sexta-feira, 26 de maio de 2023
Chamados suplicantes
sexta-feira, 19 de maio de 2023
O noviço tuberculoso
1) É impressionante a presença que Thomas Bernhard conseguiu estabelecer na literatura posterior a sua obra, o modo como ele conseguiu se fazer presente em uma série de livros e autores tão diferentes entre si e que, ainda assim, compartilham Bernhard como elemento constitutivo (na linha do que escreve Borges sobre Kafka e seus precursores: é porque existe Kafka que reconhecemos certos pontos de contato em textos que, sem Kafka, não seriam aproximáveis; no caso de Bernhard, isso se dá com os textos que o sucedem). É o que aproxima W. G. Sebald, Bernardo Carvalho, Horacio Castellanos Moya e Hervé Guibert.
2) Escreve Guibert em Ao amigo que não me salvou a vida: "...incapaz de fazer o que quer que fosse, até mesmo continuar a leitura de Perturbação, de Thomas Bernhard. Eu odiava aquele Thomas Bernhard, ele era inegavelmente muito melhor escritor do que eu, no entanto não passava de um aporrinhador, um fuxiqueiro, um enchedor de linguiça, um criador de truísmos silogísticos, um noviço tuberculoso, um tergiversador evasivo, um diatribador enchedor de sacos salzburguenses, um gabarola que fazia tudo melhor que todo mundo, andar de bicicleta, escrever livros, pregar pregos, tocar violino, cantar, filosofar e odiar cotidianamente" (p. 175).
3) Um pouco mais adiante, Guibert já não se ocupa da emulação do estilo de Bernhard, mas da inserção da vida/morte do autor dentro do registro de sua própria vida/morte, como se o dispositivo de contágio tivesse ultrapassado a "literatura" e alcançado o "vivido": "Em 1º de fevereiro, Thomas Bernhard tinha apenas onze dias de vida pela frente. No dia 10 de fevereiro, peguei na farmácia do hospital Rothschild minhas cartelas de AZT, que escondi dentro do casaco ao sair, porque contrabandistas na calçada me olhavam como se quisessem roubá-las para amigos africanos, mas até hoje, 20 de março, em que faço a revisão deste livro, continuo sem ter tomado nenhuma cápsula de AZT" (p. 183).
terça-feira, 16 de maio de 2023
Muzil
1) Michel Foucault aparece como personagem no livro de Hervé Guibert, Ao amigo que não me salvou a vida (trad. Julia da Rosa Simões, Todavia, 2023), lançado em 1990 (um ano antes da morte do autor). Foucault, no entanto, aparece sob pseudônimo: Muzil, uma curiosa homenagem ao autor de O homem sem qualidades (por essa linha, é preciso ter em mente também a homenagem que Guibert faz no mesmo livro a outro autor de língua alemã: Thomas Bernhard). Foucault/Muzil, aliás, aparece no livro de Guibert como um leitor, inclusive como um leitor que declara ao narrador dois de seus livros favoritos: Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, e as Meditações, de Marco Aurélio.
2) O narrador de Guibert fala que seu primeiro livro, La Mort propagande, lançado em janeiro de 1977, foi o que permitiu sua entrada no "pequeno círculo de amigos" de Muzil, que já havia "lançado o primeiro volume" de sua "monumental história dos comportamentos". Originalmente uma "introdução ao primeiro tomo", se torna um livro, "adiando a publicação do verdadeiro primeiro volume", "ultrapassado pelo bólide introdutório" (p. 27). "O livro mais potente e mais frágil do mundo", é como o narrador de Guibert fala do projeto de Muzil (a História da sexualidade de Foucault), "um tesouro em andamento", um "sonho" encerrado com "a certeza de sua morte iminente"; com os dias contados, "Muzil começou a reorganizar seu livro, com limpidez" (p. 29).
3) Alguns meses antes de sua morte, Muzil dá de presente ao narrador de Guibert seu exemplar das Meditações de Marco Aurélio: "enrolado em um papel de seda", a edição amarela da Garnier-Flammarion: "Marco Aurélio, como me informou Muzil ao me dar o exemplar de suas Meditações, começara seu texto com uma sequência de homenagens dedicadas a seus predecessores, aos diferentes membros de sua família e a seus mestres, agradecendo especificamente a cada um, os mortos primeiros, pelo que lhe tinham ensinado e proporcionado de favorável no restante de sua vida. Muzil, que morreria alguns meses mais tarde, me disse então que em breve pretendia escrever, nesse sentido, um elogio dedicado a mim, a mim que sem dúvida nunca pudera lhe ensinar nada" (p. 62-63).
terça-feira, 9 de maio de 2023
A morte de Jesus
1) Toda a trilogia de Jesus de J. M. Coetzee se funda sobre a expectativa gerada pela linguagem (um tema recorrente em sua obra, que tem o protagonismo em um livro como Foe, por exemplo): desde o título, anunciando um "Jesus" que nunca se apresenta, que nunca é mencionado, que vive como significante - gerando expectativa no leitor - sem qualquer completude em direção ao factual ou ao histórico. A aposta se intensifica no último volume, A morte de Jesus, já que o título opera em um registro ambivalente no que diz respeito à expectativa: Jesus continua aí, e continua não aparecendo no romance; a morte, contudo, serve de complemento e promessa - uma faceta da expectativa que é levada a termo, que é, de certa forma, "honrada" pelo autor.
