terça-feira, 30 de agosto de 2011

Barthes e as imagens

1) Não é curioso que Barthes tenha começado e terminado seu percurso intelectual com as imagens? Mitologias, livro do início, da década de 1950, é dedicado às imagens da comunicação de massa, imagens do fútil e do banal, feitas para penetrar o mais facilmente no olhar, sendo substituídas logo em seguida. A câmara clara, o último livro projetado e pensado por Barthes como tal, investiga imagens artísticas: belíssimas fotografias que Barthes foi arquivando com os anos, índices que ele coletou para marcar seu próprio percurso.
2) Talvez seja esse o caminho "natural" do percurso intelectual: Barthes começa por um inventário de imagens que podem ser compartilhadas por um grande número de pessoas, para que, dessa forma, suas reflexões possam ir mais longe, parecendo mais pertinentes, mais historicamente relevantes. Décadas depois, conhecido e estabelecido, chega o momento de simplesmente partir do desejo e teorizar em cima dos artefatos artísticos que sensibilizam ao homem Roland Barthes, sem qualquer preocupação com algum efeito de legitimidade externa.
3) Anos atrás, vi Fredric Jameson dar uma palestra na USP. Me surpreendeu justamente o alto teoria de pessoalidade em sua fala: Jameson resolveu comentar, de forma detida e pormenorizada, trechos de Balzac. Fez longas citações em francês, fruindo a prosa de Balzac como se estivesse sozinho, em casa. Nada de capitalismo tardio ou estruturas adornianas de iluminação hermenêutica. Acho que só agora começo a entender o que estava em jogo naquela escolha, naquela aposta deliberada em uma crítica pautada pelo gosto e pelo desejo pessoal.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Notas sobre a teoria literária


1) A teoria é uma escola de ironia, escreveu Antoine Compagnon. A teoria frequentemente sente repulsa pela ingenuidade, quando lê o Quijote em chave paródica, por exemplo, enfatizando a função de aprendizagem da literatura (que levaria à delirante colocação em prática dos romances de cavalaria por parte de Alonso Quijano). É também a leitura de Madame Bovary como uma mulher intoxicada por certa literatura. Além de buscar uma alternativa ao senso comum, a teoria literária teria a preocupação de separar a linguagem literária da linguagem cotidiana, singularizando o uso literário em relação à linguagem comum (esse é o lado formalista mais visível da teoria).
2) Uma das coisas mais importantes e interessantes em teoria literária é o imperativo da escolha: a teoria literária é uma lição de relativismo, não de pluralismo. Ou seja, várias respostas são possíveis, algumas até aceitáveis, mas nunca de forma simultânea. Ao invés de se somarem numa visão total e mais completa, as respostas se excluem mutuamente, porque não chamam de literatura ou qualificam como literária a mesma coisa. Não é possível tudo ao mesmo tempo. O procedimento teórico te leva, necessariamente, a uma escolha.
3) Alguns autores declaram ver uma diferença considerável entre Teoria da Literatura e Teoria Literária: a primeira estaria posicionada como um ramo da História, fundada em esquemas e estruturas que designam pertencimentos; a segunda estaria preocupada com o aspecto contingente da Teoria, com o posicionamento possível de uma Teoria dentro do tempo e da história. Para Paul de Man, a Teoria Literária difere da Teoria da Literatura a partir do momento que discute não o sentido ou o valor do artefato artístico, mas as modalidades de produção de sentido e valor (o procedimento teórico que é manipulado no processo).

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Terceira geração

1) Aleksandar Hemon já escreveu em algum lugar que o primeiro livro que leu inteiro em inglês foi um livro de Nabokov [Lolita? Ada?, não lembro]. Adoraria saber russo para tentar descobrir de onde Gógol tirou sua predileção maníaca pelas descrições becos-sem-saída - aquelas voltas narrativas, aquelas super aproximações vertiginosas do narrador, que terminam em nada. Nabokov, na concisa biografia de Gógol que escreveu, exalta essa particularidade como o ápice do gênio de Gógol [já escrevi um pouco sobre esse procedimento]. E qualquer página de Nabokov atesta que esse foi um exercício que ele tomou para si durante toda vida.
2) De modo que é muito bonito ver um procedimento literário tão rico chegar à terceira geração - um procedimento muito instável, que em mãos toscas facilmente escorrega para o gratuito ou para o enfadonho [ou até para o pretencioso].
3) Os livros de Hemon estão cheios desses estrangeiros perdidos observando as cidades, seguindo velhas malucas dando asilo a centenas de gatos, imaginando onde elas vão parar depois que somem atrás de uma porta; seriam senhoras russas com formato de abóboras, tagarelando em consoantes suaves? Estariam abauladas pelo peso úmido de seus xales de desenhos barrocos? Não sei. Ninguém sabe.

