tag:blogger.com,1999:blog-42079099803523432902024-03-17T20:02:26.943-07:00Um túnel no fim da luzKelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.comBlogger1238125tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-48858541941217450102024-03-13T07:15:00.000-07:002024-03-13T07:15:12.473-07:00Cumpleaños<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDbGSu5VzXM8NFYFn73nNZe-3A3b7xqGNG-WlLhyphenhyphenq58lEQ_qp6YlO8YgW5nnBVBwtLNUwhz9tq7Oy28hbpiLvspdp51cHHPziwzf6CXN6jzbFI3jd_TY4qRsSV3Yby0gHwYFO0kFZq512lAdzGOluFKog6H1Uqa_HdLsq2qSxGhrcX8u4-Yh_wmz1s/s1325/AIRA.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="392" data-original-width="1325" height="95" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDbGSu5VzXM8NFYFn73nNZe-3A3b7xqGNG-WlLhyphenhyphenq58lEQ_qp6YlO8YgW5nnBVBwtLNUwhz9tq7Oy28hbpiLvspdp51cHHPziwzf6CXN6jzbFI3jd_TY4qRsSV3Yby0gHwYFO0kFZq512lAdzGOluFKog6H1Uqa_HdLsq2qSxGhrcX8u4-Yh_wmz1s/s320/AIRA.jpg" width="320" /></a></div><br /></div><div style="text-align: justify;"><b><br /></b></div><div style="text-align: justify;"><b>1)</b> No final de seu livro <i>Cumpleaños</i>, como é seu hábito, César Aira coloca a data: 18 de julho de 1999. O livro começa com a informação de que o narrador acaba de completar cinquenta anos - Aira nasceu em 23 de fevereiro de 1949. Embora não apareçam as datas no texto, é possível ler <i>Cumpleaños </i>como um diário: existe uma rotina, dias que passam, um narrador-escritor que fala do seu cotidiano, que revisita cenas do passado, que conhece pessoas novas e que relata esses encontros (relatando, depois, os efeitos desses encontros: a ocorrência mais importante é da garçonete do café na cidade natal que diz ao narrador-escritor que também ela escreve).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><b>2)</b> Voltei a pensar no livrinho de Aira depois de ler outro livro, <i>Espectáculos de realidad</i>, de Reinaldo Laddaga, que comenta <i>Cumpleaños </i>pelo viés da ficha, da notação, da anotação rápida, da escritura que leva à superfície do relato as suas condições de possibilidade, da literatura que se apresenta como processo inacabado e assim por diante (Aira é lido em conjunto com Mario Bellatin e João Gilberto Noll, por exemplo, e também Sarduy e Osvaldo Lamborghini - que inclusive é comentado em paralelo a Aira, que em <i>Cumpleaños </i>fala de Lamborghini como um de seus dois amigos que morreram cedo demais). O argumento de Laddaga, por sua vez, é amplamente informado por um texto de Denis Hollier - "Notes (On the Index Card)" - sobre Barthes e Michel Leiris.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><b>3)</b> <i>Cumpleaños </i>mostra que, por mais regida pelo acaso que seja a obra de Aira, sempre há um horizonte alternativo (suplementar) a explorar: as <i>novelitas</i> de Aira são, sim, intempestivas e surpreendentes, mas raramente incorporam a figura de um narrador-escritor que se identifica como César Aira (algo que <i>Cumpleaños</i> faz desde a primeira linha e, por isso, se transforma em um livro diferente, à parte, memorialístico e autobiográfico). Mais do que isso: o narrador de <i>Cumpleaños </i>fala das <i>novelitas</i> que escreve e publica, fala da posição que elas ocupam no seu "imaginário" de uma forma geral (como são tentativas de, simultaneamente, escapar do sistema literário e se juntar a ele - seguindo, nisso, os passos de Lamborghini (é o próprio narrador quem o declara).</div>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-71445915118267938552024-03-10T13:15:00.000-07:002024-03-10T13:15:40.991-07:00Pare, olhe, escute<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHYEQs0lEeT3tQ_tgaYvuEHappat7UQ1q3A9vCsikFOBoCsN2mlU4liV77zKCl7WX9vPP-YkAxeHBbjGqpRqK5mogWimMgXMS-hzNxm-TnZWsmJ9qzQjMQrjedrRY1vlGKQJX2CgLgv-ODuAk0VGHQeHXH2-uYJW6TrGCZGGNeGYDhQyQuLLGZnNXt/s1007/ONETTI.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="579" data-original-width="1007" height="184" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHYEQs0lEeT3tQ_tgaYvuEHappat7UQ1q3A9vCsikFOBoCsN2mlU4liV77zKCl7WX9vPP-YkAxeHBbjGqpRqK5mogWimMgXMS-hzNxm-TnZWsmJ9qzQjMQrjedrRY1vlGKQJX2CgLgv-ODuAk0VGHQeHXH2-uYJW6TrGCZGGNeGYDhQyQuLLGZnNXt/s320/ONETTI.jpg" width="320" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Onetti inicia seu romance <i>Deixemos falar o vento</i>, de 1979, com uma epígrafe de Pound (<i>Do not move / Let the wind speak / That is paradise</i>), que é precisamente a fonte de seu título, e com a seguinte frase inicial:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i>O velho já estava podre e me parecia estranho que só eu sentisse seu agridoce, tênue cheiro; que nem a filha nem o genro fizessem algum comentário. </i>(trad. Maria de Lourdes Martini, Francisco Alves, 1981, p. 11)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Como de hábito, Onetti apela aos sentidos, mais do que ao raciocínio ou à lógica - em geral, esse é o campo de atuação de seus narradores e personagens: aquilo que ataca o corpo de imediato, os cheiros, as visões, aquilo que é percebido pelos sentidos (a "fala" do vento, desde o título-epígrafe).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;">*</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na edição de dezembro de <a href="https://www.poetryfoundation.org/poetrymagazine/browse?contentId=34410">1979</a> da revista <i>Poetry</i>, Charles Simic publica o poema "Furniture Mover". Esse homem, encarregado de movimentar os móveis (de levar algo do ponto A ao ponto B, deslocando, mostrando as marcas deixadas por um hábito, como faz também a poesia), também sente o mundo no próprio corpo e, através de seus sentidos, reivindica uma experiência:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i>uma carga enorme</i></div><div style="text-align: justify;"><i>nas suas costas</i></div><div style="text-align: justify;"><i>e sob seu braço</i></div><div style="text-align: justify;"><i>assim</i></div><div style="text-align: justify;"><i>sempre</i></div><div style="text-align: justify;"><i><br /></i></div><div style="text-align: justify;"><i>tudo em seu lugar</i></div><div style="text-align: justify;"><i>perfeito</i></div><div style="text-align: justify;"><i>exatamente como era</i></div><div style="text-align: justify;"><i>doce lar</i></div>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-63594826988691923122024-03-02T04:45:00.000-08:002024-03-02T04:45:09.956-08:00Michelet, 1979<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLBBxwiHtZNyLa52aF__-UqL0tqkjJEDYUcrXzOmMei8GUuPDl8pAfv6GB2QA-Zv-CE21xlRdHpK8e-Ml_8gtjCtdPjVHT4YfLZIADpACPifN3em0KIoSTFqkjlGYIFLARds1rzoNNH7NFF0GwzELZ5dCc2y0b8o8C1ggLA7DOKt64xasjX9wNE9Yh/s1182/PIGLIA.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="534" data-original-width="1182" height="145" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLBBxwiHtZNyLa52aF__-UqL0tqkjJEDYUcrXzOmMei8GUuPDl8pAfv6GB2QA-Zv-CE21xlRdHpK8e-Ml_8gtjCtdPjVHT4YfLZIADpACPifN3em0KIoSTFqkjlGYIFLARds1rzoNNH7NFF0GwzELZ5dCc2y0b8o8C1ggLA7DOKt64xasjX9wNE9Yh/s320/PIGLIA.jpg" width="320" /></a></div><br /><b><br /></b><p></p><p style="text-align: justify;"><b>1)</b> Em <i>Respiração artificial</i>, Ricardo Piglia apresenta de forma adulterada a frase de Stephen Dedalus no segundo capítulo do <i>Ulisses</i> de Joyce: "A história é um pesadelo do qual tento despertar". Marcelo Maggi, o personagem de Piglia, diz: "A história é o único lugar onde encontro alívio deste pesadelo do qual tento despertar". Essa modificação reverbera no refrão (que começa na epígrafe) que Ben Lerner coloca em seu romance <i>10:04</i>, "no mundo por vir tudo será precisamente como é aqui, só um pouco diferente", que, ao final, nos "Agradecimentos", Lerner esclarece que foi retirado de um livro de Agamben (<i>A comunidade que vem</i>) e que é geralmente atribuído a Walter Benjamin (por sua vez, referência na escrita do romance de Piglia).</p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> A partir dessa primeira transformação, e como que se disseminando a partir dela, surge uma segunda nos mesmos moldes: dentro do romance <i>Respiração artificial</i> está um romance utópico (o mundo por vir?) de Enrique Ossorio, intitulado <i>1979</i>, com uma epígrafe de Jules Michelet (é o que informa o narrador de Piglia): "Cada época sonha a anterior". A frase original de Michelet tem o sentido inverso - "cada época sonha a seguinte", "a próxima" - e foi utilizada como epígrafe por Walter Benjamin para seu ensaio "Paris, capital do século XIX".