pode ser, também, aquele abandonar-se de que fala Agamben, em uma confluência de encontros fortuitos.

Quando eu era menino

*
Quando eu era menino, ignorar o francês era ser quase analfabeto. Com o correr dos anos, passamos do francês ao inglês e do inglês à ignorância, sem excluir a do próprio castelhano.

Borges, "Prólogo de prólogos". Prólogos, com um prólogo de prólogos. Companhia das Letras, 2010, p. 8

sexta-feira, 25 de março de 2011

Gênios, 4

O prazer do Texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não é por certo aquele que foi identificado por nossas instituições (história e ensino da literatura, da filosofia, discurso da Igreja); nem mesmo o herói de uma biografia ele é. O autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um simples plural de "encantos", o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopéia de um destino; não é uma pessoa (civil, moral), é um corpo. Porque, se é necessário que, por uma dialética arrevesada, haja no Texto, destruidor de todo sujeito, um sujeito para amar, tal sujeito é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte - ao tema da urna, objeto forte, fechado, instituidor de destino, opor-se-iam os estilhaços de lembrança, a erosão que só deixa da vida passada alguns vincos. Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: "biografemas", cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma vida esburacada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra, ou então um filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens é entrecortada, à moda de soluços salutares, pelo negro apenas escrito do intertítulo.

Roland Barthes, Sade, Fourier, Loyola. Martins Fontes, 2005, p. XVI-XVII.

terça-feira, 22 de março de 2011

Gênios, 3

1) Primeiro de tudo: compreender que o atrito proposital de concepções divergentes não deve levar a uma escolha, a uma exaltação da posição fixa: gênio pra mim é quem trabalha duro ou isso de gênio não existe ou o sujeito já nasce pronto. Talvez a manha esteja em trocar o ou pelo e.
2) Eu não sei como Pinker reagiria, por exemplo, ao caso de Rimbaud ou Lautréamont - eles simplesmente não tiveram dez anos para pensar, para trabalhar o fazer artístico. Repare que Pinker descarta o trabalho inconsciente, afirmando que o descanso serve para afastar o gênio do problema, sem "fermentações" alheias ao trabalho consciente. Para Pinker, o gênio é um arquivo ambulante, alguém permanentemente incumbido da tarefa de identificar os pontos cegos desse arquivo - logo, de si mesmo. Não há fissura ou irregularidade; a máquina genial de Pinker é cronológica e progressiva: eles fazem incessantes revisões, aproximando-se gradualmente de seu ideal.
3) O que dizer de Walser, a partir daí? Não há progressão em Walser, não há "olho na concorrência" em Walser. Para Pinker, o gênio não reprime um problema - ele o ataca de frente. Walser está mais para a tergiversação, para o contorno. Na Trilogia de NY, de Paul Auster, um detetive segue um sujeito pela cidade durante dias e dias. Dias e dias passam. O sujeito faz um percurso absurdo, errático, estúpido. O detetive chega em casa, exausto, e decide refazer aqueles trajetos no papel, usando um mapa. Descobre, na deambulação de um maluco, um mensagem cifrada. Cada dia contém uma letra - o sujeito escreveu na cidade usando o próprio corpo, sem deixar qualquer traço. A mensagem final era: a torre de babel.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Gênios, 2

Rafael, tanto quanto qualquer outro artista, foi condicionado pelos avanços técnicos da arte realizados antes dele, pela organização da sociedade, pela divisão do trabalho em sua localidade e, por fim, pela divisão do trabalho em todos os países com os quais sua localidade manteve contato. O fato de um indivíduo como Rafael desenvolver seu talento depende totalmente da demanda, que por sua vez depende da divisão do trabalho e das relações culturais entre as pessoas daí resultantes. Stirner põe-se muito atrás da burguesia ao proclamar a individualidade do trabalho científico e artístico. As pessoas já veem agora como necessário organizar essa atividade "individual". Horace Vernet não teria tido tempo para a décima parte de seus quadros, se os tivesse tomado como trabalhos "que apenas tal indivíduo é capaz de executar". A grande demanda por vaudevilles e romances em Paris ocasionou uma organização do trabalho para a produção desses artigos, a qual engendra sempre algo melhor do que seus concorrentes "individuais" na Alemanha.