domingo, 21 de agosto de 2011

Um bom ano

1) Alfred Hitchcock, 1899-1980
2) Jorge Luis Borges, 1899-1986
3) Vladimir Nabokov, 1899-1977
4) Ernest Hemingway, 1899-1961

domingo, 14 de agosto de 2011

Mesmer surrealista

1) Robert Darnton tem um livro muito bacana sobre o mesmerismo, chamado O lado oculto da revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na França [traduzido pela incansável e brilhante Denise Bottmann, editado pela Companhia das Letras em 1988]. Gostei de tudo que li do Darnton - especialmente O beijo de Lamourette. Esse livro sobre Mesmer ganha especial interesse por conta dos pontos possíveis de contato com o livro de Bolaño, Monsieur Pain, de que falei aqui.
2) Darnton, ainda no início, apresenta uma descrição dos ambientes que Mesmer criava para suas curas e tratamentos - uma cenografia cuidadosamente arquitetada para produzir, já de imediato, efeitos sobre os corpos. No interior da clínica de Mesmer, escreve Darnton, tudo era destinado a provocar uma crise no paciente. Alguns dos elementos presentes no local: tapetes espessos, cobrindo chão e paredes; grossas cortinas nas janelas; "misteriosas decorações astrológicas" criando uma atmosfera de "conhecimento oculto"; gritos e risos histéricos; espelhos estrategicamente colocados, refletindo a luz sombria e controlada; música suave, tocada em instrumentos de sopro, num piano ou na "harmônica de vidro" [um instrumento muito esquisito que Mesmer ajudou a introduzir na França].
3) O que Mesmer fazia [e fazia escondido, fazia sem dizer a ninguém como fazia, já que Darnton também escreve que muitas centenas de franceses experimentavam suas maravilhas, mas poucos compreendiam-nas plenamente, pois Mesmer sempre conservou para si mesmo os principais segredos de sua doutrina] funcionava como uma instalação, com mais de cem anos de antecedência, um arranjo de elementos visando interferir sobre o máximo possível de sentidos. Mesmer, com seus fluidos, gases invisíveis e diagramas de influências, contra-estímulos e circuitos elétricos, lembra Duchamp [os fios que levam da Noiva aos Celibatários, no Grande Vidro, a energia que percorre, de forma invisível, as rachaduras do vidro e os componentes metálicos, etc].
4) O procedimento do teatro mesmérico lembra aquele que o próprio Duchamp colocou em funcionamento na mostra First Papers of Surrealism, realizada em Nova York, em 1942. Ali, tudo era feito para provocar uma crise no observador: era preciso abandonar a banalidade retiniana e alcançar o espaço [e as relações entre as obras] com todos os sentidos. Para garantir a obstrução da visão, Duchamp colocou mais de um quilômetro de barbante entre as obras, criando um labirinto, causando mudos gritos histéricos, conspurcando o fino interior burguês com a aleatoriedade do jogo e da ironia.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O crítico como criminoso