2) De certo modo, Coetzee dá um nó na ideia de Wittgenstein de que "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo", em primeiro lugar porque desfaz essa dicotomia que torna possível a infraestrutura da noção de Wittgenstein (que linguagem e mundo são diferentes, apesar do compartilhamento de limites); em segundo lugar, porque a linguagem - na trilogia de Coetzee - indica um limite enganoso, um limite que é uma espécie de marco-moldura falso, que induz ao erro (o mundo evocado pela palavra "Jesus" não é encontrado no interior dos romances que levam esse nome); em terceiro lugar, porque o limite da linguagem no mundo criado por Coetzee na trilogia é sempre fantasmático, alucinatório: todos os personagens falam espanhol, mas o texto que lemos está escrito em inglês.
3) Julio Fabricante, Las Manos, Maria Prudencia, Las Panteras, Simón, Juan Sebastián Arroyo, Los Gatos, Modas Modernas, Pablo, Bolívar, Joaquín, Damián: os nomes indicam uma realidade que, no entanto, não é corroborada pela linguagem na qual o romance se expressa (assim como o menino David, leitor obsessivo de Don Quijote, lê em espanhol mas reconta em inglês, embora o texto "original" permaneça sempre invisível). A língua inglesa foi abandonada em um mundo prévio, que no romance não existe mais; no entanto, é justamente nessa língua obliterada (todos falam em espanhol na Nova Terra da trilogia) que o romance é escrito (a performance de escrita do romance é o cancelamento de sua premissa central).
quinta-feira, 4 de maio de 2023
O canhoto
"Naquele momento - e recordo isso de forma tão exata como se a imagem estivesse passando de novo agora na minha frente -, pensei em como, em seus diários, Camus conta uma história dupla que tem a ver com Nietzsche e com Múcio Cévola, um herói romano do século VI a.C. Cévola foi capturado quando tentava matar o rei etrusco Porsena e, para não denunciar seus cúmplices, deu provas de seu destemor colocando a mão direita sobre o fogo e deixando que ela queimasse. De tal gesto proveio seu apelido, Cévola, o canhoto. Segundo Camus, Nietzsche se irritou quando seus colegas de escola disseram que não acreditavam na história de Cévola. E assim, aos quinze anos de idade, Nietzsche apanhou uma brasa na lareira e segurou-a na mão. Queimou-se, é claro. Nietzsche levou a cicatriz consigo durante o resto da vida.
Entrei no apartamento e cumprimentei os que estavam acordando. Cinco minutos depois, fui embora. Só alguns dias mais tarde, ao verificar aquela história em outra fonte, vi que o desprezo de Nietzsche pela dor tinha sido expresso não com uma brasa, mas com um punhado de palitos de fósforo acessos que ele colocou na palma da mão e que, quando começaram a queimar sua pele, um assustado inspetor da escola jogou os fósforos no chão"
(Teju Cole, Cidade aberta, trad. Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2012, p. 297)
quinta-feira, 27 de abril de 2023
Hemon, 3
terça-feira, 18 de abril de 2023
Hemon, 2
terça-feira, 11 de abril de 2023
Hemon, 1
quinta-feira, 6 de abril de 2023
Hemon
1) O romance mais recente de Aleksandar Hemon, The World and All That It Holds, lançado em 2023, apresenta, desde as primeiras linhas, uma singular mistura de línguas: o protagonista é Rafael Pinto; apesar dos estudos em Viena, precisa voltar a Sarajevo para cuidar da farmácia da família, por conta da morte do pai: Ever since Vienna, escreve o narrador de Hemon, Pinto had been writing poetry in German; he wrote in Bosnian too, but only about Saravejo. He even tried to write in Spanjol, but that always felt like his Nono was writing it, everything always sounding like an ancient proverb (p. 4).
2) O "spanjol" que aparece aqui pela primeira vez e que será referido incontáveis vezes ao longo do romance é a língua dos sefaraditas (o ladino), descendentes dos judeus originários de Portugal e Espanha expulsos da Península Ibérica ("Sefarad") pelo Édito de Granada em 1492. O narrador dá uma amostra, retirada das tentativas de poemas de Rafael Pinto: Bonita de mijel, koransiko de fijel; Kazati i veras al anijo mi lo diras, and so on. APOTHEKE PINTO, diz a fachada da farmácia; durante o expediente, Rafael reposiciona a poesia entre as línguas: Light changes the world, pensa ele, e retoma em alemão: Das Licht ändert die Welt, e assim por diante (p. 8).
3) Hemon não só retorna à paisagem da sua juventude e de boa parte de seus outros livros, mas também retoma laços intertextuais fundamentais não apenas para sua obra, mas para parte da literatura do século XX: encontramos ecos da nostalgia da derrocada do Império tal como narrada por Joseph Roth em seus romances (A cripta dos capuchinhos, A marcha de Radetzky); encontramos a vida nas trincheiras e os horrores da I Guerra Mundial, nos moldes daquilo que Ernst Jünger estabeleceu como o padrão-ouro em Tempestades de aço; encontramos a ironia poliglota de autores como Vladimir Nabokov, Charles Simic e Joseph Brodsky.
quarta-feira, 29 de março de 2023
Como me tornei francês
1) Reparando nas datas, é impressionante a transformação ocorrida na trajetória de Andrei Makine: chega à França clandestinamente em 1987, em condições precárias; em 1990, publica seu primeiro romance, La Fille d’un héros de l’Union soviétique; em 1992, o segundo, Confession d'un porte-drapeau déchu (ambos são publicados como traduções do russo - os nomes dados aos tradutores nas edições, contudo, são criações do próprio Makine, são pseudônimos; ele próprio havia escrito os romances já em francês); em 1995, Makine lança O testamento francês, seu terceiro romance, premiado com o Goncourt e o Médicis.