Marx, citado por Dolf Oehler em Quadros parisienses, Companhia das Letras, 1997, p. 144-145.

sábado, 19 de março de 2011

Gênios, 1

Os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. Os presentes e os banquetes com que festejamos os aniversários são uma lembrança das festas e dos sacrifícios que as famílias romanas ofereciam ao Genius no aniversário de seus membros. Genius era, de algum modo, a divinização da pessoa, o princípio que rege e exprime a sua existência inteira. E dado que esse deus é, de certa forma, o mais íntimo e próprio, é necessário aplacá-lo e tê-lo bem favorável sob todos os aspectos e em todos os momentos da vida. É preciso ser condescendente com Genius e abandonar-se a ele; a Genius devemos conceder tudo o que nos pede, pois sua exigência é nossa exigência; sua felicidade, nossa felicidade. Mesmo que pareçam caprichosas, convém aceitar suas pretensões. Se, para escrever, tendes necessidade do papel amarelinho, da caneta especial, da luz fraca que desce da esquerda, é inútil dizer que qualquer caneta cumpre a tarefa, ou qualquer papel, ou qualquer luz. Se não vale a pena viver sem a camisa de linho azul, se não parece possível continuar vivendo sem os cigarros envoltos em papel preto, de nada serve ficar repetindo que são simples manias, que seria hora de criar juízo. Fraudar o próprio gênio significa ludibriar a si mesmo. E genial é a vida que distancia da morte o olhar e responde sem hesitação ao impulso do gênio que o gerou. O Genius é uma zona de não-conhecimento, é essa presença inaproximável que impede que nos fechemos em uma identidade substancial. Genius é essa parte de nós que sobrevive para sempre imatura, infinitamente adolescente. Toda tentativa de Eu, do elemento pessoal, de se apropriar de Genius, de obrigá-lo a assinar seu nome, está destinada a fracassar. Há uma ética das relações com Genius que define a classe de cada ser.

Giorgio Agamben. "Genius". Profanações. Boitempo, 2007. p. 17-20.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Gênios

Os gênios são laboriosíssimos. O gênio típico labuta arduamente por no mínimo dez anos antes de dar alguma contribuição de valor permanente. (Mozart compôs sinfonias aos oito anos, mas elas não eram realmente boas; sua primeira obra-prima surgiu no décimo segundo ano de sua carreira.) Durante o aprendizado, os gênios mergulham em sua área de atuação. Absorvem dezenas de milhares de problemas e soluções, e assim nenhum desafio é completamente novo e eles podem recorrer a um vasto repertório de padrões e estratégias. Eles mantêm um olho na concorrência e um dedo ao vento e são perspicazes ou afortunados em sua escolha de problemas. Atentam para a estima dos outros e para seu lugar na história. Eles trabalham noite e dia e nos deixam muitas obras de subgênios. (Wallace passou o final de sua carreira tentando comunicar-se com os mortos.) Os intervalos que passam afastados de um problema são úteis não porque fermentam o inconsciente mas porque eles estão exaustos e precisam de descanso (e possivelmente para que possam esquecer os becos sem saída). Eles não reprimem um problema, mas dedicam-se a uma "preocupação criativa", e a epifania não é um golpe de mestre, mas um leve ajuste em algo já tentado anteriormente. Eles fazem incessantes revisões, aproximando-se gradualmente de seu ideal.

Steven Pinker. Como a mente funciona. Companhia das Letras, 1998, p. 382.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Boato, 1