</p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> No final do ensaio, Benjamin inclusive retoma a ideia de Michelet, acrescentando que não apenas toda época sonha a próxima mas que, ao sonhar, se aproxima de um despertar. No romance de Joyce a História como pesadelo pode ter duas roupagens bem específicas e circunscritas. Em primeiro lugar, pode ser o próprio cotidiano da sala de aula, Dedalus diante de alunos maldosos e desinteressados, um "pesadelo" que afasta o professor da vida que realmente importa, que está além, do lado de fora; em segundo lugar, pode ser a concepção de história do supervisor, Garrett Deasy, a quem Dedalus é obrigado a escutar porque é quem o paga (algo que de fato acontece no capítulo e que motiva, de início, o contato entre os dois personagens).</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-12951669115573061642024-02-28T05:52:00.000-08:002024-02-28T05:52:46.673-08:00George Dyer<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhC85QBcLVYZbbJfa1laD1jvH5-YOhZnKHiFQqvfLRwVh9GXzovLLOPz4hgNO9b8BnJHPqt-UmqnaHLpNboiq7yeYDvglEBUt0oInxk11NlvLLCKe_bdju53msWpFzpsQVhLMWQGAaz4effstNMo0Q5iGCzWrmCP_VW0NHeu7Gl4ZxUfiLWB_7jwZdR/s519/DYER.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="205" data-original-width="519" height="126" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhC85QBcLVYZbbJfa1laD1jvH5-YOhZnKHiFQqvfLRwVh9GXzovLLOPz4hgNO9b8BnJHPqt-UmqnaHLpNboiq7yeYDvglEBUt0oInxk11NlvLLCKe_bdju53msWpFzpsQVhLMWQGAaz4effstNMo0Q5iGCzWrmCP_VW0NHeu7Gl4ZxUfiLWB_7jwZdR/s320/DYER.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">Leio o romance experimental de Douglas A. Martin, <i style="font-weight: bold;">Seu corpo figurado</i>: três partes independentes, cada uma delas dedicada a recontar, poeticamente, a vida de três pessoas: o pintor Balthus (especialmente sua relação com Rilke), o poeta Hart Crane (suas aventuras homoeróticas no porto de Nova York) e George Dyer, o desamparado e violento alcoólatra que serviu de modelo para Francis Bacon em sua fase mais produtiva:</p><p style="text-align: justify;"><i>Você e ele iriam a Atenas, de trem, depois de barco, depois ainda mais longe.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>Ele está aterrorizado com o que pode acontecer quando estiverem na água, cruzando, no meio caminho até lá, no caminho inteiro.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>Você e ele estão hospedados em mais um desses hoteizinhos agradáveis, até que os escândalos recomeçam.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>Pedem muito gentilmente que você se retire.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>Agora você e ele brigam constantemente, perpetuamente, na frente dos fotógrafos dele, amigos, admiradores, toda a corte dele, às vezes agindo com extrema petulância. Mas tudo também vai ficando cada vez mais violento.</i></p><p style="text-align: justify;">Douglas A. Martin, <i style="font-weight: bold;">Seu corpo figurado</i>, trad. Daniel Galera, Autêntica/A Bolha, 2011, p. 137.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;">Durante o funeral de Dyer em 1971, muitos de seus amigos, incluindo criminosos do East End, começaram a chorar. Quando o caixão foi baixado à sepultura, um amigo ficou emocionado e gritou "seu idiota!". Bacon permaneceu contido durante o processo, mas nos meses seguintes sofreu um colapso emocional e físico. Profundamente afetado, nos dois anos seguintes ele pintou uma série de retratos de Dyer em uma única tela e os "Trípticos Negros", cada um dos quais detalha momentos imediatamente antes e depois do suicídio de Dyer.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-49852923176623250342024-02-24T05:02:00.000-08:002024-02-24T05:02:39.849-08:00Visão, opacidade<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5RQLjpqi8lfsIld9ILRyC-242IZ5dULot86LutCaFh7e4KN9UUPT_3wbcQ1BNUQLTws_XUwlT_zn6jlymZs9XBo67IJ_ALxIpzxGCKatvcbnVI2rvxcqW2vDSB-8TX_IOoGI5UwAv1tgqEW60JQEG_Jahx-Hw4gNJMVskX79sivEiMt8DcXLm7JA9/s491/ROULIN.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="208" data-original-width="491" height="136" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5RQLjpqi8lfsIld9ILRyC-242IZ5dULot86LutCaFh7e4KN9UUPT_3wbcQ1BNUQLTws_XUwlT_zn6jlymZs9XBo67IJ_ALxIpzxGCKatvcbnVI2rvxcqW2vDSB-8TX_IOoGI5UwAv1tgqEW60JQEG_Jahx-Hw4gNJMVskX79sivEiMt8DcXLm7JA9/s320/ROULIN.jpg" width="320" /></a></div><br /><b><br /></b><p></p><p style="text-align: justify;"><b>1)</b> Em seu livro sobre Heidegger, publicado em 1978, George Steiner destaca que o filósofo foi marcado especialmente por uma antologia de poesia expressionista intitulada <i>Crepúsculo da Humanidade</i>: publicada em 1921, marcou a visão de Heidegger sobre poesia e pode ter preparado sua utilização posterior de Rilke e Trakl. Tal como seus "contemporâneos expressionistas", escreve Steiner, "Heidegger viu em Dostoiévski e Van Gogh os mestres supremos da verdade espiritual, da visão das profundezas do espírito humano. Essa avaliação concordaria, por seu turno, com a teologia da crise que ele descobrira em <a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2024/02/nomes-identificaveis.html">Pascal</a> e Kierkegaard" (<i style="font-weight: bold;">As idéias de Heidegger</i>, trad. Álvaro Cabral, Cultrix, 1982, p. 67).</p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> No início dos anos 20, Brecht, que estava com vinte e dois anos de idade, começa suas anotações: de junho a setembro de 1920; de maio a setembro de 1921; de setembro de 1921 a fevereiro de 1922. São os anos de <i>Baal</i>, <i>Tambores na Noite</i>, a peça <i>Na Selva das Cidades</i>, <i>A Vida de Eduardo II da Inglaterra</i>. Surgem as baladas e os sonetos. Durante o dia, estuda medicina, lê Van Gogh e Shakespeare, Hesse e Döblin, Rimbaud e Feuerbach, Hebbel e Zaratustra. Tem amigos e mora em quartos mobiliados, vai a festas, faz viagens e tem um filho (Stefan, nascido em 3 de novembro de 1924). Surgem os conflitos com os pais, os dias agitados, o tempo em que pouca coisa acontece.</p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> Quando conta a vida de Joseph Roulin, pessoa de carne e osso, sujeito histórico e personagem de Van Gogh, Pierre Michon chega a uma conclusão provisória do que faz "um grande pintor": "alguém cujos quadros devem ser vistos por todo mundo porque bizarramente, por mais opacos que pareçam, tornam as coisas mais claras, mais fáceis de compreender" (p. 41 - pensar em como <a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2022/12/olhar-longinquo.html">Sebald</a>, na abertura de <i style="font-weight: bold;">Austerlitz</i>, une os olhos de Wittgenstein e Jan Peter Tripp em um jogo de opacidade/esclarecimento); essa conclusão, contudo, retorna à opacidade algumas páginas depois: "Diante da garrafa revelada, o carteiro tentou saber por que Vincent era um grande pintor, e o outro explicou como pôde o que ele próprio não sabia, o que ninguém sabia, e Roulin então, que aquiescia profundamente, não avançou muito" (<i style="font-weight: bold;">Senhores e criados</i>, trad. André Telles, Record, 2010,<i style="font-weight: bold;"> </i>p. 45).</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-70632358672374233192024-02-21T05:45:00.000-08:002024-02-21T05:45:50.490-08:00Nomes identificáveis <p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRqE01XV6ai37eeovbfUkT7PW6qarX_RtZM5o-WJjHTdaxV-Mq9udB3cyCiTR23UIgzPszf-qRkOv-4tnyy3Y9ImYng2TjDelpI0hpG75STLY0NkRhklVticup0QxlcH-N-Ejk38B_D_I2q1DqCDa926mHVCiAQbRwHdnupOrkqaOgBdY4D81Ce4b-/s599/PASCAL.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="336" data-original-width="599" height="179" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRqE01XV6ai37eeovbfUkT7PW6qarX_RtZM5o-WJjHTdaxV-Mq9udB3cyCiTR23UIgzPszf-qRkOv-4tnyy3Y9ImYng2TjDelpI0hpG75STLY0NkRhklVticup0QxlcH-N-Ejk38B_D_I2q1DqCDa926mHVCiAQbRwHdnupOrkqaOgBdY4D81Ce4b-/s320/PASCAL.jpg" width="320" /></a></div><br /><b><br /></b><p></p><p style="text-align: justify;"><b>1)</b> No último capítulo das suas <i>Meditações pascalianas </i>(de 1997), Pierre Bourdieu usa como exemplo o <i>Processo </i>de Kafka: ele, Kafka, não só usa o tempo de forma extremamente significativa (o jogo de expectativas e frustrações, planos, retomadas, desistências e arrependimentos), mas busca o "ponto de vista dos pontos de vista", como coloca Bourdieu (sua longa e tortuosa argumentação ao longo das <i>Meditações</i> visa a escolástica e sua insistência na separação da razão como instância última e definitiva). Bourdieu ainda acrescenta que só Proust alcançou Kafka nesse esforço de busca pela multiplicidade de pontos de vista (com efeitos bem menos trágicos, completa).