2) É instrutivo, tendo em mente os comentários que faz Jacques Derrida sobre as relações entre língua e nacionalidade em O monolinguismo do outro, reter a informação de que Makine só obteve a nacionalidade francesa em 1996, depois da chancela (da autorização?, do testemunho?) dos prêmios literários (uma nacionalidade que Makine solicitava desde o início da década de 1990, sempre recusada). Derrida se coloca no centro de um pertencimento inequívoco, aquele da língua francesa (falando da inadequação dos sotaques, por exemplo), para em seguida "desconstruir" a noção de pertencimento postulando sua própria inadequação inequívoca (como judeu e argelino).
3) Essas duas linhas (a de Makine e de Derrida) se encontram, de certa forma, quando o primeiro publica, em 2014, o livro Le pays du lieutenant Schreiber, uma biografia-entrevista de Jean-Claude Servan-Schreiber, Ex-Membro da Assembleia Nacional Constituinte da França e combatente na II Guerra Mundial, oriundo de uma família judia de origem alemã. Em certos momentos, o livro anuncia sutilmente um desejo de Makine de absorver, por contágio ou proximidade, toda a "francesidade" de Servan-Schreiber, exaltando sua participação em momentos-chave da história do país no século XX, começando por sua fuga da França ocupada pelos nazistas; o contato com esse francês quase centenário parece permitir a Makine também um uso renovado da língua francesa, dando acesso a certos termos até então interditados (héroïsme, sacrifice, honneur, patrie).
segunda-feira, 27 de março de 2023
Inspetor, impostor
"Penso na peça de Gógol O inspetor geral. O inspetor geral é o inspetor do governo, e a peça, obra-prima do teatro russo do século XIX, conta como um falso inspetor desembarca numa cidadezinha de interior e engambela todo mundo. Promete, seduz, ameaça, sabe espremer cada um em seu tônus mais íntimo. Todos os que têm algo a se censurar temem evidentemente a inspeção e dão um grande suspiro de alívio ao descobrirem que há um meio de se entender com ele - amigavelmente, entre pessoas civilizadas.
As coisas fluem, tudo correndo bem até o último quadro, quando o inspetor desaparece. Procuram-no em toda parte, preocupados. É nesse momento que um criado entra no salão do prefeito e, com uma voz de trovão, anuncia a chegada do verdadeiro inspetor. Todos os atores, nesse instante, devem se congelar no palco, numa pantomima aterradora que Gógol, misto de gênio cômico e carola delirante, via literalmente como uma representação do Juízo Final. Gerações de espectadores russos se contorceram de rir dessa peça, obstinando-se a tomá-la como uma irresistível sátira da vida no interior.
Equivocaram-se redondamente, a crermos em seu autor, que até o fim de seus dias derreteu-se em prefácios moralistas para revelar seu verdadeiro sentido. A cidadezinha é nossa alma. Os funcionários corruptos, nossas paixões. O intimidante mancebo que se fez passar pelo inspetor e abocanhou propinas dos funcionários corruptos, prometendo fechar os olhos, é Satanás, príncipe deste mundo. E o verdadeiro inspetor é naturalmente Cristo, que chegará quando menos se espera, e então, ai daquele que não estiver limpo! Ai daquele que julgou acobertar-se fazendo negócios com o falso inspetor!"
(Emmanuel Carrère, O reino, trad. André Telles, Alfaguara, 2016, p.170-171)
quinta-feira, 16 de março de 2023
1846
"Dá para entender o alvoroço que causou o livro [Gente pobre, de Dostoiévski] lendo-o hoje, 170 anos depois? Não há nada de especial na história. A forma, um romance epistolar, era uma imitação de George Sand e Balzac quando estrearam, e já estava quase caindo em desuso. Não era também nenhuma novidade escrever sobre 'pessoas comuns', Gógol já havia feito isso quatro anos antes em Almas mortas. Há, contudo, uma grande diferença entre o onisciente Gógol, que se colocava acima dos personagens como um Deus e caracterizava os simples mortais com humor bastante intenso, e Dostoiévski, que escrevia, e talvez seja o primeiro da literatura universal, a partir dos personagens, escrevia a partir dos humilhados e ofendidos, dava a eles uma língua própria, um ponto de vista próprio, expressava seu provincianismo, mesquinharia, cólera, maldade, suas artimanhas e prazeres e sua poesia menor e irresoluta. O leitor de São Petersburgo de 1846 percebeu o quanto isso era novo, do estudante mais mediano ao crítico literário mais renomado"
(Jan Brokken, O esplendor de São Petersburgo, Ayiné, 2022, p. 81-82)
domingo, 5 de março de 2023
O rouxinol
1) Em um de seus primeiros textos - publicado em 1983 na revista Genre -, intitulado "Queens of the Night", Avital Ronell fala da Aids, de pandemias e vacinas, comentando também, no percurso, alguns elementos da trajetória de Nietzsche. Antes disso, Ronell identifica na ópera de Mozart, A flauta mágica, uma das figuras possíveis dessa categoria que propõe, "rainhas da noite". A rainha é o grande "anti-corpo" de Mozart, escreve Ronell, o elemento feminino que entrega a flauta mágica como "dom da imunidade". A rainha de Mozart, acrescenta Ronell, é a "versão majestosa" de Florence Nightingale, ambas pertencendo ao gênero de "mulheres redentoras" que foram exiladas na noite.