1) O boato tem íntima relação com a paranoia. Ao mesmo tempo em que nega sua origem, postulando um nascimento anônimo, o boato precisa guardar algumas marcas de legitimidade durante seu percurso. O boato circula com densidades muito diversas. Os alemães atacarão pela manhã. Ela tem um amante. O boato está dentro e fora, simultaneamente. Ele leva consigo elementos do "possível" para melhor desvirtuá-lo, podendo negar sua tangibilidade ao menor sinal de confronto. Hamlet não seria possível sem o boato. Não é à toa que Lacan tenha ido aos registros de seu seminário para apagar a fala e colocar "(...)" no lugar: é no arquivo que o boato ganha feições definidas e, portanto, morre.
2) Severino Di Giovanni (1901-1931), militante anarquista italiano perseguido pelo fascismo, chegou a Buenos Aires em 1923 a bordo do vapor Sofia, na última grande leva de imigrantes italianos aportados na Argentina antes da Segunda Guerra Mundial. Foi florista, professor autodidata, tipógrafo, linotipista, operário e, sobretudo, agitador, tendo vivido na clandestinidade a maior parte de sua curta existência. Partidário da ação violenta, foi preso, torturado pela polícia do ditador Uriburu e condenado à morte. Entre os jornalistas presentes à sua execução estava Roberto Arlt, que retratou a cena na crônica "He visto morir...", publicada em El mundo e incluída em Aguasfuertes porteñas. Enterrado na calada da noite por ordem das autoridades, seu túmulo no cemitério de Chacarita amanheceu coberto de rosas vermelhas.

terça-feira, 15 de março de 2011

Boato

1) Jacques Derrida publicou inúmeros livros híbridos - mesclados, atravessados, esquisitos. Como em Joyce: a leitura de um livro deve levar quase tanto tempo quanto sua escritura. Não li todos - desista -, mas gosto bastante de O cartão-postal. A primeira metade é ficcional, biográfica. Um diário de Derrida, de 1977 a 1979. Funciona um pouco como O mal de Montano, um pouco como aquele trecho do diário de Calvino publicado em Eremita em Paris. Na entrada do dia 8 de julho de 1979, Derrida conta uma história curiosa: um amigo canadense lhe diz que Serge Doubrovsky, no meio de uma conferência que dava em Montreal, disse à plateia: Jacques Derrida está fazendo análise. Derrida acha graça, porque é mentira, e lembra outro caso, ocorrido em 1977: Jacques Lacan está em seu seminário - o seminário de número 24, L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre (se você quiser traduzir isso, boa sorte) - e de repente fala para a plateia: esse rapaz, Jacques Derrida, está em análise.
2) Derrida gosta de deixar claro, e o faz também nesse dia, 8 de julho de 1979: nunca passou pela situação analítica. Sua análise se dá, talvez, no trabalho da escrita, na escuta dos seminários. Quando René Girard pergunta a Lacan o que acha de Derrida, Lacan responde: tudo muito bem, tudo muito bom, mas a diferença entre nós é que ele não lida com pessoas em sofrimento. E agora? Derrida encontra falogocentrismo e metafísica da presença também na cena analítica - nessa cena do véu que separa o Santo do Santíssimo no Tabernáculo do Senhor, aquele construído pelos levitas quando o nomadismo era ainda uma lembrança recente. E Derrida vê essa cena da separação se repetindo em todos os cantos - e os sacerdotes da separação como acompanhantes.
3) Derrida não fala, mas Doubrovsky é o sujeito que primeiro mencionou a expressão "autoficção" - utilizada também por Vila-Matas justamente em O mal de Montano. Derrida também não fala, mas o chiste do rapaz muito provavelmente veio de Lacan, a fonte do boato. Derrida se pergunta: o que fiz para que a verdade de seus desejos esteja na indecidibilidade de minha situação analítica, sempre postergada, sempre suspensa? A verdade do desejo: o que quer que seja, está sempre por trás do véu.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Não-lidos

Eu olho para a pilha de não-lidos e tomo até um susto: dois livros de Bruce Chatwin que mal passei os olhos - e desde que li Utz, algumas semanas atrás, não há dia que não lembre da figura daquele colecionador pacífico e retraído, parente dos tios bósnios de Aleksandar Hemon, por exemplo (que são parentes daqueles arquivistas dos resíduos que encontramos em Bohumil Hrabal). Os livros de Chatwin convivem pacificamente com Perder teorías, um livrinho fino de Vila-Matas que saiu ano passado. Perder teorías, reza o prefácio, serve de suplemento a Dublinesca - e como não gostei muito desse último, seu suplemento continua ali, na pilha. Às vezes me perco na anedota, na busca por uma história pitoresca, algo que possa contar por aí, algo que dê a medida exata do esforço de vasculhar as páginas: é o que acontece com aquela história mínima que Dashiell Hammett conta em O falcão maltês, do homem que foge depois de quase ser esmagado por uma viga; ou aquele mendigo absurdo que cruza uma história de Saul Bellow. Às vezes me perco na palavra exata, persigo um significante, fico caçando uma modulação, um ritmo singular, uma deriva turva que acaba não levando a nada: como aquele dia em que fui atrás das lagostas, ou quando fui atrás dos usos da palavra comadreja nos contos de Roberto Bolaño. Alguns deles me olham da pilha e parecem dizer: desista.