</p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> Algumas dezenas de páginas antes de falar de Kafka, Bourdieu apresenta uma digressão sobre Baudelaire, argumentando que a fortuna crítica enorme ao redor do autor de <i>Flores do Mal</i> torna difícil de perceber a radicalidade de sua poética e o modo como inventa uma nova forma de "ser artista" no interior e a partir do Literário (nesse ponto ele aproveita alguns momentos de um livro anterior, <i>As regras da arte</i>, de 1992). É curioso que, no centro de um trabalho de crítica à escolástica, encontramos um exemplo precisamente da meticulosidade de tal método/escola, vinda do próprio crítico (Bourdieu mostra que é preciso saber com precisão quais eram os autores imediatamente anteriores e imediatamente contemporâneos de Baudelaire, algo que se perdeu na fortuna crítica posterior).</p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> Esses dois momentos das <i>Meditações</i> convergem em direção ao ensaio de Walter Benjamin sobre Proust, no qual ele defende justamente que a <i>Recherche</i> deve ser lida à luz das intrigas sociais imediatamente anteriores e imediatamente contemporâneas à escrita do ciclo romanesco (em outras palavras, Benjamin defende a importância hermenêutica da fofoca e do <i>chisme</i>, para usar o <a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2015/05/museu-do-chisme-3.html">termo</a> de Edgardo Cozarinsky). Recuando no tempo, o mesmo pode ser dito de Dante: Lamartine criticava <i>A divina comédia</i> por seu lado mundano florentino, pois, no poema, figuram muitos nomes identificáveis unicamente pelos habitantes de Florença.</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-21276750832304095942024-02-07T04:49:00.000-08:002024-02-07T04:49:58.876-08:00Potentia gaudendi<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhTO3xNJRkcz9_2QoOQgwrF1T3Hikvf1M42Ox_LpYNgM4bIfCDeOJEhixYZSVIi9Le329aVXqTt8DuskDUTyOMZ0VhOZzW328VwCp4Y3IVetCR4eFDUqZBSRcdfQa_qBOIA1Zj6rP-mNV86Tmm5SwjnrC8kKTgsjZca54GCOIL5Au-zMFb5auZxI2U2/s572/HOUE.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="332" data-original-width="572" height="186" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhTO3xNJRkcz9_2QoOQgwrF1T3Hikvf1M42Ox_LpYNgM4bIfCDeOJEhixYZSVIi9Le329aVXqTt8DuskDUTyOMZ0VhOZzW328VwCp4Y3IVetCR4eFDUqZBSRcdfQa_qBOIA1Zj6rP-mNV86Tmm5SwjnrC8kKTgsjZca54GCOIL5Au-zMFb5auZxI2U2/s320/HOUE.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">"Se concordarmos com Marx que 'a força de trabalho não é o trabalho realmente realizado, e sim o simples potencial e habilidade para trabalhar', então será preciso dizer que qualquer humano ou animal, real ou virtual, feminino ou masculino, possui essa potencialidade masturbatória, a <i>potentia gaudendi</i>, o poder de produzir prazer molecular, e, portanto, possui poder produtivo sem ser consumido e esgotado no próprio processo.</p><p style="text-align: justify;">Até agora conhecemos uma relação direta entre a pornificação do corpo e o grau de opressão. Na história, os corpos mais pornificados têm sido os dos animais não humanos, os das mulheres e os das crianças, o corpo racializado do escravizado, o corpo do jovem trabalhador, o corpo homossexual. Mas não há relação ontológica entre anatomia e <i>potentia gaudendi</i>.</p><p style="text-align: justify;">É do escritor francês Michel Houellebecq o mérito por ter compreendido como construir uma fabulação distópica sobre esse novo poder do capitalismo global, que fabricou a megavadia e o megatarado. O novo sujeito hegemônico é um corpo (frequentemente codificado como masculino, branco e heterossexual) farmacopornograficamente suplementado (pelo Viagra, pela cocaína, pela pornografia etc) e consumidor de serviços sexuais pauperizados (frequentemente exercidos por corpos codificados como femininos, infantis ou racializados)"</p><p style="text-align: justify;">(Paul B. Preciado, <i style="font-weight: bold;">Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica</i>, trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro com a contribuição de Verônica Daminelli Fernandes, Zahar, 2023, p. 43)</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-41471060291242510802024-02-02T06:27:00.000-08:002024-02-02T06:27:21.873-08:00Borges / Joyce<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKo21XZvQ5N_AVy2fTYhnMlIwWgy7OLnrJWlHPJrb2ifxgXjO1RUwcM63g009f9z6IUVcAysqG_k4jy5EidCVOKDjkNlkgekR4um061KAVkrnxL_KJaDOtOm6M_-oLBmttGpwDaD6_fScBhP2GLhxfch_88Ex4kR982tKw_vKiMWWGWxRYQZR31nm_/s738/joyce%20borges.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="380" data-original-width="738" height="165" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKo21XZvQ5N_AVy2fTYhnMlIwWgy7OLnrJWlHPJrb2ifxgXjO1RUwcM63g009f9z6IUVcAysqG_k4jy5EidCVOKDjkNlkgekR4um061KAVkrnxL_KJaDOtOm6M_-oLBmttGpwDaD6_fScBhP2GLhxfch_88Ex4kR982tKw_vKiMWWGWxRYQZR31nm_/s320/joyce%20borges.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">De 1936 a 1939, Jorge Luis Borges publicou a cada dois meses uma página na revista <i>El Hogar</i>. Intitulada “Libros y autores extranjeros. Guía de lecturas”, com uma ampla variedade de artigos, resenhas e traduções fragmentárias de literatura em outros idiomas que não o espanhol. Nesse espaço, Borges publicou dois artigos sobre James Joyce – mostram sua característica leitura seletiva. Em 5 de fevereiro de 1937, publica “Biografía sintética: James Joyce”, com dados básicos e a afirmação que Joyce é atraído pelas “obras vastas” de Dante e Shakespeare. Ainda na “Biografía”, Borges elogia o <i>Ulisses</i> de Joyce (a música de sua prosa é incomparável), mas desdenha as obras anteriores: “os primeiros livros de Joyce não são importantes. Ou melhor, o são unicamente como antecipações do ‘Ulisses’ ou como auxílio à sua inteligência”.</p><p style="text-align: center;">*</p><p style="text-align: justify;">Aquilo que Borges mais admira no romance de James Joyce é sua variação, a multiplicação impressionante de estilos e linguagens. Nesse mesmo texto de 1937, Borges aproveita o espaço para marcar sua leitura recente do livro seguinte de Joyce, ainda inédito, mas com fragmentos já publicados em revistas – Borges dá o título <i>Obra em gestación</i>, referência àquilo que se tornará o <i>Finnegans Wake</i>. Borges fala de “languidez” nesse último trabalho, deixando nas entrelinhas o juízo de que aquilo que havia dado certo no passado foi levado até seu ponto de exaustão.</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-72269965521921467712024-01-09T09:02:00.000-08:002024-01-09T09:03:14.758-08:00As tabuletas<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEinIYWxXnI6CJE5nu0WF820cBnH3Wl7slmK1EJbzd_pHi4fdEaPwL1ZiGV3OqkW6fM05VkM2tmNptNb-joUJjgZXTuMK4wc-FJ1XQzUBlNHwuvSwd7G3G9wikGUi-zLr0l0EvhpMFRRSqNqqKxsQ4FZcqJyOxeEPSAYlbv_3PhUUg9YlXBQCpr522q8/s728/TABULETA.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="296" data-original-width="728" height="130" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEinIYWxXnI6CJE5nu0WF820cBnH3Wl7slmK1EJbzd_pHi4fdEaPwL1ZiGV3OqkW6fM05VkM2tmNptNb-joUJjgZXTuMK4wc-FJ1XQzUBlNHwuvSwd7G3G9wikGUi-zLr0l0EvhpMFRRSqNqqKxsQ4FZcqJyOxeEPSAYlbv_3PhUUg9YlXBQCpr522q8/s320/TABULETA.jpg" width="320" /></a></div><p style="font-weight: bold; text-align: justify;"><b><br /></b></p><div style="text-align: justify;"><b style="font-weight: bold;">1)</b> Mais ou menos pela metade de seu livro <i>Eros, o Doce-Amargo</i>, Anne Carson fala de "livros e tabuletas" da Antiguidade que "podiam ser dobrados". Algo comum, recorrente: a superfície de escrita mais comum para cartas e mensagens nos tempos arcaicos e clássicos, continua Carson, era o <i>deltos</i>, uma tabuleta de madeira ou cera com dobradiças que era dobrada após a inscrição para esconder as palavras escritas. Tabuletas de metal, por outro lado, era usadas para escrever "especialmente por pessoas que consultavam oráculos". A cera para os amores terrenos, o metal para os amores divinos.