quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O dia do Juízo, 3

Nuoro, Sardenha, cemitério
1) Ao resenhar o romance de Salvatore Satta, Julian Barnes fala dessa sensação de que o romance não estaria exatamente contando uma história, mas construindo um ambiente. Essa sensação faz realmente parte da artimanha romanesca de Satta, especialmente porque o que está em jogo em seu livro é a reconstituição ficcional de um espaço geográfico que é ao mesmo tempo histórico (a Sardenha do início do século XX, antes da I Guerra Mundial) e metafísico (uma terra assombrada pela presença dos mortos, pela solidão e pela aridez).
2) George Steiner fala do romance de Satta como "uma das obras-primas da solidão na literatura moderna" e, retomando até certo ponto essa oscilação entre o espaço histórico e o metafísico, afirma que "não existe outra maneira de visualizar por completo" a paisagem do romance "a não ser visitando Nuoro e sentindo sua estrutura óssea": Il giorno del giudizio "é um livro dos mortos e para os mortos. Para um sardo, para um nuorense [de Nuoro, a cidade de Satta], há apenas um lugar capaz de receber essa preciosidade: o cemitério" (mais sobre os cemitérios aqui). Mas Satta questiona constantemente a própria possibilidade de evocar os mortos ao longo do romance, interferindo com sua voz externa na ilusão homogênea da narração - se o espaço oscila entre o histórico e o metafísico, Satta faz com que essa oscilação se desdobre também em direção ao registro estilístico e formal.
3) "Tirando Walter Benjamin", escreve Steiner, "nenhum rememorador transmite com maior pungência do que Salvatore Satta o direito dos vencidos, dos ridículos e dos exteriormente insignificantes de ser lembrados com precisão". Os ritos dessa existência são tão antigos quanto Homero, escreve Steiner. O romance de Satta faz uso desse substrato arcaico de presenças anônimas que, paradoxalmente, abarrotam a história com suas ausências. Metade dessa sensação típica do romance de Satta está também em Robert Walser (no pudor da narração, na dúvida, na hesitação), e a outra metade, aquela dos vencidos e dos ridículos anônimos, está também em Joseph Roth, em Fuga sem fim, em todas aquelas figuras que Franz Tunda encontra, vislumbra e esquece nas profundezas do Leste Europeu.    

sábado, 26 de outubro de 2013

O dia do Juízo, 2

Nino Frank, 1904-1988
1) A edição francesa do romance de Satta, a edição lida por Chatwin, segundo sua carta para Sontag em 3 de abril de 1982, saiu pela Gallimard em 1981, com tradução de Nino Frank - Le jour du jugement -, que também traduziu do italiano ao francês autores como Cesare Pavese, Curzio Malaparte, Italo Calvino e, sobretudo, Juan Rodolfo Wilcock (Frank traduziu O caos em 1982 e O templo etrusco em 1985). Frank era escritor e crítico de cinema, sendo responsável, na década de 1940, pela criação do termo film noir - em um texto sobre o cinema norte-americano do período. 
2) Antes disso, Nino Frank - que nasceu em 1904 e morreu em 1988 - foi colaborador de Joyce em Paris: Joyce "eventualmente ia ao cinema com Nino Frank ou a ópera e operetas", escreve Richard Ellmann, e continua: "Nino Frank estava seguidamente com Joyce em 1937 porque Joyce propôs a ele traduzirem Anna Livia Plurabelle para o italiano. 'Temos que fazer o trabalho agora antes que seja tarde', disse ele. 'De momento há pelo menos uma pessoa, eu mesmo, que pode entender o que estou escrevendo. Não garanto porém que em dois ou três anos ainda serei capaz de fazer isso'. Frank protestou, tarde demais, que o gênio da língua italiana não se adequava aos trocadilhos, e que o capítulo não poderia ser traduzido. Os dois encontravam-se duas vezes por semana, por três meses. Toda a ênfase de Joyce estava novamente na sonoridade, ritmo e jogo verbal; para o sentido das coisas ele parecia indiferente e infiel, e Frank muitas vezes tinha de lembrá-lo disso. Com um descuido refinado, Joyce jogava no texto nomes de mais rios [Anna Livia é o personagem de Finnegans Wake que representa o rio]. Frank lhe falou de um soneto de Petrarca, "Non Tesin, Po, Varo, Adige e Tebro", que reunia muitos nomes de rios, e Joyce teve de vê-lo imediatamente. Uma vez refreando o arrebatamento do mestre, Frank protestou sobre uma frase que Joyce gostava, "con un fare da gradasso da Gran Sasso", porque sacrificava o ritmo original. Joyce apenas respondeu: 'Eu gosto do novo ritmo'" (James Joyce, tradução de Lya Luft, Globo, 1989, p. 861-862).  
3) Como unir todos os pontos? Nino Frank serve de mediação entre Bruce Chatwin e Salvatore Satta, entre o italiano e o francês, mas também entre a Adelphi e a Gallimard, entre a década de 1930 e a década de 1980, entre a escrita de Finnegans Wake e a leitura de Il giorno del giudizio, embaralhando tempos e geografias. E existe a semelhança de Frank com Wilcock, ambos tradutores de tantas línguas em tantas direções (do espanhol para o italiano, do alemão para o francês, do inglês para o espanhol, etc), e no ano em que Frank estava envolvido com Joyce em Paris, 1937, e traduzindo coisas para a Nouvelle Revue Française, Wilcock estava em Buenos Aires, circulando com Borges e Bioy Casares, traduzindo e escrevendo coisas para a Sur.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O dia do Juízo, 1