terça-feira, 8 de março de 2011

Três textos para três acadêmicos tristes

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Como diria a sábia Monique Evans: porque é que eu vou pagar alguém pra falar de mim se eu mesma posso fazer isso?
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1) O primeiro deles é sobre Carlo Ginzburg, historiador italiano que gosto muito. O texto pretende emular inclusive a forma dos ensaios de Ginzburg: seções curtas, encadeamentos aparentemente frouxos que se unem vigorosamente no final. A ideia era um pouco psicanalítica: ler algumas escolhas intelectuais de Ginzburg a partir de certas balizas biográficas. Nada inventado; o mote vem de um ensaio autobiográfico do próprio.
2) O segundo, chamado O testemunho e a literatura, fala bastante de Giorgio Agamben - com pinceladas de Sebald e outros. É uma breve reflexão sobre o estatuto da linguagem no testemunho e na literatura, digamos, de invenção.
3) O terceiro tem um título pomposo: Palimpsestos e sobrevivências: o ser e o sentido na filosofia e na literatura. Fala basicamente de Jacques Derrida, atravessando casos literários bem pontuais, como Kafka ou Sérgio Sant'Anna. Foi escrito há muito tempo e só agora saiu. O fantasma sobre esse texto é Bataille, que não é mencionado. Especialmente aqueles textos que dedicou às moedas que encontrou na Biblioteca Nacional, em Paris.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Gerenciando dejetos

Na caixa de comentários do dia 28 de fevereiro, foi levantada a possibilidade de ler Kafka a partir do gerenciamento de dejetos - uma leitura sistemática de Kafka que levasse em conta toda essa dimensão do resto, do trapo, do excremento e de tudo aquilo que sobre, que excede. Como na história do homem que transporta as ruínas de uma casa de um lado para o outro, terminando ao relento; como na história do café da manhã formado das sobras de outros cafés da manhã. Há sempre um animal que administra os restos de uma presa, os escombros de uma toca, o entulho de algum túnel. Há sempre um viajante que afirma não precisar de qualquer provisão, há sempre um objeto escondido. Uma nota de O mal-estar na civilização, de Freud, apresenta a questão de forma bastante ilustrativa:

A retração dos estímulos olfativos parece consequência do afastamento do ser humano da terra, da decisão de andar ereto, que fez os genitais até então escondidos ficarem visíveis e necessitados de proteção, despertando assim o pudor. No começo do decisivo processo de civilização estaria, portanto, a adoção da postura ereta pelo homem. O encadeamento parte daí, através da depreciação dos estímulos olfativos e do isolamento da menstruação, até a preponderância dos estímulos visuais, a visibilidade que obtêm os órgãos genitais, chegando à continuidade da excitação sexual, à fundação da família, e com isso ao limiar da cultura humana.
Também é inequívoca a presença de um fator social no esforço cultural pela limpeza, que acha uma justificação posterior em considerações higiênicas, mas já se manifestava antes delas. O impulso à limpeza vem do afã para eliminar os excrementos, que se tornaram desagradáveis à percepção sensorial. Sabemos que é diferente com os bebês. Os excrementos não despertam neles aversão; parecem-lhes valiosos, uma parte que se desprendeu do seu próprio corpo. Nisso a educação intervém com particular energia, apressando o estágio seguinte do desenvolvimento, que deve tornar os excrementos sem valor, repugnantes, nojentos e condenáveis. Tal inversão de valor não seria posível, caso essas substâncias expelidas do corpo não fossem condenadas, por seus fortes odores, a partilhar o destino reservado aos estímulos olfativos depois que o ser humano adotou a postura ereta. Portanto, o erotismo anal sucumbe primeiramente à "repressão orgânica", que abriu o caminho para a cultura. O fator social, que cuida da posterior transformação do erotismo anal, mostra-se no fato de que, não obstante todos os progressos evolutivos do ser humano, dificilmente ele acha repulsivo o cheiro de suas próprias fezes, apenas o daquelas de outras pessoas. Quem é sujo, isto é, quem não esconde os próprios excrementos, ofende o outro, não demonstra respeito por ele, o que também é confirmado pelos mais fortes e mais usuais xingamentos. Pois seria incompreensível o fato de o homem utilizar o nome do seu mais fiel amigo no reino animal como termo de insulto, se o cachorro não provocasse o desprezo por duas características: ser um animal de olfato, que não tem horror aos excrementos, e não se envergonhar de suas funções sexuais.