</div><p></p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> Carson dá um exemplo: em Dodona, um santuário oracular ativo desde o século VII, arqueólogos descobriram certa de cento e cinquenta tabuletas com perguntas escritas para o oráculo de Zeus. "A grande variedade de caligrafias, soletração e gramática encontradas nas tabuletas", escreve Carson, "indica que cada uma delas foi inscrita pelo próprio inquiridor". As tabuletas, nesse caso, são de chumbo. Cada uma é cortada em forma de uma faixa estreita como uma fita, e ao longo do comprimento da faixa estão escritas duas a quatro linhas. A faixa, após a escrita, é cuidadosamente dobrada, várias vezes, para esconder a mensagem. "As palavras que você escreve na ficha de Dodona são um segredo entre você e o oráculo de Zeus", finaliza Carson (ela cita em nota o livro de H. W. Parke, <i>The Oracles of Zeus</i>, em uma edição de 1967).</p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> Carson está, portanto, chamando atenção para a materialidade da escrita na Antiguidade: os gestos envolvidos na escrita e na leitura, algo que se percebe na dinâmica da dobra das tabuletas que ela enfatiza. No capítulo seguinte, contudo, ela vai explorar também a dimensão metafórica dessa oscilação entre "mostrar" e "esconder" nas cenas de leitura e escritura, analisando a narração do mito de Belerofonte por Homero no sexto capítulo da <i>Ilíada</i> (algo semelhante já aparece também no livro que Derrida dedica ao <i>Fedro </i>de Platão, <i>A farmácia de Platão</i>, no qual a análise de uma cena de leitura é levada adiante tanto pelo viés da materialidade quanto da metaforicidade - Sócrates quer escutar a leitura do manuscrito de Lísias, que Fedro leva consigo).</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-11852430202042354072024-01-05T11:29:00.000-08:002024-01-05T11:29:04.979-08:00Nossa ruína<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxcX2U1vIGfd-xWoiJoiqEUo1kESz8oHqBABccUx7OSFqrKgdrDoGB1s-B4pEqNrkk6Nvfzw7pWJ2xp4vqul8yu9_xcSb7VDgBCoZladkZkEhAwKXO9gNnncZz1T3ChACtlQZ7mzZ8579IGhMyn7fFgj8ASBk2ao0QO2ccfzucFXYTAmgGpYoDFRxf/s998/pizarnik%20kafka.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="476" data-original-width="998" height="153" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxcX2U1vIGfd-xWoiJoiqEUo1kESz8oHqBABccUx7OSFqrKgdrDoGB1s-B4pEqNrkk6Nvfzw7pWJ2xp4vqul8yu9_xcSb7VDgBCoZladkZkEhAwKXO9gNnncZz1T3ChACtlQZ7mzZ8579IGhMyn7fFgj8ASBk2ao0QO2ccfzucFXYTAmgGpYoDFRxf/s320/pizarnik%20kafka.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">"Ser poeta é ocupar os espaços de olhos fechados. A casa quase não tem móveis: a cama, a escrivaninha, os livros e a lousa onde ela<i> investiga</i> os poemas. Olga logo percebe que Alejandra está procurando algo. Primeiro revira as coisas com desafeição, mas, à medida que não encontra o que procura, com crescente desespero e cegueira. Procura às escuras.</p><p style="text-align: justify;">'É possível que alguém tenha levado sem me pedir?'. 'Mas o que exatamente você está procurando?', pergunta Olga, já quase apavorada. '<i>O</i> livro', Alejandra responde com o artigo em itálico, movendo volumes de um lado para o outro da escrivaninha, cada vez mais angustiada. Pareceria que, ao não encontrar o livro, procurasse oxigênio. 'Ufa. Achei', diz aliviada. Senta-se na cama, bem perto de Olga. 'É isto que eu queria que fosse meu diário, mas é impossível. Só ele poderia ter feito isto aqui'.</p><p style="text-align: justify;">Alejandra se refere a Kafka. Tem nas mãos os <i>Diários</i>, num exemplar de 1953, com tradução de Juan Rodolfo Wilcock, reiteradamente manuseado, lido, rabiscado, consultado de novo, uma vez após outra, por toda uma vida, com algumas folhas presas com grampos. Ela o segura como se fosse um coração arrancado, que queima. Olga o arrebata dela com doçura e abre uma página ao acaso. Lê o sublinhado de Alejandra: 'Há algum mal-entendido, e esse mal-entendido será nossa ruína'"</p><p style="text-align: right;">Juan Tallón, <i style="font-weight: bold;">Fim de poema</i>, trad. Rubia Goldoni e Sérgio Molina, Poente, 2023, p. 28</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-28386386465107576412023-12-29T13:22:00.000-08:002023-12-29T13:22:39.016-08:00Quién mierda es Onetti?<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_5-f3GM_2xbfybhAXrD5GgXvJTTaiToWQ_RS25-DkTG8HvWKCtMyMgyrC4Ncv0OjbPrlysyXjIvjSxq2-SmKE8l_NiF1xlhCOvd5k26PknC2_jKEsh_ea665b-ZxlEGGqnljuwOAPFMaIr-nIEE-5KBdL8yUIUk8DB9atLcVbkaqaxRGgmYqWhxbv/s1024/ONETTI%20GALEANO.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="584" data-original-width="1024" height="183" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_5-f3GM_2xbfybhAXrD5GgXvJTTaiToWQ_RS25-DkTG8HvWKCtMyMgyrC4Ncv0OjbPrlysyXjIvjSxq2-SmKE8l_NiF1xlhCOvd5k26PknC2_jKEsh_ea665b-ZxlEGGqnljuwOAPFMaIr-nIEE-5KBdL8yUIUk8DB9atLcVbkaqaxRGgmYqWhxbv/s320/ONETTI%20GALEANO.jpg" width="320" /></a></div><br /><b><br /></b><p></p><p style="text-align: justify;"><b>1)</b> Em uma entrevista feita por Eduardo Galeano em 1980, Juan Carlos Onetti faz referência ao episódio que o colocou em maus lençóis com a ditadura uruguaia: presidiu um júri literário para contos que deu o primeiro prêmio para uma história que o regime qualificou de "pornográfica". "Por conta disso", conta Onetti, "me deixaram preso por três meses". O autor do conto ficou preso por quatro anos. "Chegaram telegramas do mundo todo", diz Onetti, "Até o <i>New York Times</i> mandou um telegrama. O chefe de polícia perguntou: <i>Pero quién mierda es este Onetti?</i>".</p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> "Como foi a prisão?", pergunta Galeano. Onetti diz que, no início, foi muito ruim; ficou na solitária nos primeiros oito dias. "Foi Dolly quem me salvou da claustrofobia", diz Onetti, fazendo referência a sua quarta esposa (vasculhei a internet para tentar descobrir seu nome de solteira, mas não tive sucesso - só encontrei referências a "Dolly Onetti"), "ela conseguiu meter na cela alguns romances policiais". Como exatamente ocorreu esse contrabando de literatura detetivesca para dentro da prisão, Onetti não esclarece. O que fica claro é a posição central que Onetti dá ao gênero policial em sua vida de leitor: "estou preso pela curiosidade", ele diz, e é isso que o interessa na leitura.</p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> Galeano, no entanto, não fica satisfeito com essa versão parcial do Onetti leitor - quer saber mais, perguntando sobre os autores "sérios". Com isso, Onetti chega a Faulkner, uma referência constante (Saer, outro escritor que não existiria sem Faulkner, escreveu linhas excelentes sobre a relação de Onetti com Faulkner): "já li páginas de Faulkner que me fizeram pensar que não era mais necessário seguir escrevendo", diz Onetti. "É tão magnífico, tão perfeito", ele insiste, acrescentando ainda que seu romance preferido de Faulkner é <i>Absalom, Absalom!</i> ("<i>O som e a fúria</i> tem muito de Joyce para meu gosto", acrescenta Onetti). </p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-41372426887557306922023-12-28T05:39:00.000-08:002023-12-28T05:39:39.959-08:00A escrita como faca<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7KqQVNX6qEcusVAxIERsQJeZmTLhE8A6EYiUCr1O_kWFOkWFmBgw8j1F96V3qg26aLB4-50XsFJRoBlqXC5hVqTp0ve1wu9XApKmzFFxRq4IKdrqbkQIWgolEa5W3aTRO04gtVp8SEsquU-TaG2ZOloYX2IHMKCzxSCN-Zz132WBlbwuZItS_ajBj/s596/ERNAUX.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="440" data-original-width="596" height="236" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7KqQVNX6qEcusVAxIERsQJeZmTLhE8A6EYiUCr1O_kWFOkWFmBgw8j1F96V3qg26aLB4-50XsFJRoBlqXC5hVqTp0ve1wu9XApKmzFFxRq4IKdrqbkQIWgolEa5W3aTRO04gtVp8SEsquU-TaG2ZOloYX2IHMKCzxSCN-Zz132WBlbwuZItS_ajBj/s320/ERNAUX.jpg" width="320" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>Setembro de 1963</i></td></tr></tbody></table><br /><p style="text-align: justify;">"As palavras vêm sem que eu as procure ou, ao contrário, exigem uma tensão extrema, não um esforço, e sim uma tensão, para serem ajustadas com precisão à representação mental. Quanto ao ritmo da frase, não trabalho nele, eu o escuto em mim, apenas o transcrevo. Meus rascunhos - trabalho em folhas de papel, com canetas de ponta fina - são cheios de rasura - mas isso também depende dos textos, de acréscimos, palavras escritas em cima de outras, deslocamentos de frases e parágrafos" (p. 119-120)</p><p style="text-align: justify;">"Muito cedo, portanto, os livros constituíram o território do meu imaginário, da minha projeção nas histórias e nos mundos que eu não conhecia. Depois, encontrei neles o manual de instruções da vida, um manual de instruções em que eu confiava muito mais que no discurso da escola e de meus pais. Eu tendia a pensar que a realidade e a verdade se encontravam nos livros, na literatura" (p. 164)</p><p style="text-align: justify;">"Quem leu <i>O lugar</i> sabe que dato na morte abrupta de meu pai, em 1967, essa reativação da memória, esse retorno da memória reprimida, essa volta para a minha história e a dos meus antepassados. Ao mesmo tempo, nesse exato momento tomei consciência da minha transformação pela cultura e pelo mundo burguês ao qual meu casamento me levou" (p. 166)</p><p style="text-align: right;">Annie Ernaux, <i style="font-weight: bold;">A escrita como faca e outros textos</i>, trad. Mariana Delfini, Fósforo, 2023</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-47691627755164603932023-12-19T16:05:00.000-08:002023-12-19T16:06:05.370-08:00Lenda privada<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgT-2B6iP7_0YV4Gb9UBoo08-9wWgYNwdCtLp_WVKCgXTQAZl4_PecmGaCRwrCtP9Gwfolmys7w22TiRgyO9s1R0gdGj_kq5vm7iaU0YkFR51wvphN39d96JWIaHitonVspHXFzrjZyEyfP63VtF7N4riM1BpdQp1GXxRccmHskDOBLXj8_JrKO0-Tj/s591/mari.