1) Uma vez que as cartas escritas por Sontag ainda não estão disponíveis, não tenho acesso à possível resposta dela a Chatwin a respeito do romance de Salvatore Satta, O dia do Juízo. Na carta de 3 de abril de 1982, Chatwin é bastante rápido em seu comentário sobre Satta, talvez soubesse que Sontag já o conhecia, talvez tenham conversado sobre o autor, etc. O fato é que Susan Sontag já havia lido o romance de Satta, numa ocasião que entrou para os anais das curiosas recusas editoriais (como a de Gide com Proust, a de Eliot com Orwell, etc). Roger Straus, da editora Farrar, Straus and Giroux, em algum ponto do início da década de 1980 (a edição italiana de Satta era de 1979, a de Eco, a primeira, era de 1980), dá dois livros para Sontag, buscando sua opinião: o romance de Satta e O nome da rosa, de Umberto Eco. "Compre os dois", responde Sontag, "os dois são bons". "Não posso, Susan", respondeu Roger, "o dinheiro só dá para um". Sontag escolheu O dia do Juízo.
2) A história está registrada num livro sobre a editora, Hothouse: The Art of Survival and the Survival of Art at America's Most Celebrated Publishing House, Farrar, Straus, and Giroux (Simon & Schuster, 2013), escrito por Boris Kachka. Kachka escreve que Sontag teria escolhido Satta "na esperança de que vendesse bem", porque, afinal de contas, "Eco tem passagens inteiras em latim" (p. 235). Não parece um critério ou justificativa típicos de Sontag. De qualquer forma, Roger Straus seguiu a indicação e comprou o romance de Satta, que, como sabemos, saiu só em 1987 - e aí a coisa fica enigmática, porque Chatwin, em 3 de abril de 1982, escreve a Sontag falando de sua vontade de ver o romance de Satta traduzido, mas é provável que nessa data a coisa já esteja resolvida na Farrar, Straus and Giroux, porque o livro de Eco sai em 1983, pela Harcourt Brace.
3) Kachka escreve que Roger Straus adora contar a história da recusa de Eco - que vendeu mais de cinquenta milhões de cópias ao redor do mundo com O nome da rosa, enquanto o romance de Satta, o escolhido de Sontag, o escolhido de Chatwin, o escolhido de Roger Straus, vendeu duas mil cópias nos Estados Unidos. Kachka cita uma resenha de Julian Barnes: "Satta often seems to be 'doing' subjects - beggars, the election - rather than advancing a narrative" (p. 236). Kachka escreve que Straus gosta de contar a história da recusa de Eco porque mostra a arbitrariedade do mundo editorial - mas a escolha de Sontag, afirma Kachka, não foi arbitrária. O romance de Satta é uma meditação "tchekhoviana" sobre a vida de uma família na Sardenha da virada do século, "uma escolha típica de Susan Sontag", ao contrário do livro de Eco, "a historical thriller and highbrow progenitor of The Da Vinci Code" (p. 235).    