2) Neste ponto, Ronell retoma Nietzsche, informando que também ele era uma "enfermeira" (termo neutro em inglês) e também ele um nightingale, um rouxinol, o nome do pássaro que mais entradas tem na enciclopédia da lírica ocidental. Ronell propõe a ligação de Nietzsche à sua função como enfermeiro e, daí, sua ligação com a ópera de Mozart pelo viés da 'rainha da noite', ou seja, a figura que porta a imunização - é o que faz Nietzsche, escreve Ronell, quando se comunica com Wagner com suas cartas (nas quais fala de sua atuação como "imunizador" - na guerra franco-prussiana - e também, ao mesmo tempo, como alguém exposto ao "contágio").
3) Muito nos moldes do que faz Derrida - Ronell, na introdução que faz a uma coletânea de ensaios seus traduzidos para o espanhol (Reinas de la noche), diz que sua língua materna é algo entre o hebraico, o alemão e o derrideano (uma sorte de comentário indireto ao Derrida do monolinguismo do outro) -, Ronell pendura uma complexa argumentação teórica em um único significante: neste caso, nightingale, ao mesmo tempo pássaro, imagem poética, figura da prótese e da transmissão, personagem de ópera, sobrenome de enfermeira (e tantos outros sujeitos) e metáfora do "canto filosófico" de Nietzsche.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023
Apagamento
1) No início do último capítulo de Footsteps, Richard Holmes volta à ideia da possessão: depois de seu período na Itália, Holmes volta a Londres e começa a escrever a biografia de Shelley, eight hundred pages of it, todos os dias sem parar durante quatorze meses, I was possessed by it, and in the end it became something like an act of exorcism (p. 201). Como já escreveu Roberto Calasso em A literatura e os deuses, a cultura ocidental - justamente pela figura de Sócrates - é marcada desde os primórdios pela ideia da possessão; por outro lado, também já foi dito, a partir de Jacques Derrida, que "o mal de arquivo é uma doença da possessão, da mescla entre o ser e algo que está para além dele".
2) O livro de Holmes está, evidentemente, repleto de visitas aos arquivos. Uma das mais interessantes diz respeito a uma carta de Shelley, que Holmes só pôde ver muito tempo depois dos eventos narrados em Footsteps (de certa forma, portanto, a evocação da visita ao arquivo é também a evocação de um desencaixe da narrativa, uma dimensão out of joint da ficção da biografia tal como montada por Holmes; é precisamente o que faz o arquivo: desestrutura o presente com as energias latentes do passado). Uma das cartas de Shelley para Claire Clairmont, nota Holmes, conta com reticências em um trecho e uma nota editorial que avisa: one line is here erased (p. 159).
3) Pois é justamente esse apagamento que Holmes deve investigar no arquivo - o manuscrito, contudo, estava "na América", escreve ele, na Pforzheimer Library de Nova York; uma vez analisada, a carta de Shelley enviada de Veneza read very differently: as reticências estavam no lugar de uma frase reveladora: Meanwhile forget me & relive not the other thing. A frase está riscada - não se sabe se pela mão de Shelley ou de Claire - e Holmes comenta que The very deletion carries its own implication (uma frase que não só é eliminada no original, mas também na edição - no primeiro registro com um traço e no segundo com reticências -; dentro de uma ausência se esconde outra, de segundo grau, que só o arquivo pode revelar até que ponto estão ligadas e até que ponto conferem um sentido suplementar à carta de Shelley).
terça-feira, 21 de fevereiro de 2023
Notebook
1) Todo o livro de Richard Holmes - Footsteps - é assombrado pela dinâmica da possessão - o biógrafo como alguém que transforma a própria vida em um recipiente a ser preenchido pelas energias do passado, pela presença fantasmática de um morto ou morta (como Mary Wollstonecraft, a quem Holmes dedica um capítulo). Como escrevi anteriormente, ele chega à Itália em 1972 depois de três anos enchendo cadernetas com anotações sobre Shelley, "possuído" por sua voz e de seus amigos e familiares ("vozes" que são projeções acústicas de algo que Holmes só tem acesso em forma escrita, pelas cartas). Em seguida no capítulo sobre Shelley, Holmes apresenta uma imagem ilustrativa da possessão: sua caderneta é dividida, nas páginas da esquerda a sua vida (suas viagens, suas impressões), nas páginas da direita a vida de Shelley (On the left-hand pages of my notebook I put fragments of my own travels, on the right-hand pages I put Shelley's, p. 137).