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="591" data-original-width="589" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgT-2B6iP7_0YV4Gb9UBoo08-9wWgYNwdCtLp_WVKCgXTQAZl4_PecmGaCRwrCtP9Gwfolmys7w22TiRgyO9s1R0gdGj_kq5vm7iaU0YkFR51wvphN39d96JWIaHitonVspHXFzrjZyEyfP63VtF7N4riM1BpdQp1GXxRccmHskDOBLXj8_JrKO0-Tj/s320/mari.jpg" width="319" /></a></div><p style="font-weight: bold; text-align: justify;"><b><br /></b></p><div style="text-align: justify;"><b style="font-weight: bold;">1)</b> Gosto muito dessa foto que está em <i>Leggenda privata</i>, livro do escritor italiano Michele Mari lançado em 2017 (esse paradoxo do título é igualmente fascinante: uma "lenda", algo da ordem do comunitário, que é, também, "privada", íntima). O autor criança aparece na frente da mãe, o pai-rival tira a foto: "só por cima do meu cadáver" poderia ser o comentário de Mari, reiterando a descrição das tensões do filho com o pai. Eles não estão dentro de casa, nem fora - estão em um espaço intermediário, desconfortável. </div><p></p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> Na foto, a paisagem se funda perfeitamente com a materialidade da casa familiar: parte do horizonte está tomada por essa natureza tão convidativa; o contraste é intenso com a madeira da casa, sua cor e textura (as feições fechadas da mãe e do menino falam de um corte com relação a essa liberdade da paisagem, tão próxima e, ainda assim, tão distante). Mari atua, portanto, nesse intervalo entre geral e particular, entre o social e o privado - dinâmica que se torna visível nessas fotos que são resgatadas do álbum familiar, algo que já acontece em algumas ficções de Sebald e, mais recentemente, em certos textos híbridos de Annie Ernaux (como em <i>Os anos</i>).</p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> A fotografia do filho e da mãe do lado de fora da casa, contudo, não oferece nada disso diretamente - depende da elaboração narrativa que faz Mari nesse livro tão sabiamente intitulado <i>Lenda privada</i> (é no desdobramento ficcional dos elementos oferecidos pela imagem que melhor se identifica a produtividade estética desse paradoxo do título de Mari). </p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-56005848778694783332023-12-11T05:36:00.000-08:002023-12-11T05:36:48.808-08:00O material romanesco<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEinllxw-_MWoW63u8MC3u70bw8nJ80HPiJMXSRf18yMNPqqoC9nUdaAgTMLJVkI08yZMjT0RIXpaLHFl3GKnp-y42-N5MgUf5oU1lSrq_jPiXVaU9OWgY4KW0CyouHrmpJYbnFBbMoJFMDwP4BuhHNTr_Dkt5Y0VrDBghNxRT66c5NyLSN9CkGqdTUe/s411/MARKSON.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="398" data-original-width="411" height="194" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEinllxw-_MWoW63u8MC3u70bw8nJ80HPiJMXSRf18yMNPqqoC9nUdaAgTMLJVkI08yZMjT0RIXpaLHFl3GKnp-y42-N5MgUf5oU1lSrq_jPiXVaU9OWgY4KW0CyouHrmpJYbnFBbMoJFMDwP4BuhHNTr_Dkt5Y0VrDBghNxRT66c5NyLSN9CkGqdTUe/w200-h194/MARKSON.jpg" width="200" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">Existe um fio subterrâneo e invisível que liga dois escritores aparentemente distantes, pertencentes a mundos muito distintos: David Markson e Milan Kundera me parecem muito próximos em certa confiança na condição inesgotável da forma romanesca. Aquilo que Kundera tem de cosmopolita e multilíngue, Markson tem de estadunidense, não apenas no que diz respeito à circunscrição específica do inglês, mas também à ligação de Markson a uma cena vanguardista que o aproxima de autores como Barthelme e Pynchon. Ainda assim, Markson e Kundera se aproximam pela via da confiança que compartilham com relação às possibilidades do romance: Kundera a partir de Cervantes e Broch, Markson a partir de Wittgenstein. </p><p style="text-align: center;"><b>*</b></p><p style="text-align: justify;">Até que ponto pode ser levado o material romanesco? Até que o ponto o material romanesco pode ser identificado como tal pelo leitor? Essas são algumas das perguntas que podem surgir a partir da leitura dos romances de Markson, marcados por uma rarefação impressionante de elementos como narrador e trama. Kundera, por sua vez, interfere no discurso romanesco a partir do discurso filosófico, e vice-versa. Um movimento de oscilação que é tornado possível pela interferência, na obra de Kundera, do discurso ensaístico, que funciona como uma ferramenta de costura dos outros dois. </p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-56476610183810074792023-12-09T13:39:00.000-08:002023-12-09T13:39:06.714-08:00Punhal/revólver<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkd9bGdBnXvBbv4aw0zwp070EpnoZdsJJwl9vx6m1fGGL6xqtEvkuZfjz9x3HFBJ9ddaX-U4imZ_z5S98Q5DwO3NAq9V_bbpOfa7frnm3cOPVaF7OmMz8OhPfWwIa0E-mDgphpcugTYOlbhEMIQcCg-ftXn8i8nh9sTqmWgaNhr7p8KrKFAbGUf9do/s1397/ARLT.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1397" data-original-width="834" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkd9bGdBnXvBbv4aw0zwp070EpnoZdsJJwl9vx6m1fGGL6xqtEvkuZfjz9x3HFBJ9ddaX-U4imZ_z5S98Q5DwO3NAq9V_bbpOfa7frnm3cOPVaF7OmMz8OhPfWwIa0E-mDgphpcugTYOlbhEMIQcCg-ftXn8i8nh9sTqmWgaNhr7p8KrKFAbGUf9do/s320/ARLT.jpg" width="191" /></a></div><br /><b><br /></b><p></p><p style="text-align: justify;"><b>1)</b> Em seu conto "La muerte y la brújula", Jorge Luis Borges apresenta a morte de Daniel Simó Azevedo, "hombre de alguna fama en los antiguos arrabales del norte", um dos homens assassinados por Scharlach para envolver seu inimigo, Lönnrot, em uma trama detetivesca que é, ao mesmo tempo, uma armadilha. Ainda sobre Azevedo, Borges informa que ele era o último representante de uma geração de bandidos que sabia o manejo do punhal, mas não o do revólver. Essa passagem de uma ferramenta de trabalho a outra - do punhal para o revólver - não é apenas um dado material, mas uma espécie de símbolo usado por Borges para falar de várias metamorfoses condensadas: a imigração, a cidade em sua relação com o campo e as fronteiras, a honra, a lei, as comunidades masculinas (a passagem do punhal para o revólver é o signo de uma transformação, talvez de uma decadência). </p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> Com isso em mente, ganha nova ressonância uma cena de Roberto Arlt em seu conto "El jorobadito": o narrador, um sujeito esquisito que duvida do amor de sua noiva, um dia conhece em um café um anão corcunda que lhe parece profundamente odioso; ele tem a absurda ideia de levar o anão corcunda à casa da noiva e fazer com que ela o beije - beijar o anão corcunda, para o narrador, seria a prova de amor que dissiparia todas suas dúvidas. Quando o plano dá errado e a noiva recusa o beijo, o <i>jorobadito</i>, evidentemente, aproveita seu protagonismo, saca um revólver, ameaça a todos na casa da noiva e exige seu beijo: é a chance que a sociedade tem de pagar os anos de abuso que sofreu (o aparecimento do revólver é apenas o clímax da construção de um personagem odioso e perigoso). </p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> Em Borges, a passagem do punhal para o revólver aparece como um problema, como uma mudança que significa a morte de um mundo; em Arlt, o problema sequer se coloca - o revólver já é um adereço indispensável, perfeitamente integrado à narrativa e ao mundo que explora. Essa dinâmica seria uma possível confirmação textual da hipótese levantada por Ricardo Piglia em seu romance <i>Respiração artificial</i> de que Borges seria o último escritor argentino do século XIX e Arlt, por sua vez, o primeiro do século XX: a passagem do punhal para o revólver, em outros termos, seria também a passagem do século XIX para o século XX.