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O dia do Juízo

1) Em uma carta datada de 3 de abril de 1982, Bruce Chatwin escreve a Susan Sontag sobre sua vontade de ver uma tradução ao inglês do livro de Salvatore Satta, Il giorno del giudizio. "Nosso amigo Calasso manda lembranças", escreve Chatwin. Foi Roberto Calasso (assim como supostamente fez com Sándor Márai alguns anos depois) quem redescobriu o romance de Satta e arriscou uma nova edição pela Adelphi em 1979. Chatwin diz a Sontag que está vendo com Calasso a possibilidade da publicação em inglês (não há detalhes, não sabemos o que Calasso e Chatwin conversaram sobre Satta; o que há de certo é que Calasso não apresentou o livro a Chatwin, que já havia lido uma versão francesa anos antes).
2) Na mesma carta, 3 de abril de 1982, Chatwin escreve, sobre O dia do Juízo: "George Steiner pronounces it one of the truly great works of the century etc". Onde Steiner fala isso? Será que Chatwin conversou diretamente com Steiner? Pouco provável. Talvez Calasso tenha comentado com Chatwin sobre as impressões de Steiner e agora Chatwin repassa a Sontag. O texto célebre de Steiner sobre Salvatore Satta só foi publicado em 19 de outubro de 1987, na New Yorker, quando a tradução ao inglês de Il giorno del giudizio foi finalmente publicada. "A tradução de Patrick Creagh, The Day of Judgement, ao meu ouvido e ao meu espírito, não capta inteiramente o gênio da prosa de Satta - sua ferocidade ebúrnea, o fogo lento que arde dentro da pedra", escreve Steiner em sua resenha.
3) Uma típica frase de Steiner num típico ensaio de Steiner - esse apelo simultâneo à tradição e ao preparo pessoal, ao mesmo tempo uma esquiva e uma tomada de responsabilidade: "meu ouvido" e "meu espírito". E mais: esse lastro metafísico, "o gênio da prosa de Satta", e essa mescla de iluminação profana e fervor religioso, "o fogo lento que arde dentro da pedra". Mas esse é apenas o início do ensaio, a preparação do terreno, porque Steiner é minucioso e precisa justificar essa animosidade de seu espírito e de seu ouvido para com a tradução. Ele cita trechos do original italiano, tentando mostrar que toda experiência de leitura da obra-prima de Satta fora de seu idioma será sempre parcial: "A réplica do marido é uma das frases mais brutais da literatura - é, literalmente, uma sentença de morte: "Tu stai al mondo soltanto perchè c'è posto" ("Estás no mundo só porque há lugar"). A tradução de Creagh - "You're only in this world because there's room for you" - é mais ou menos exata, mas fica aquém. No italiano, há a conotação de um nicho obscuro, predestinado, onde as vidas insignificantes e prisioneiras são encaixadas sem escapatória. E é precisamente essa falta de escapatória que dá a tais vidas sua base contingente de extrema humilhação" (Tigres no espelho, tradução de Denise Bottmann, Globo, 2012, p. 117).