2) Se a dinâmica caligráfica entre Mary e o morto fazia pensar no Derrida de O cartão-postal (com Sócrates e Platão), a dinâmica de cisão entre Holmes e seu biografado faz pensar em um livro como Glas, que Derrida publica em 1974: no corpo de um texto, uma caderneta de trabalho que, de certa forma, é também um diário (já que acompanha o biógrafo em seu trabalho cotidiano), Holmes apresenta lado a lado a sua vida e a vida de Shelley; Derrida, por sua vez, apresenta no corpo do texto uma tensão de dois blocos biográficos, conceituais - Hegel de um lado, Jean Genet de outro (Derrida trabalha com duas colunas de texto com fontes de tamanhos diferentes; existe, contudo, uma triangulação inexistente em Holmes, já que Derrida rompe o binarismo Hegel-Genet com comentários próprios, "autobiográficos" em certo sentido).
3) Holmes conta que carrega consigo, na carteira, fotos não de sua família, mas da família de Shelley e do próprio; quando visita as cidades nas quais viveu o poeta, não circula pelos caminhos dos turistas, e sim pelos caminhos feitos décadas antes pelo poeta (passa a noite trabalhando, vai dormir com o amanhecer e acorda quando a cidade toda dorme após o almoço; aproveita a cidade vazia para caminhar); My own social life was very odd in Rome, escreve Holmes (p. 166); as leituras que faz são as leituras feitas por Shelley, apresentadas por Mary Shelley em uma entrada de seu diário: Read Montaigne, the Bible, and Livy. Walk to the Coliseum. Shelley reads Winckelmann (p. 164).
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023
Caligrafia e fantasma
1) Em seu livro Footsteps, Richard Holmes fala da morte e dos dias que antecedem a morte de Percy Shelley em 1822, na Itália: ele tinha visões à noite e acordava a todos gritando, correndo pela casa (via rios de sangue e corpos despedaçados); é a esposa Mary Shelley quem dá detalhes em suas cartas - citadas por Holmes -, escrevendo sobre as nervous sensations and visions, gritos que inspired me with such a panic that I jumped out of bed (as visões envolviam também a violência da água do mar e o afogamento de pessoas próximas, espécie de antecipação da própria morte, já que Shelley naufraga e morre afogado em 8 de julho de 1822).
2) Evocando a relação entre "possuído" e "possuidor" que Derrida coloca no início de O cartão-postal (a partir da relação entre Sócrates e Platão tal como vista em um cartão-postal), ou as ideias de Barthes sobre a relação entre grafia e subjetividade, traço e identidade (ou ainda a triangulação construída por Sebald entre corpo, escrita e memória em Os emigrantes, especialmente na imagem do menino Max Aurach curvado sobre a mesa escolar), Holmes fala de como notou uma mudança clara na caligrafia de Mary Shelley depois da morte de Percy Shelley, como se ela estivesse absorvendo, por via caligráfica, a presença espectral do morto (que segue, de certa forma, vivendo através da forma específica da escrita).
3) Holmes escreve que, visitando o Museu Keats-Shelley em Roma, analisando os originais das cartas de Mary Shelley escritas após 8 de julho de 1822, nota o disturbing fact da mudança da caligrafia: became virtually identical with his own, como uma "escrita automática" guiada pelo disembodied spirit de Shelley (é interessante notar que Holmes inicia o capítulo falando de sua própria escrita, da escrita do biógrafo que segue os passos do biografado, outra versão da dinâmica do possuído/possuidor: no outono de 1972 ele chega à Itália para seguir os passos do autor, filling notebooks about Shelley, se declarando possessed by him, and the voices of his family and friends).
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023
O sotaque de Char
1) Ainda na sétima seção de O monolinguismo do outro, quando Derrida fala de sua resistência com relação aos sotaques (e de como eles não tem a dignidade suficiente para acessar a palavra pública), ele acrescenta mais um elemento autobiográfico (depois de comentar sua vida escolar na Argélia dos anos 1930): quando escutou René Char ler seus próprios aforismos com um sotaque "ao mesmo tempo cômico e obsceno", Derrida experimentou "a traição de uma verdade" e o desmoronamento de uma "admiração de juventude" (o sotaque é incompatível com a dignidade da palavra pública e, acrescenta Derrida, com "a vocação da palavra poética").
2) O comentário é digno de nota porque Char é um indiscutível elo de ligação com Heidegger, fundamental para a formação de Derrida (é possível relembrar também a relação estreita de Héctor Ciocchini com Char e a tentativa de pensar um "humanismo contemporâneo" a partir de sua obra). Em uma entrevista publicada em novembro de 1985 (feita por Adriano Sofri), Giorgio Agamben conta como testemunhou um dos encontros entre Char e Heidegger - ocorrido em 1966, por conta do curso deste último na cidadezinha francesa de Le Thor (mesmo ano em que Derrida vai aos Estados Unidos, para o evento sobre o estruturalismo na Johns Hopkins, e apresenta o célebre texto "A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas").