</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-10431242922539791482023-12-05T06:01:00.000-08:002023-12-05T06:01:17.125-08:00Cenas<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiKj9c5z8UKmUtkQw3a0U9iRQRIc9tQxmmZ2XtM43Dp4V6Xen_RsFaD_d9TJN_mG3prGhzAoOYnR3Jft0gRQguf97sZK5SYuiwuS686tp-cPBlrXNQ-jazPMW9ZNMGmX5zOW7bCAxzgDTdtEeTpA-KzuLV21JU7ecK2wlOW9gEKsqgR4VW9Tkrsv9Jl/s1920/PIGLIA.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1080" data-original-width="1920" height="180" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiKj9c5z8UKmUtkQw3a0U9iRQRIc9tQxmmZ2XtM43Dp4V6Xen_RsFaD_d9TJN_mG3prGhzAoOYnR3Jft0gRQguf97sZK5SYuiwuS686tp-cPBlrXNQ-jazPMW9ZNMGmX5zOW7bCAxzgDTdtEeTpA-KzuLV21JU7ecK2wlOW9gEKsqgR4VW9Tkrsv9Jl/s320/PIGLIA.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">Em suas aulas sobre o romance argentino - as "cenas do romance argentino", transmitidas em 2012 pela TV Pública Argentina em colaboração com a Biblioteca Nacional -, Ricardo Piglia separa uma anedota, um caso curioso noticiado pela imprensa da época, uma luta ocorrida em 23 de junho de 1856, um domingo, no Teatro Argentino de Buenos Aires, para uma plateia de mil e duzentas pessoas (todos homens). Piglia fala da nacionalidade daqueles que se inscreveram para lutar com o grande campeão, "o homem mais forte do mundo", é o que diz o jornal, diz Piglia, "Míster Charles": três argentinos, três italianos, dois bascos, um irlandês, um "oriental" (ou seja, do Uruguai), um francês e um homem "de nacionalidade desconhecida" (Piglia presume que seja centro-europeu). Essa enumeração é o que dá força ao relato, levando-o àquele ponto paradoxal em que melhor se vê o artifício e, simultaneamente, a verossimilhança (como nos sapatos sem pares <a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2011/02/os-dentes.html">de Coetzee</a> em <i>Elizabeth Costello</i>). </p><p style="text-align: center;">*</p><p style="text-align: justify;">A partir dessa enumeração de nacionalidades, Piglia chega à cena migratória argentina do século XIX. Em 1856, diz Piglia, o que aparece é uma cena "primitiva", já os fluxos migratórios de peso ainda estão no futuro. Ainda assim, continua Piglia, é possível encontrar rastros dessa migração nos textos da época, como o próprio <i>Martín Fierro</i>. Neste texto, diz Piglia, aparece o "gringo da mona", um italiano que andava com uma macaca tirando a sorte para ganhar a vida; aparece também um "inglés zanjeador", que sempre falava de "Inca la perra", uma referência à Inglaterra vinda, provavelmente, de um irlandês; Piglia acrescenta ainda que, nesse ponto do século XIX, imigrantes irlandeses e bascos chegavam à Argentina para cavar valas que serviam para separar as fronteiras das estâncias (o gaúcho achava indigna qualquer atividade que envolvesse desmontar do cavalo).</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-89589655107690182672023-11-30T07:08:00.000-08:002023-11-30T07:08:38.952-08:00Saer x Puig<p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;">"O tópico ideológico da sexualidade concebida à luz da psicanálise, que pretende aparecer nos romances de Puig como uma inovação e como uma infração atrevida de tabus sociais, está, na história do romance, perfeitamente datado: as grandes obras que o incorporam, Mann, Svevo, Lawrence, Musil, Breton, e também Schnitzler (a quem devemos também uma incursão ortodoxa no monólogo interior), podem ser localizadas ao redor dos anos 1920. Não é necessário acrescentar que nenhum desses autores incorre no simplismo de Puig. Como se vê, a pretensão vanguardista de Puig não é mais do que um catálogo de tópicos cuja vigência desaparece da literatura ao redor dos anos 1930. Puig não apenas é superficial: é também antiquado".</p><p style="text-align: justify;">(Juan José Saer, "The Buenos Aires Affair" [1973], <i style="font-weight: bold;">Ensayos, borradores inéditos 4</i>, Seix Barral, 2015, p. 73)</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-8989788207385632472023-11-29T04:08:00.000-08:002023-11-29T04:08:06.737-08:00Ser idiota<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiXkvO6VTXi2zeG1UK7pmFN-Qn2-EVYxfZxy2FZc6t2fnZblvD19r9oQEdt7shT-c1h4EjIUOUhs1WptbDlwAR82WdanFXn9JtCWMwF_ls_0fgp0SaPI0nMNJaKEVIZp15Yli_LWdgmG_GwndBNh57Ahg1mV6wk3NPUSKXoCeuOMP4Eq-DXJUtfZhoY/s887/AIRA.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="497" data-original-width="887" height="179" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiXkvO6VTXi2zeG1UK7pmFN-Qn2-EVYxfZxy2FZc6t2fnZblvD19r9oQEdt7shT-c1h4EjIUOUhs1WptbDlwAR82WdanFXn9JtCWMwF_ls_0fgp0SaPI0nMNJaKEVIZp15Yli_LWdgmG_GwndBNh57Ahg1mV6wk3NPUSKXoCeuOMP4Eq-DXJUtfZhoY/s320/AIRA.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">Ser idiota, criar a partir da própria idiotice... Em <i>Nouvelles Impressions du Petit Maroc</i>, relato-ensaio escrito em abril de 1990, César Aira acessa esse tema profundamente flaubertiano (a <a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2012/01/o-idiota-da-familia.html">idiotice</a>), o que parece bastante apropriado uma vez que está em uma residência de escritores na França. A partir dessa idiotice, escreve Aira, é preciso escrever mal, é preciso escapar da facilidade imediata da língua materna: quando se escreve mal, o produto não é o texto, e sim o autor (é por isso, também, que Aira defende nesse relato-ensaio a ideia de que o escritor não deve corrigir: a correção é feita com olhar de leitor - mais do que isso, com uma estética de leitor -, que invalida e conspurca todo o projeto de escritura).</p><p style="text-align: center;"><b>*</b></p><p style="text-align: justify;">Outra coisa interessante que coloca Aira nesse brevíssimo livro é a relação entre guerra, turismo e literatura - com o fim do período das guerras, produtoras de relatos por excelência (e nisso há um fio subterrâneo que liga Aira em negativo à tese de Walter Benjamin sobre o silêncio dos soldados que retornam), como os romances de Ernst Jünger ou Louis-Ferdinand Céline (os exemplos são meus, não de Aira), surge a empobrecedora era do turismo. Ainda assim, mesmo na brevidade desse juízo e dessa tensão (guerra x turismo; ontem x hoje), Aira consegue nomear um escritor que, dentro dessa era (seguindo, de certa forma, seus ditames), consegue apresentar uma obra superior: Bruce Chatwin. </p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-51584270897206069642023-11-24T01:56:00.000-08:002023-11-24T01:56:30.184-08:00Cópia, paródia<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjpUlXpR2gb-wLAdQYAqYX2v8ZsNjtpEf0jbKjNoSCH24v_8_l9zImIARWavvyQbokLuz6uLpTllQs63NYaDIWBAW349rFA3nucQfIvrnuCFfpQq1Rt6DtTcQV7sQs5UjTXxhmkewcdmCRv152Scl4W-5gMr0rYxuW0EZ3so27vzVvPSul8T88t4-p8/s385/ludmer.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="227" data-original-width="385" height="189" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjpUlXpR2gb-wLAdQYAqYX2v8ZsNjtpEf0jbKjNoSCH24v_8_l9zImIARWavvyQbokLuz6uLpTllQs63NYaDIWBAW349rFA3nucQfIvrnuCFfpQq1Rt6DtTcQV7sQs5UjTXxhmkewcdmCRv152Scl4W-5gMr0rYxuW0EZ3so27vzVvPSul8T88t4-p8/s320/ludmer.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">"A história copia e parodia a história, a história plagia a literatura.</p><p style="text-align: justify;">O que narra o conto de Borges 'Tema do traidor e do herói' (situado na Irlanda e com alusões a Parnell, ao <i>Fergus</i> de Yeats <i>citado</i> por Joyce no primeiro capítulo de <i>Ulisses</i>, aos druidas e sua doutrina da transmigração, aos ciclos de Vico), é como o assassinato 'real', histórico, do traidor-herói da emancipação, <i>reproduz </i>o assassinato 'literário' de <i>Júlio César</i> de Shakespeare segundo uma <i>tradução</i> do celta; também foram <i>copiadas</i> partes de <i>Macbeth</i>. O assassinato, em que participou o povo em uma <i>reprodução</i> dos Festspiele suíços, <i>prefigurou</i> por sua vez o de Lincoln. O investigador que descobre a verdade histórica entra na trama da história escrita: cala a verdade e dedica um livro, também previsto em sua escritura, à glória do herói".</p><p style="text-align: justify;">(Josefina Ludmer, <i style="font-weight: bold;">O gênero gauchesco</i>, trad. Antônio Carlos Santos, Argos, 2002, p. 98-99)</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-42178380761490466932023-11-11T11:02:00.001-08:002023-11-11T11:02:52.494-08:00A seus pés<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6cO27IZlYSHhsxCttS-DMebWU1xD2Pyt15Ax2Pw15nCoNzwuygsXirWPn-QFU_WGamB8MjD-j6HlcxT6B0EJEw64khQ6ZmdDcLDwL10OUFcGpLJOGhfJbwOENVPx_8Gv-508w6nvt0pR6-wRMxOEpuElrUydHLsHzVikQt6Adbr9shhGKt8N59vhg/s1337/BRODSKY.