domingo, 20 de outubro de 2013

Desassossego

Afirma Pereira, o romance de Tabucchi, é somente o prelúdio da deambulação de Pereira, sua fuga, seu movimento - a vida é fuga sem fim, para dizê-lo com Joseph Roth. Esse breve mês de 1938 é a base sobre a qual se molda a fuga de Pereira, sua libertação, sua emancipação - do nome próprio, do pertencimento nacional (Pereira como o Judeu Errante?). Pereira é um brevíssimo elo de uma enorme cadeia - o "horror do lar" de Baudelaire (seus catorze endereços entre 1842 e 1858), l'horreur du domicile, essa fórmula encantatória que tanto fascinou Bruce Chatwin (lembremos da Anatomia da errância, livro póstumo de ensaios, mas sobretudo de O rastro dos cantos, que não foi o livro sempre adiado e nunca feito sobre o "nomadismo", mas é o livro sobre o "ímpeto migratório instintivo" do ser humano). Para Chatwin, anatomy of restlessness, errância e desassossego, claro, desassossego, para falar com Pessoa, com Bernardo Soares, com Ricardo Reis - que dois anos antes, 1936, chegava a Portugal depois de dezesseis anos de exílio brasileiro (e Pessoa: África do Sul, Inglaterra, Lisboa). E por que Pessoa não outrou-se como mulher, como Coetzee fez com Elizabeth Costello? Poderia ser a Marta de Pereira e Monteiro Rossi, ou a Asja Lacis de Benjamin, Brecht e Piscator - se Pessoa era o poetodrama Lacis foi a precursora do teatro revolucionário com crianças, além de ser uma errante por natureza: da Lituânia para a Rússia, Berlim, Nápoles e Capri (foi aí que conheceu Benjamin - Asja não sabia uma palavra de italiano e tentava comprar amêndoas, ele a ajudou, ofereceu ajuda para carregar os pacotes, se ofereceu para uma visita no dia seguinte, almoçaram spaghetti, etc).

domingo, 13 de outubro de 2013

Beberrões e narradores

1) A história que conta Joseph Roth em A lenda do santo beberrão carrega grandes chances de ser precisamente isso, uma lenda, um delírio, a alucinação de um beberrão - elementos mágicos e fantásticos abundam, visões religiosas, encontros e acasos inexplicáveis. Tudo dentro daquela estrutura ficcional irretocável típica de Roth, com os fatos, os dados, as imagens e as viradas narrativas nos lugares certos: "Numa noite de primavera de 1934", ele escreve no primeiro parágrafo, "um cavalheiro de idade madura descia os degraus de pedra que levam de uma das pontes do Sena para as suas margens. Ali, como quase todo mundo sabe, mas merece ser relembrado nesta ocasião, costumam dormir, ou melhor dizendo, acampar os sem-teto de Paris" (A lenda do santo beberrão, tradução de Mário Frungillo, Estação Liberdade, 2013, p. 9).
2) O delírio do beberrão se mescla a um local geográfico propício à proliferação dos delírios e das alucinações - as pontes do Sena e seus recantos obscuros, esses portais que levam ao mistério e à degradação, como mostrou Cortázar n'O jogo da amarelinha. Mas Joseph Roth é insistente ao longo de sua obra em demonstrar como o beberrão se aproxima do narrador, e como a substância entorpecente pode favorecer o acesso à narrativa - é como se a própria comunidade que se forma ao redor da bebida indicasse um espaço mágico de recepção da narrativa, como os poetas arcaicos ao redor da fogueira, como Homero antes da escrita. Está em Confissão de um assassino, o "romance russo" de Roth, de 1936, no qual toda a história é desencadeada a partir de um encontro em um bar, e vai ficando cada vez mais complexa e intrincada quanto maior é a quantidade de álcool no sangue do narrador. E o santo beberrão de Roth é uma espécie de xamã do entre-guerras, construindo sua mitologia enquanto a vive (ou enquanto repassa o vivido num breve delírio antes de morrer).
3) George Orwell, num texto de 1931, muito próximo das andanças não só de Roth mas de seu santo beberrão, um texto intitulado "O albergue", fala desse poderoso vínculo entre os sujeitos, a bebida e a narração - mesmo na ausência da bebida a substância entorpecente é evocada como facilitadora da narração, os beberrões evocam a bebida ausente e, ao fazê-lo, evocam também a narrativa que vem com ela, que é facilitada e por vezes até criada por ela: "Bill, o parasita, o de melhor compleição de nós todos, um mendigo hercúleo que cheirava a cerveja mesmo depois de doze horas de albergue, contou histórias de furtos, de canecas de cerveja que lhe foram pagas em botequins (...); o imbecil", ou seja, "Papai Velho", de 74 anos, "o imbecil balbuciou sobre um grã-fino imaginário que certa vez lhe dera 257 soberanos de ouro" (Como morrem os pobres, tradução de Pedro Maia Soares, Companhia das Letras, 2011, p. 51). Orwell não é generoso como Roth e coloca esse imaginário no meio do relato - algo que Roth, por sua vez, deixa pairando ao longo de toda narrativa de A lenda do santo beberrão, sem nunca esclarecer. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Nota sobre as figuras ficcionais