3) Conta Agamben: "Voltei para lá este ano, sabendo que encontraria um vilarejo já irreconhecível pelo turismo, mas, ao invés disso, encontrei o mesmo hotel, agora completamente abandonado, invadido pelo mato e com as janelas caídas, como se tivesse há vinte anos esperando por mim. Em 1968 aconteceu, no mesmo lugar, um seminário sobre Hegel. Dessa vez, éramos uns dez, entre poetas e filósofos. Era vida comum, o seminário aberto pela manhã, as refeições feitas em conjunto e as longas caminhadas pelo campo. O seminário não tinha absolutamente nenhuma formalidade e se baseava na leitura atenta dos textos. Heidegger lembrava no início que em um seminário não pode haver outra autoridade senão a coisa mesma".
domingo, 5 de fevereiro de 2023
A costa da Bretanha
1) Na sétima seção de seu relato-conferência O monolinguismo do outro, Jacques Derrida recupera uma espécie de Bildung colonial, ou seja, fragmentos de sua infância escolar na Argélia dos anos 1930 e 1940: nem uma palavra sobre a Argélia, sua história ou geografia, escreve Derrida; por outro lado, todas as crianças sabiam de memória os afluentes do Sena e aprendiam a traçar de olhos fechados a costa da Bretanha (o que me faz pensar em outro conjunto de cenas de aprendizado, aquelas que Sebald coloca na última parte de Os emigrantes, dedicada a Max Aurach/Max Ferber, na qual o personagem conta ao narrador sobre uma foto tirada por seu pai no seu segundo ano de escola, mostrando o menino com o lápis na mão, curvado sobre o caderno de escrita).
2) O único momento benigno nas cenas de aprendizado, continua Derrida, está reservado para a literatura: era a oportunidade de acesso a um mundo sem continuidade sensível com o mundo efetivo, cotidiano (suas paisagens culturais e naturais); mas essa descontinuidade termina por revelar uma segunda descontinuidade, embutida na primeira, escreve Derrida: para aprender a "literatura francesa" é preciso recalcar a "literatura argelina" (só se entra na literatura francesa perdendo o sotaque, escreve Derrida). Essa "neutralidade" do francês sem marca de origem é algo que Derrida recebe na infância e leva para o resto da vida; ele confessa: qualquer tipo de sotaque (sobretudo os meridionais) parece incompatível com a solenidade da palavra pública.
3) Ele chega, por fim, ao ponto extremo do ciclo: o aluno se transforma em professor e, nessa posição, deve usar a palavra, a voz, a presença (e vale a pena comentar neste ponto como a retrospectiva autobiográfica de O monolinguismo do outro é também uma retrospectiva, contagiada pela anamnese da autobiografia, dos principais conceitos mobilizados por Derrida em sua obra - palavra, voz, presença). Derrida diz que teve que se esforçar para falar baixo; uma vez professor, teve que reaprender o uso da voz e começar a falar baixo - algo difícil em sua família, aponta Derrida (a cada vez, portanto, que toma a palavra como professor, Derrida retoma a cena familiar da língua - as vozes altas em família - e a cena inaugural da coerção educacional: falar baixo, evitar o sotaque e assim por diante).
segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
Clauriaudição
1) Na linha daquilo que faz Ernst Jünger durante sua visita ao Brasil em 1936 - analisando o céu dos trópicos e comparando ao céu conhecido, familiar, da Europa -, o protagonista do romance de Samuel Beckett de 1938, Murphy, é fascinado pela astrologia, pela capacidade de interferência dos astros na vida, na subjetividade: "O mapa celeste de Murphy, traçado por Suk", escreve Beckett, "acompanhava o infeliz nativo por onde fosse. Conhecia-o de cor e salteado e recitava-o em voz baixa enquanto caminhava" (trad. Fábio Andrade, Cia das Letras, 2022, p. 71).
2) Isso ocorre em grande medida porque, como escreve o narrador do romance, Murphy "fazia parte da classe dos eleitos que exigem que todas as coisas lhes lembrem outras" (p. 62), ou seja, um sujeito permanentemente compenetrado na decifração de signos, no entrecruzamento de analogias, referências, "assinaturas" (um elo perdido e modernista na arqueologia que faz Agamben em Signatura rerum (trad. Andrea Santurbano e Patricia Peterle, Boitempo, 2019): "Segundo Paracelso, são três os assinadores: o homem, o arqueu e as estrelas. Os sinais dos astros, que tornam possíveis as profecias e os presságios, manifestam 'a força e a virtude sobrenatural' das coisas: deles tratam as ciências divinatórias como a geomancia, a quiromancia, a fisiognomia, a hidromancia, a piromancia, a necromancia e a astronomia" (p. 46)).
3) O mapa astral de Murphy é elaborado pelo "professor Suk" e indica, entre outros elementos, que seus "principais Atributos" são "Alma, Emoção, Clauriaudição e Silêncio"; deve "evitar a exaustão pela Palavra"; no que concerne à "Carreira", o "Nativo deve Inspirar e Liderar, como Intermediário, Promotor, Detetive, Zelador"; pedras da sorte: "Ametista e Diamante"; cores da sorte: "Amarelo-Limão": "para evitar as Calamidades, o Nativo deve incorporar um Toque na Indumentária e Doses Generosas na sua Decoração Doméstica"; anos da sorte: "1936 e 1990" (p. 37-38).
quinta-feira, 26 de janeiro de 2023
Aventura
1) No sexto capítulo de Mimesis, "A saída do cavaleiro cortês", Auerbach - com um único gesto - aproxima e distancia as canções de gesta e os romances de cavalaria utilizando dois significantes: para as primeiras, a palavra é vasselage; para os segundos, a palavra é corteisie. Essa primeira palavra, intensamente utilizada nas canções de gesta (é a cristalização de todo um contexto social), vai aos poucos desaparecendo: Chrétien de Troyes a utiliza no Erec três vezes, em Cligès e Lancelote uma única vez e depois "não mais aparece", como indica Auerbach. A segunda palavra não é mais a cristalização de um contexto social, mas de uma propriedade idealizada (fantasmática) que é perseguida, desejada - a "cortesia" é um processo em permanente desenvolvimento.