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="591" data-original-width="1337" height="141" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6cO27IZlYSHhsxCttS-DMebWU1xD2Pyt15Ax2Pw15nCoNzwuygsXirWPn-QFU_WGamB8MjD-j6HlcxT6B0EJEw64khQ6ZmdDcLDwL10OUFcGpLJOGhfJbwOENVPx_8Gv-508w6nvt0pR6-wRMxOEpuElrUydHLsHzVikQt6Adbr9shhGKt8N59vhg/s320/BRODSKY.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">"Joseph Brodsky havia se estabelecido nos Estados Unidos apenas recentemente - ele se tornaria cidadão americano no ano seguinte -, tendo morado em diferentes cidades europeias após ter sido expulso de sua terra natal, a União Soviética, em 1972. Tinha apenas trinta e seis anos e uma vida difícil que incluía um estado quase de inanição durante o cerco alemão de Leningrado e um ano e meio de trabalho agrícola forçado (parte de uma sentença de cinco anos por 'parasitismo social', a qual cumpriu em exílio no norte da Rússia antes que fosse comutada); o tabagismo intenso e as doenças cardíacas o envelheceram.</p><p style="text-align: justify;">Era praticamente careca, faltavam-lhe dentes, tinha uma barriga enorme. Usava as mesmas roupas largas e sujas todos os dias. Mas para Susan ele era intensamente romântico. Esse foi o começo de uma amizade que duraria até a morte dele, em 1996, e naqueles primeiros dias ela estava encantada com ele. Susan fazia parte daquele grupo de literatos estadunidenses para quem escritores europeus eram sempre superiores aos locais e para quem sempre havia algo particularmente exaltado e sedutor em um escritor russo, sobretudo em um poeta russo.</p><p style="text-align: justify;">Joseph Brodsky veio com elogios de, entre outros, W. H. Auden e Anna Akhmatova. Também foi um herói. Um mártir, até: um escritor feito para sofrer como um criminoso por sua arte. E todos sabiam que ele ia ganhar o Nobel. Susan estava a seus pés. Via lampejos de genialidade em cada comentário dele, nos trocadilhos que tentava fazer ('Muerto Rico') e em suas piadas casuais ('Se você quer ser citado, não cite'). Era condescendente com a pancadaria morosa dele dirigida a Tolstói (ele via Tolstói 'de modo algum equiparado a Dostoiévski', com um tipo de Margaret Mitchell erudito que ajudou a preparar o caminho para o realismo socialista) e com seus julgamentos literários estranhíssimos (a escrita de Nabokov era 'muito marinada')".</p><p style="text-align: justify;">(Sigrid Nunez, <i style="font-weight: bold;">Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag</i>, trad. Carla Fortino, Instante, 2023, p. 26-28)</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-9589800802943559802023-11-03T07:55:00.001-07:002023-11-03T07:55:40.230-07:00Os anos<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrwGYzac5ed08UHRuR-uuaKR2Ym_jF_Wrtre-5-iH63m9K_a9Rcom3lb4R-iVLIAVs7VI_JJFCZgDyiEZNdrScdN8Md7W6sgJVtGOVUroAkuA3kThl4svu8207S0dZ1im0wFF0Azy-CgCj28iRukgz1kFDZJBSrV6mcLcIejFq9dxVYXxRT4iNlgMu/s1028/ERNAUX.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="535" data-original-width="1028" height="167" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrwGYzac5ed08UHRuR-uuaKR2Ym_jF_Wrtre-5-iH63m9K_a9Rcom3lb4R-iVLIAVs7VI_JJFCZgDyiEZNdrScdN8Md7W6sgJVtGOVUroAkuA3kThl4svu8207S0dZ1im0wFF0Azy-CgCj28iRukgz1kFDZJBSrV6mcLcIejFq9dxVYXxRT4iNlgMu/s320/ERNAUX.jpg" width="320" /></a></div><br /><b><br /></b><p></p><p style="text-align: justify;"><b>1)</b> A narrativa de <i>Os anos</i>, de Annie Ernaux, nos faz acompanhar o nascimento, crescimento e amadurecimento de uma mulher que conta sua história na terceira pessoa – até as últimas páginas do livro, quando a voz em terceira pessoa encontra seu “eu” no presente. Contudo, essa progressão alcança uma amplitude que faz a história expandir os próprios horizontes. Em paralelo à história dos anos de uma vida, encontramos também a história da Europa e da França, seus presidentes, suas crises de imigrantes, ataques terroristas, manchetes bombásticas da imprensa, morte de intelectuais e celebridades, enfim, um vasto contingente de detalhes que costuram a subjetividade da narradora ao cenário social mais amplo.</p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> Ao longo desse percurso, muitos nomes são citados – Sartre, Simone de Beauvoir, Mitterand, Aldo Moro – e muitos eventos de ampla repercussão mencionados – da Libertação ao 11 de Setembro. Nessa perspectiva, o romance de Ernaux oferece uma sorte de retrospectiva indireta da cultura francesa ao longo da segunda metade do século XX. É possível recordar, por exemplo, o romance que Georges Perec lança em 1965, <i>As coisas: uma história dos anos sessenta</i>, livro de estreia do autor, com o qual vencerá o Prêmio Renaudot (que Ernaux receberá quase vinte anos depois). Encontramos em Perec o mesmo frenesi do consumo e da novidade que vemos na rememoração de Ernaux, com a diferença que Perec escreve no calor do momento.</p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> O mercado de trabalho é outro personagem permanente em <i>Os anos</i> – a colocação profissional da narradora e de sua geração, em primeiro lugar, e, adiante, o cenário bem mais limitado reservado à geração de seus filhos. As críticas à burocratização da sociedade e o inchaço dos centros urbanos, que encontramos em <i>Os anos</i>, remetem a outro escritor francês que construiu sua fama inicialmente a partir de um retrato ácido desses ambientes: Michel Houellebecq. O autor, que lança <i>Extensão do domínio da luta</i> em 1994, pode ser visto como uma das tantas personalidades históricas que saem renovadas da narração de <i>Os anos</i>, tendo seus projetos pontuais de análise da realidade francesa vitalizados pelo movimento panorâmico que Ernaux oferece em sua obra.</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-1495823193497872702023-10-30T14:03:00.003-07:002023-10-30T14:03:29.914-07:00Chismografía<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiI7qUQiNDAmh6wpveSqJtBNhkiA_y5l12hD1NsS8nsEj0_lwB055B0W9Zz1iRacbQd3YmkSI0WOU8ZTiwNJ_y5t9F1fTIOPpz2gNUs326V9nudtLZKYHkqKCZ_RBNZK2CikdTJLrynkLYyEiOLb4cLrE83SMVA7Nh41csbKPAx6zk0lZmC_dVEaeUb/s412/CHISME.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="248" data-original-width="412" height="193" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiI7qUQiNDAmh6wpveSqJtBNhkiA_y5l12hD1NsS8nsEj0_lwB055B0W9Zz1iRacbQd3YmkSI0WOU8ZTiwNJ_y5t9F1fTIOPpz2gNUs326V9nudtLZKYHkqKCZ_RBNZK2CikdTJLrynkLYyEiOLb4cLrE83SMVA7Nh41csbKPAx6zk0lZmC_dVEaeUb/s320/CHISME.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">No penúltimo capítulo de <i>A traição de Rita Hayworth</i>, de número 15 (intitulado "Caderno de Pensamentos de Herminia, 1948"), a mulher que toma a frente da narração, Herminia, em determinado momento recusa a própria escritura e os temas que vem abordando: <i>¿Pero qué estoy escribiendo hoy? Esto es pura chismografía. Basta, no tengo nada edificante que decir así que mejor será callarme</i>. São três frases absolutamente centrais para a poética de Puig, toda ela uma "chismografía" - palavra, aliás, excelente (na tradução brasileira de Glória Rodríguez - na Biblioteca do Leitor Moderno da Civilização Brasileira, edição de 1973 - está "mexericografia", uma solução sonora e vistosa). Sobre a última frase, é possível perguntar: caso tenha sido esse o caso, qual foi o percurso que levou Puig a Wittgenstein?</p><p style="text-align: center;">*</p><p style="text-align: justify;">O <i>chisme</i>, para Edgardo Cozarinsky (escrevi <a href="http://falcaoklein.blogspot.com/2015/05/museu-do-chisme.html">sobre seu livro</a> <i>Museo del chisme)</i>, é uma prática universal. Uma "forma plebeia e incipiente da literatura", fruto da conversação, da mobilidade social, do viver-junto posto em discurso. O <i>chisme</i> diz respeito à imaginação e à transmissão oral - está ligado à literatura, mas é transitório, é reelaboração permanente, possibilidade pura. Não surpreende, portanto, que Cozarinsky cite o ensaio de Walter Benjamin sobre Leskov e o narrador, falando (com Barthes) da narração como tecido, trama interminável e renovável que articula obra e vida (daí decorre também a principal referência ficcional do ensaio de Cozarinsky, Marcel Proust). </p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-46608152168052076592023-10-28T06:06:00.002-07:002023-10-28T06:06:37.014-07:00May Goulding<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZ2jnjgW9poA8VvYClZsH9t_YA-KCusUlcOGGQgJyMBuULV1GtJT5B_GdG6IbilIG4sqvxdL3Xx4MstRS-bfRs2P-1FLDX8zmGBE9BMLG7snS6BDnxGpGGtFYF5mBRWfyJN3GfuA0F36xb08er-j_ThXU4l8MjCzmzMwIBuLHdRD3vAykSFO-IOWlj/s441/ANTOLOGIA.