1) Na continuação de suas notas sobre literatura em um Diário - uma espécie de monólogo interior travestido de crítica literária, já que o interlocutor, Emilio Renzi, é ele mesmo, seu outro, seu alter-ego -, Ricardo Piglia (cujo nome completo é Ricardo Emilio Piglia Renzi, daí a graça da coisa) escreve que "algum dia seria preciso escrever um texto sobre Asja Lacis": "Não vejo que sentido pode ter, diz Renzi, escrever algo sobre Asja Lacis. Existem outras mulheres mais interessantes que podem servir de tema para uma narrativa. Por exemplo?, pergunto", isto é, é Piglia quem pergunta, "Por exemplo, responde ele, a filha de Madame Bovary. Alguém deveria escrever uma biografia da filha de Madame Bovary. Na última página do livro começa outro romance, diz Renzi, e se levanta para ir buscar o livro de Flaubert".
2) Pois bem, Renzi volta com o romance de Flaubert, lê as últimas linhas, mostrando o destino da órfã que foi morar com uma tia: "A vida de uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi, esse tema me interessa mais do que a história da amante de Walter Benjamin" (ou a história do filho de Stálin, acrescento eu). O desejo de se ocupar de um texto e de suas potencialidades ao ponto de reescrevê-lo, retomando partes lacunares, postergando seu fim (e profanando a própria poética do autor no processo, como seria o caso de um romance marxista sobre a filha de Madame Bovary). Tal desejo está em Balzac, quando escreve seu Malmoth como continuação daquele de Charles Maturin.  
3) É natural que Emilio Renzi, sendo a figura ficcional que é, prefira a história da filha de Madame Bovary à história de Asja Lacis, "figura real" (essa escolhida por Piglia, também figura real, o Fernando Pessoa desse heterônimo que é Renzi). O dilema está ativo também na obra de Coetzee: ele, como figura real, pode interferir na vida de outro autor-figura-real, que é Daniel Defoe, e dessa forma publica Foe, em 1986, uma espécie de versão alternativa para o contexto de criação de Robinson Crusoe. Mas para lidar com uma figura ficcional, para lidar com Molly Bloom, do Ulisses de Joyce, Coetzee precisa de uma mediação, precisa de Elizabeth Costello, figura ficcional como Molly - e é Costello quem publica, em 1969, The House on Eccles Street, a reescrita de Ulisses pelo ponto de vista de Molly. 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Nota sobre Asja Lacis