Sigmund Freud. Obras completas, volume 18. Tradução de Paulo César de Souza (Companhia das Letras). 2010. p. 62-63.

domingo, 6 de março de 2011

Ruth Orkin

A mãe foi atriz do cinema mudo. O pai fabricava barcos de brinquedo. Com 10 anos, Ruth ganhou sua primeira máquina fotográfica - custava 39 centavos. Isso foi em 1931, lá pelas voltas de Los Angeles. Em 1938, Ruth pegou sua bicicleta e foi até Nova York, fotografando pelo caminho. Ruth queria ver a Feira Mundial (o nylon era então anunciado ao mundo como uma nova seda sintética). Quatro anos depois ela já estava morando na cidade, tirando fotos de bebês, trabalhando à noite e economizando para comprar sua primeira câmera profissional. As fotos ficaram melhores e ela arranjou trabalho nas principais revistas da época. Em 1951, às custas da revista LIFE, vai para Israel, depois Itália, França, Inglaterra, fotografando lagos, praias, aglomerações, cadeiras de praia vazias. Quando voltou a Nova York, casou com um sujeito que também fotografava e fazia filmes. Eles foram morar perto do Central Park, Ruth afastou-se do fotojornalismo e dedicou grande parte de sua vida profissional, a partir de 1955, a registrar o que via de seu apartamento no 15º andar do Central Park West, 65. Reunidos no livro A world through my window, lançado em 1978, os resultados transmitem a satisfação de Ruth com o que ela considerava uma maneira ideal e duradoura de conciliar os desejos da fotógrafa com os desejos da dona de casa e mãe. Toda dia ela abria a janela da sala e fotografava o que via:

sexta-feira, 4 de março de 2011

Humanismo e massacre

1) Para Peter Sloterdijk, o filme O massacre da serra elétrica marca um ponto de contato entre o arcaico e o moderno. O curioso é que a história do filme se passa no ano de 1973, que, conforme vimos por aqui, é um marco de encerramento do modernismo. Mas não importa - o ponto de Slotedijk é que com O massacre da serra elétrica passamos a experimentar o horror e a violência em níveis semelhantes àqueles encontrados nos espetáculos romanos de morte e carnificina. Não é à toa que a ação de Massacre se dê nas voltas de um matadouro. Mas esse também não é o ponto de Sloterdijk - a reflexão sobre os espetáculos romanos ocupa duas páginas, e a menção ao filme está em uma nota de rodapé. Mas é pra isso que servem as notas de rodapé: para despertar a curiosidade.
2) Está em jogo um controle do humano, que oscila entre os estímulos bestializadores e uma auto-dominação pela via da negação. Há uma correlação entre o controle das massas pelo espetáculo romano e o controle atual pela cultura de massas. Sloterdijk afirma que o que animou o humanismo em seus primórdios foi esse embate entre a contenção (leitura filosófica, disciplina) e a festa (as influências bestializadoras do espetáculo). O controle sobre o sujeito não ocorre quando ele finalmente abandona o espetáculo, pelo contrário: o controle opera na oscilação, na impossibilidade de escolha que gera a domesticação.
3) Algo da ordem do que vemos também hoje: aproveite o crédito, mas aprenda a economizar; aproveite as promoções do Burger King, mas não perca as dicas de saúde do Globo Repórter; compre o último do Sloterdijk, mas não deixe de conferir o filme da Bruna Surfistinha, etc. Não se trata de conferir valor a qualquer um dos lados do binômio (embora percamos tempo com isso também); mas de perder a vida no interminável imperativo de escolher.