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="212" data-original-width="441" height="154" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZ2jnjgW9poA8VvYClZsH9t_YA-KCusUlcOGGQgJyMBuULV1GtJT5B_GdG6IbilIG4sqvxdL3Xx4MstRS-bfRs2P-1FLDX8zmGBE9BMLG7snS6BDnxGpGGtFYF5mBRWfyJN3GfuA0F36xb08er-j_ThXU4l8MjCzmzMwIBuLHdRD3vAykSFO-IOWlj/s320/ANTOLOGIA.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">Na <i>Antologia da Literatura Fantástica</i>, Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo colocam duas passagens do <i>Ulisses</i>, de James Joyce: a primeira entrada é intitulada "Definição de fantasma":</p><p style="text-align: justify;"><i>O que é um fantasma?, perguntou Stephen. Um homem que se desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de hábitos</i>.</p><p style="text-align: justify;">A segunda entrada é intitulada "May Goulding" e tem relação direta com a mãe de Stephen, presença fantasmática desde o início do romance (quando é postulada a "<a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2017/08/mestre-dos-que-sabem.html">inelutável modalidade do visível</a>" diante da mãe morta):</p><p style="text-align: justify;"><i>A mãe de Stephen, extenuada, surge rigidamente do chão, leprosa e turva, com uma coroa de flores de laranjeira murchas e um véu de noiva rasgado, o rosto gasto e sem nariz, verde de mofo sepulcral. O cabelo é liso, ralo. Fixa em Stephen as órbitas vazias aneladas de azul e abre a boca <a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2011/02/os-dentes.html">desdentada</a>, dizendo uma silenciosa palavra.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>A MÃE</i></p><p style="text-align: justify;">(com o sorriso sutil da demência da morte)</p><p style="text-align: justify;"><i>Eu fui a bela May Goulding. Estou morta.</i></p><p style="text-align: justify;">(<i style="font-weight: bold;">Antologia da literatura fantástica: Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo </i>[org.]. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 218-219)</p><p style="text-align: center;">*</p><p style="text-align: justify;">Duas estratégias de justaposição de elementos convergem aqui: em primeiro lugar, a estratégia dos compiladores da <i>Antologia</i> de posicionar Joyce em contato com <i>outros textos</i>, não aqueles "habituais" quando se trata do <i>Ulisses</i>, afastando o romance da cena modernista, digamos, em direção ao reino do fantástico, do estranho, do sobrenatural (um deslocamento atípico como aquele que Borges faz em "Kafka e seus precursores"); em segundo lugar, está embutido nos trechos escolhidos o projeto de filiação de Joyce com textos do passado pelo viés do fantasma e da aparição, um encadeamento intertextual cujo desenho aponta saltos com uma extensão de 200 anos: a <i>Comédia</i> de Dante (1321), o <i>Hamlet </i>de Shakespeare (1599), o <i>Tristram Shandy </i>de Sterne (1759), o <i>Ulisses</i> de Joyce (1922). </p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-16953985209356404572023-10-24T06:43:00.003-07:002023-10-24T06:43:31.944-07:00Lugar estranho<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjnbU26MdWJUxLGJAuuwOtqU2SSYtfXfBCS12XSOXRuedHKHFJQ_GxHcGqGJLLYMdCz7HtNTx_HQW6DVjtu0IGnwp1Fns0PAL0lGZrpQB40pWDjzXhlKPzxAjOlcHrN7NfWOQP4L37Xp1-6Y_OJSn6ZB2xoK44yz3lyD6xkilmLAoE_2dPPieBWNrTE/s747/GIORGIONE.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="415" data-original-width="747" height="178" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjnbU26MdWJUxLGJAuuwOtqU2SSYtfXfBCS12XSOXRuedHKHFJQ_GxHcGqGJLLYMdCz7HtNTx_HQW6DVjtu0IGnwp1Fns0PAL0lGZrpQB40pWDjzXhlKPzxAjOlcHrN7NfWOQP4L37Xp1-6Y_OJSn6ZB2xoK44yz3lyD6xkilmLAoE_2dPPieBWNrTE/s320/GIORGIONE.jpg" width="320" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">"Todos estamos dispostos a delirar, seja pelo lado histérico, seja pelo lado obsessivo; mas chega o momento decisivo de sair do delírio. Para alguns, o problema é como entrar e não conseguem isso nunca. Se acompanhamos trajetórias como a de Walter Benjamin, ou a de Freud, vemos que sua imaginação teórica se dá em momentos em que conseguem fantasiar, em que se desprendem do real. Constroem algo que não está nos 'fatos' - a aura, o inconsciente - e, com isso, chega a olhar melhor o que talvez esteja na realidade.</p><p style="text-align: justify;">Se fazem isso, é porque, de alguma maneira, além de alçarem voo, houve um momento em que aterrissaram e puseram isso em uma escrita que é possível ler, que tem uma organização comunicável, ou várias ao mesmo tempo. Muitos cientistas e poetas constroem conhecimento com humor, esse outro incômodo ao real, e evitam se valentear fazendo metafísica ou misticismo. A poesia não é azar, escreveu Italo Calvino, mas 'uma tensão rumo à exatidão que fez ele próprio circular, várias vezes, por teorias e livros científicos"</p><p style="text-align: justify;">(Néstor García Canclini, <i style="font-weight: bold;">O mundo inteiro como lugar estranho</i>, trad. Larissa Locoselli, Edusp, 2016, p. 141)</p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4207909980352343290.post-51228848043943328952023-10-18T06:20:00.001-07:002023-10-18T06:20:31.985-07:00Carson / Bardot<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgh41-_ub_s0vxU4AxnfX3nq5y94sZ1ycK4kKNonHFxh4gmeSvre0R74jahbW0uBBEHnzTDHA3NQZX4iyA12ThnN_yXpmyR9aZZbw8Fyz_UkqT5NZHIGLxRa6u0daBM_FDWbIdQDFPdQ1ulzanIwtQ44vNhOVQ6pfAbA5cj17gzuubR-uJjC5hpsf8/s895/bardot.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="293" data-original-width="895" height="105" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgh41-_ub_s0vxU4AxnfX3nq5y94sZ1ycK4kKNonHFxh4gmeSvre0R74jahbW0uBBEHnzTDHA3NQZX4iyA12ThnN_yXpmyR9aZZbw8Fyz_UkqT5NZHIGLxRa6u0daBM_FDWbIdQDFPdQ1ulzanIwtQ44vNhOVQ6pfAbA5cj17gzuubR-uJjC5hpsf8/s320/bardot.jpg" width="320" /></a></div><br /><b><br /></b><p></p><p style="text-align: justify;"><b>1)</b> Em um de seus ensaios ("Desprezos", sobre Homero, Moravia e Godard), Anne Carson fala de Brigitte Bardot, de sua aparição na tela do cinema, do modo como usava o próprio corpo em cena: na abertura do filme de Godard baseado no romance de Moravia, escrever Carson, Bardot está nua sobre a cama e a câmera "zanza pelo seu corpo e se demora nas suas costas". "Bardot atua sem despreza nessa cena", escreve Carson, e continua: "Seus gestos são simples, transparentes; o tom de voz é serenamente banal. Sua conduta é inocente como a água. Mas, de alguma forma, bem no meio dessa exposição total e totalmente forçada de si, ela desaparece" (<i><b>Sobre aquilo em que eu mais penso</b></i>, ed. 34, 2023, trad. Sofia Nestrovski, p. 150-151).</p><p style="text-align: justify;"><b>2)</b> No momento de maior exposição, Bardot faz o próprio corpo desaparecer, faz o próprio corpo recusar qualquer tipo de aproximação <i>precisamente</i> porque se faz exposto - uma sorte de surpreendente aplicação imagética do procedimento narrativo inventado por Edgar Allan Poe em "A carta roubada". Georges Didi-Huberman, em seu livro sobre Godard (<i>Passés cités par JLG</i>), escreve: </p><p style="text-align: justify;"><i>Tout simplement parce qu'il permet de revoir quelque chose qui a été vu un jour - un visage, un corps, un geste, un paysage, un édifice, une ville, un acte collectif -, le cinéma apparaît comme une éminente façon de citer le passé: ce qui a été tourné un jour retourne sous nos yeux dans le temps, répétable à loisir, de la projection</i> (p. 67)</p><p style="text-align: justify;"><b>3)</b> Aí está a potência do cinema, tal como capturada por Carson e Didi-Huberman, por trás desse "simplesmente": parece simples, mas não é, já que o cinema permite "citar o passado" (um corpo, um gesto, um edifício), devolvendo-o ao presente, "diante nossos olhos", "sob nosso olhar". Não se trata de um retorno neutro do mesmo, como um documento "fidedigno" do que passou/aconteceu; trata-se de uma "projeção", como escreve Didi-Huberman, uma imagem no presente que guarda uma ressonância com o passado (justamente por o passado, na imagem, é "citado": vale a pena retomar o que <a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2011/12/friccoes.html">Compagnon</a> tem a dizer sobre a citação; ou, no que diz respeito à citação do passado pela "projeção", vale a pena retomar o que faz <a href="https://falcaoklein.blogspot.com/2020/07/egito.html">Billy Wilder </a>em <i>Five Graves to Cairo</i>). </p>Kelvin Falcão Kleinhttp://www.blogger.com/profile/16949078301502498223noreply@blogger.com0