1) Em suas notas sobre literatura em um Diário, provavelmente o Diário que vem escrevendo há anos e de onde retirou fragmentos para a realização de seu último romance, El camino de Ida, Ricardo Piglia fala de Asja Lacis: "em 1923, em Berlim, Brecht conhece a diretora teatral soviética Asja Lacis, e é ela que o põe em contato com as teorias e experiências da vanguarda soviética". Como faz também no caso da "filiação tio-sobrinho", Piglia dá a Tiniánov os créditos de teorias que são de Chklóvski (é como se Piglia escolhesse representar o formalismo russo metonimicamente a partir de Tiniánov): "Brecht 'retém' o melhor da teoria literária soviética dos anos 20, em especial Tiniánov, Tretiakov, Brik, e é o único que lhe dá seguimento nos anos duros da década de 30 (...). Os escritos sobre literatura de Brecht devem ser lidos no âmbito da teoria literária inaugurada por Tiniánov e desenvolvida por Bakhtin, Mukaróvski e Walter Benjamin".
2) As coisas aconteceram a partir da intervenção de Asja Lacis: "por intermédio de Asja Lacis, Brecht conhece a teoria da ostranenie elaborada pelos formalistas russos e por ele traduzida como efeito de estranhamento (...). É notável o deslocamento operado por Brecht para mostrar a origem russa de sua teoria do distanciamento. Afirma que sua descoberta se dá em 1926, graças a Asja Lacis". Asja é importante para Brecht também atuando no palco: faz parte do elenco de sua montagem do Eduardo II, de Marlowe, e seu alemão com sotaque russo é um bem-vindo reforço à tática brechtiana do "desnudamento dos procedimentos", como escreve Piglia: "nessa inflexão russa que persiste na língua alemã está, deslocada como num sonho, a história da relação entre a ostranenie e o efeito de estranhamento". Lacis, portanto, fez muito mais do que apenas apresentar Brecht e Benjamin.
3) "Pode-se ainda apreciar a altiva e belíssima figura de Asja Lacis eternizada numa sequência de A ópera dos três vinténs, filmada por Pabst em 1931", escreve Piglia ao final de sua nota (Formas breves, tradução de José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 76-77). Seria belo poder ver Asja em movimento, mas tudo indica que não passa de mais uma atribuição errônea de Piglia (como aquela do cortejo de Roberto Arlt). Mas serve sem dúvida para lembrar a aparição de Juan Rodolfo Wilcock em Il Vangelo secondo Matteo de Pasolini, em 1964 (Wilcock inclusive traduziu as obras completas de Marlowe para o italiano), ou a intensa participação de Nabokov no mundo do cinema em Berlim na década de 1920, por pouco não esbarrando em Asja e Brecht, trabalhando como extra e colaborando com Ivan Lukash na escrita de roteiros ("seguia para os subúrbios a fim de trabalhar como extra nos filmes que eram rodados na tenda de um parque de diversões, onde a luz jorrava com um silvo místico dos enormes projetores apontados como canhões sobre uma multidão de figurantes, reduzindo-os a uma lividez cadavérica", Machenka, tradução de Jorio Dauster, Cia das Letras, 1995, p. 23).   

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Nota sobre as mulheres fatais

1) "Ouça, Monteiro Rossi, disse Pereira, amanhã eu mesmo telefono para a Marta, mas de um telefone público, por hoje é melhor que fique sossegado e vá para cama, escreva o número dela neste papel. Vou lhe dar dois números, disse Monteiro Rossi, se não estiver no primeiro, certamente estará no outro, se não for ela a atender, pergunte por Lise Delaunay, é assim que ela se chama agora" (Afirma Pereira, tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, 2013, p. 135). Nem sinal de Marta ou de Lise Delaunay depois disso - ela desaparece ou é encontrada pela polícia, assim como Asja Lacis no mesmo ano, 1938. Asja era atriz, trabalhou com Brecht, Erwin Piscator e Ernst Toller (o amigo de Joseph Roth que com seu suicídio provocou o colapso do escritor), e provavelmente era versada na arte dos disfarces, como Marta - segundo Vila-Matas, na História abreviada, toda mulher fatal é uma câmera com a objetiva permanentemente aberta, captando as imagens do exterior e mimetizando-as.
2) Assim como Pereira e Monteiro Rossi, Aby Warburg também teve sua cota de mulheres fatais - e aquela que coube a Warburg chamava-se Rosa Luxemburgo. Philippe-Alain Michaud, em seu livro Aby Warburg et l’image en mouvement, transcreve algumas das observações do médico Binswanger quando da internação de Warburg: "Em 18 de novembro de 1918, eu passei a temer muito por minha família", disse Warburg, afirma Binswanger, segundo Michaud, "então peguei minha pistola e desejei matar a mim e a minha família. Você sabe, é porque o bolchevismo estava chegando" (Philippe-Alain Michaud. Aby Warburg and the image in motion. Tradução para o inglês de Sophie Hawkes, Nova York: Zone Books, 2007, p. 173).
3) No caso de Warburg, o "bolchevismo" era a Liga Espartaquista (Spartakusbund), uma espécie de proto-Partido Comunista Alemão organizado durante a Primeira Guerra Mundial, aproveitando não apenas o sucesso de Lênin na Rússia mas, principalmente, os insucessos alemães durante a guerra. A Spartakusbund foi fundada, entre outros, por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que foram assassinados em 1919, quando a Liga, já associada ao Partido Comunista oficial, entrou em confronto com forças de defesa da recém-fundada República de Weimar. Em nota (p. 365), Michaud conta que Warburg chegou a receber os espartaquistas em sua casa de Hamburgo, nesse dia 18 de novembro de 1918, oferecendo-lhes um drinque, Rosa Luxemburgo entre eles - rigorosamente vinte anos antes de Marta e Asja Lacis desaparecerem (também Toller, o amigo de Joseph Roth e uma espécie de padrinho de Asja, era um espartaquista).  