2) O ideal da "cortesia" é pessoal e absoluto, escreve Auerbach; a vasselage estava ligada ao nascimento, a corteisie está ligada a uma "educação", uma "provação constante", um sistema de "verificação" que é mantido pela "forma peculiar e estranha de acontecimento" criada pela cultura cortesã, a "aventura": a aventura é a "genuína vocação" daqueles envolvidos no ideal cortês. É esse distanciamento do mundo real que permite a sobrevivência histórica de seus elementos: alcançará, 300 anos depois, Cervantes e o Dom Quixote, "que interpretou o problema da maneira mais perfeita", escreve Auerbach (no sexto capítulo Auerbach antecipa um personagem e um texto que só reaparecerão no capítulo 14, "A Dulcinéia Encantada").
3) Um ponto sutil e muito importante levantado por Auerbach, em poucas palavras: a "evasão para o fantástico" apresentada por Cervantes com o Quixote é uma intensificação de algo que já se notava no próprio romance de cavalaria 300 anos antes (ou seja, nem tudo se resolve pela chave da paródia quando se trata da relação do Quixote com os romances de cavalaria). A diferença é que o Quixote encontra ao seu redor uma série de obstáculos à idealização; o mundo ficcional de Chrétien de Troyes, por sua vez, é deliberadamente purificado dos obstáculos, uma "criação estética absoluta", nas palavras de Auerbach (sintoma de uma "crise funcional da classe feudal", que começa a ver despontar no horizonte a burguesia).
quinta-feira, 19 de janeiro de 2023
Steigerwald
"No fim do jantar, Steigerwald, resmungando, ajeitou um canto para dormirem; mudo, ameaçou com os punhos o aparelho morto e se dirigiu para a porta. 'Não tem uma Bíblia?', chamou-o Petrina. Steigerwald reduziu o passo, parou e se voltou para ele: 'Bíblia? Para que você precisa disso?'. 'Pensei em dar uma lida nela antes de dormir. Sabe, sempre me acalmo depois.' 'Que cara de pau!', grunhiu Irimiás. 'A última vez que você pegou num livro foi na infância, e nele você só olhava as figuras...' 'Não ouça o que ele diz!', negou Petrina com ar ofendido. 'Está com inveja simplesmente.' Steigerwald coçou o cacho na testa: 'Aqui só temos bons livros de detetive. Quer um?'. 'Deus me livre!', contestou Petrina. 'Não prestam!' Steigerwald assumiu um ar azedo e desapareceu pela porta que dava para o quintal. 'Que sujeito das trevas, esse Steigerwald...', resmungou Petrina. 'Juro que no pior dos pesadelos um urso faminto seria mais amistoso que ele.' Irimiás deitou-se em seu lugar e puxou o cobertor: 'Pode ser. Mas vai sobreviver a nós todos'. O 'menino' apagou a luz, fizeram silêncio. Por algum tempo, ouviu-se somente o murmúrio de Petrina, enquanto lutava para relembrar a reza que um dia aprendera com a avó:
Pai nosso... bem, Pai nosso,
que estás no céu, coisa,
no paraíso, glória
ao Nosso Senhor Jesus Cristo,
não... santificado seja o Teu nome,
e seja... ou melhor,
que tudo seja como for melhor
para Você... no céu, e
também na Terra, em todo lugar onde
alcançais... enquanto na Terra
na Terra... no paraíso...
ou no inferno, amém."
(László Krasznahorkai, Sátántangó, trad. Paulo Schiller, Cia das Letras, 2022, p. 188-189)
*
A cena de leitura em Krasznahorkai faz pensar naquela que Ricardo Piglia - em seu romance O caminho de Ida - encontra no filme Johnny Guitar. Os personagens de Krasznahorkai evocam traços muito tênues de experiências de leitura, construindo essa percepção compartilhada a partir de dois polos antagônicos: de um lado, a Bíblia; de outro, as histórias de detetive (polos que são condensados por Rodolfo Walsh quando publica um artigo no La Nación, em 14 de fevereiro de 1954, intitulado Dos mil quinientos años de literatura policial, articulando Poe e a Bíblia, escrevendo que "Daniel foi o primeiro detetive da história" - Daniel que, ao interpretar os sonhos de Nabucodonosor, é identificado como um precursor também por Freud).
terça-feira, 10 de janeiro de 2023
Castelos
1) Na argumentação de Maria Negroni sobre a "zona de sombra" da obra de Alejandra Pizarnik (El testigo lúcido), fica clara a tentativa de estabelecer uma sorte de triangulação: Pizarnik - Penrose - Sade; uma primeira triangulação que é complementada por uma segunda, usada por Negroni como ponto de apoio teórico: Freud - Bataille - Kristeva (é, sem dúvida, a referência bibliográfica mais citada em El testigo lúcido). Para se destacar do contexto literário argentino imediato (Borges), Pizarnik faz uso de uma obra francesa recente e menor (no sentido do Deleuze e Guattari de Kafka, por uma literatura menor), a de Penrose, que arrasta consigo a atualização de uma obra prévia, a de Sade.