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Pereira e os subversivos

1) No trato com Afirma Pereira, de Tabucchi, é preciso ter em mente a dimensão do contato de Pereira com o catolicismo, que termina por moldar, até certo ponto, suas próprias escolhas intelectuais - ele contrata o jovem Monteiro Rossi para escrever necrológios de escritores católicos ainda vivos, como homenagens e celebrações desses escritores. Existe um alinhamento evidente de Pereira com certo conservadorismo católico, que é também um dos eixos do salazarismo, junto com a própria ideia de Cultura e Educação (Salazar era professor, o Professor, catedrático da Universidade de Coimbra, assim como um de seus apoiadores principais, o Cardeal Cerejeira - e aí está tudo posto e misturado, Igreja, Educação e Política). Esse alinhamento também pode ser considerado a partir da perspectiva do judaísmo histórico de Pereira, que Tabucchi avança já na nota introdutória - o que talvez explique também as reticências de Pereira e sua predisposição para o confronto e seu abandono de sua identidade portuguesa no fim do livro.
2) Quando Pereira pede um texto de celebração de algum escritor católico, Monteiro Rossi responde ou com um artigo de elogio a algum escritor revolucionário, ou com um artigo raivoso sobre algum escritor alinhado aos fascismos da época - especialmente o italiano. É possível observar uma espécie de escala da subversão operando no romance: em primeiro lugar, Pereira, banal, alienado, alheio; em segundo lugar, Monteiro Rossi, jovem misterioso, passado obscuro, ideias desconfortáveis; em terceiro e último lugar, finalmente, Marta, a namorada de Monteiro Rossi, a verdadeira Mente Subversiva por trás dos artigos raivosos e dos elogios a Garcia Lorca e Maiakóvski. Se Monteiro Rossi aparece pouco, Marta aparece ainda menos - uma sombra que percorre os desvãos da cidade, conspiradora de uma sociedade secreta revolucionária, como em Los siete locos de Roberto Arlt (publicado em 1929).
3) Marta (Mata Hari?) é uma espécie de mulher fatal, como aquelas que povoam a História abreviada da literatura portátil de Vila-Matas: "Às oito e trinta e cinco, afirma Pereira, entrou no Café Orquídea. O único motivo pelo qual reconheceu Marta naquela moça magra, de cabelo curto e loiro, que estava perto do ventilador, foi ela estar com o mesmo vestido de sempre, de outro modo não a teria reconhecido de jeito nenhum. Marta parecia transformada, aquele cabelo curto e loiro, de franjinha e atrás das orelhas, dava-lhe um ar traquinas e estrangeiro, francês quem sabe. E ademais devia ter emagrecido pelo menos uns dez quilos" (Afirma Pereira, tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, p. 101). Marta tem algo de Lady Griffith, a sibilina personagem de Gide em Os moedeiros falsos (francês, católico), ou melhor: Marta tem algo da irrequieta e subversiva Asja Lacis, que justamente nesse mesmo ano de 1938, talvez entre o encontro de Marta com Pereira e a morte de Monteiro Rossi nas mãos da polícia de Salazar, nesse mesmo ano de 1938 Asja é presa pela KGB e enviada ao Cazaquistão, onde ficará presa por dez anos.