2) "Sade explicou bem", escreve Negroni (p. 41): "os castelos são por definição lugares arcaicos. Contudo, também por conta disso, guardam em sua arquitetura de excesso sonhos suturados, ossuários de sombras que iluminam as zonas mais afastadas, mais catastróficas da experiência humana, permitindo o acesso a um saber alucinatório, sustentado pela incerteza. Deles deriva um novo olhar, um pathos que levanta o inatual como estandarte e faz da errância imaginária um baluarte contra a cena iluminada da História" (o castelo é utilizado tanto por Penrose quanto por Pizarnik; uma antecipação daquilo que Barthes denomina o "viver-junto" no curso de 1976-1977).
3) O castelo não é só o espaço físico, o ambiente ou cenário da ficção, mas também um espaço imaginativo no qual circulam certas energias narrativas sem hiearquização temporal. "Outro Télos (paradigma banal): Eros. Texto: Sade: (...) o castelo de 120 dias de Sodoma. Exemplo excêntrico, pois há exclusão da idiorritmia. Nada de rhythmós, nem para as vítimas (claro), nem para os libertinos: horários minuciosos, ritos obsessivos, ritmo implacável (...) Ora, os libertinos sadianos (é seu paradoxo) transformam a fantasia em Lei, em Fé. Desde então, não há mais rhythmós, a liberdade não é ligada ao sexo, mas ao indireto de seu investimento" (Barthes, Como viver junto, trad. Leyla Perrone-Moisés, Martins Fontes, 2003, p. 88-89)
sábado, 7 de janeiro de 2023
Penrose, Podolski
1) Existe um fio subterrâneo na obra de Alejandra Pizarnik, analisado minuciosamente por Maria Negroni em seu livro El testigo lúcido, que permite aproximar sua poética daquela de Roberto Bolaño: o apreço por figuras menores dos movimentos de vanguarda, especialmente aqueles de matriz francesa, tendendo em direção ao surrealismo (as conjuras literárias atravessam toda a obra de Bolaño, assim como o interesse pelas figuras menores dos movimentos; no conto "Fotos", de Putas assassinas, Arturo Belano - "perdido na África" - está lendo o livro La poésie contemporaine de langue française depuis 1945, de Serge Brindeau).
2) Negroni singulariza a importância de Valentine Penrose (1898-1978) para a obra de Pizarnik, especialmente a partir de 1962, quando Penrose - ligada ao surrealismo desde 1925 (ela aparece como figurante no filme L'Âge d'or, de Buñuel e Dalí, de 1930) - publica o romance La Comtesse sanglante, sobre Erzsébet Báthory, que torturou e matou centenas de jovens mulheres em seu castelo no século XVI (Penrose segue uma dica dada por Bataille em seu livro Les larmes d'Eros). Em 1966, Pizarnik publica na revista Testigo um texto intitulado "La condesa sangrienta", mescla de prosa poética, ensaio e narrativa que inaugurava uma nova fase na sua obra - espécie de glosa do trabalho de Penrose.
3) Hubo una vez una poeta belga llamada Sophie Podolski. Nació en 1953 y se suicidó en 1974. Sólo publicó un libro, llamado Le Pays où tout est permis (Montfaucon Research Center, 1972, 280 páginas facsímiles), escreve Bolaño em "Carnet de baile", um dos contos de Putas asesinas (Podolski também é mencionada em Detetives selvagens e em Amberes). No conto "Vagabundo en Francia y Bélgica", do mesmo livro, folheando o número 2 da revista Luna Park e repassando os nomes dos participantes, o narrador escreve: Sophie Podolski fue una poeta a la que él y su amigo L apreciaron (e incluso se podría decir que amaron) ya desde México, cuando B y L vivían en México y tenían apenas algo más de veinte años.
terça-feira, 3 de janeiro de 2023
Alejandra
alejandra alejandra
debajo estoy yo
alejandra
Negroni comenta que se trata de uma miniatura que contém e antecipa tudo, a inscrição de um "paradigma vertical" dentro do qual competem "escritura e corpo", "realidade e representação"; um aleph, em suma, que condensa todo o projeto de Pizarnik de "corrosão" da relação "entre palavra e coisa" (p. 59).
2) Debaixo de tudo está o nome próprio, a "identidade" estranhada, Das Unheimliche primordial (o verdadeiro nome de Alejandra Pizarnik era Flora; Alejandra foi uma criação da adolescência: quando César Aira escreve sobre a obra de Pizarnik enfatiza o corte do nome próprio como estratégia de "auto-modelagem", um abandono que funda a sua presença artística na "tradição"). Negroni comenta ainda que a repetição do nome "inventado" é o eco da impossibilidade inerente à linguagem e à literatura, que circulam ao redor de um vazio que se anuncia, se percebe, mas que nunca se faz totalmente presente (ou mesmo possível).
3) Para Negroni, o breve poema de Pizarnik mostra uma "dança fatídica" entre "o reprimido e o possível", "condição de toda palavra humana". Cita o Agamben de A linguagem e a morte, o momento no qual ele escreve acerca da "negatividade inerente" à linguagem: "Como o animal conserva a verdade das coisas sensíveis devorando-as, ou seja, reconhecendo-as como nada, assim a linguagem custodia o indizível dizendo-o" (p. 60). Não há narração que não edifique uma "muralha", complementa Negroni; dentro, no "espaço verbal", há sempre um "interior inacessível" (a "Arte", com seu "Minotauro" particular).