1) Na nota introdutória de Poética da prosa, Tzvetan Todorov informa que optou por não mexer em seus textos antigos, que formam a coletânea. Uma correção profunda teria acarretado o desaparecimento do livro, escreve ele, uma vez que seus textos são sempre versões de suas obsessões recorrentes. E Todorov completa: não exploramos temas novos; sempre voltamos, como o assassino ao local do crime, às marcas já deixadas. O crítico, portanto, aparece como uma versão do assassino, uma versão daquele que retorna continuamente ao local traumático do crime. Seria possível medir a qualidade do crítico a partir de seu grau de consciência acerca dessa cena traumática e, mais além, como ela aparece, transfigurada, em seu trabalho.
2) Estamos novamente atravessando um campo no qual Piglia já deixou alguns de seus rastros. Há uma cena traumática na emergência de toda escritura, e essa cena pode se repetir ao longo de toda uma vida. Em Prisão perpétua, ao narrar a emergência de sua escritura, Piglia afirma que tudo começou com seu Diário: perdido em Mar del Prata, uma cidade que ainda não conhecia, Piglia decide narrar o vazio de seus dias - estou convencido de que se eu não tivesse começado a escrevê-lo naquela tarde jamais teria escrito outra coisa. Publiquei três ou quatro livros e publicarei talvez mais alguns só para justificar essa escritura. Por isso falar de mim é falar desse Diário. Tudo o que sou está aí mas não há mais que palavras. Mudanças na minha letra manuscrita.
3) Para Todorov, a cena traumática inaugural talvez seja o contato com os Formalistas. Os procedimentos de Chklovski e sua turma estão em todos os textos de Poética da prosa (que Todorov escreveu entre os 25 e os 30 anos de idade), o que, além de indicar uma movimentação teórica, indica também uma convivência tensa entre dois mundos, entre duas tradições, que entram em conflito na prática de um único crítico (Todorov nasceu na Bulgária e gosta de citar os textos em russo que ninguém tem acesso). Em seu ensaio sobre o gênero policial ("Tipologia do romance policial"), Todorov afirma que, ao contrário da literatura de massa - que opera a partir de fórmulas prontas, que garantem, justamente, o sucesso e a repercussão -, a obra-prima funda seu próprio gênero: o artista inovador constrói sua obra no local do crime, ali onde assassinou a tradição e a convenção, retornando continuamente à cena traumática e coletando os resíduos que ressignificará em sua obra futura.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Notas sobre a amizade

1) Penso frequentemente nessas amizades travadas a partir das dedicatórias, das epígrafes. Sempre me intrigou o fato de Valéry ter dedicado seu estudo sobre o método de Da Vinci a Marcel Schwob - uma estranheza gerada pelo simples fato de que não reconheço Schwob no estilo de Valéry. Talvez aquele breve dedicatória seja o único rastro que sobreviveu de toda uma constelação de atravessamentos de duas vidas: Valéry, Schwob e suas conversas (eles passeavam? bebiam juntos? conversavam perto da lareira?).
2) Schwob também marcava suas amizades em seus textos: se você prestar atenção, verá que todos os contos de Le roi au masque d'or contém um nome. São todos amigos de Schwob, e alguém poderia passar uma vida inteira lendo e relendo os contos de Schwob para, em seguida, ler e reler as obras de cada um dos autores citados (Anatole France, Oscar Wilde, León Daudet, Paul Arène...), encontrando, depois de anos de trabalho árduo, as mais impressionantes linhas de contato.
3) Essa junção entre amizade e leitura é também a obsessão de Ricardo Piglia: tornar-se de tal forma amigo do texto que, durante o comentário, durante a glosa, há o relato da vida daquele que escreve (a crítica como autobiografia). Em uma passagem de Blanco nocturno, Emilio Renzi conversa com Sofía Belladona, uma das gêmeas. Ela diz: minha mãe diz que ler é pensar; por acaso, sempre por acaso, descobrimos o livro onde está claramente expresso o que estivera, confusamente, ainda não pensado por nós. Certos livros parecem objetos de nosso pensamento, parecem que nos estão destinados. Para encontrá-lo, requer-se uma série de acontecimentos encadeados acidentalmente para que afinal possamos ver a luz que, sem saber, estamos procurando. Dessa forma, a leitura definitiva acontece da mesma forma que a amizade definitiva: caminhos insondáveis que parecem absurdamente simples depois de revelados.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Notas sobre as notas de Renzi

1) Emilio Renzi, narrador, personagem e alter-ego de Ricardo Piglia [cujo nome completo é justamente Ricardo Emilio Piglia Renzi], costuma atravessar as narrativas de que participa com suas notas. São comentários sobre os mais variados assuntos e, principalmente, notas de leitura. Muitas vezes os textos de Piglia que lemos parecem a montagem dessas notas que ficam sempre à espreita, como uma pele subterrânea da narrativa. Em Alvo noturno, essas notas às vezes surgem interpoladas na narração - o próprio narrador, uma entidade híbrida que mescla Piglia e Renzi [e todo um arquivo latino-americano de leituras] -, e às vezes são declaradas nas notas de rodapé.
2) Renzi está conversando com Cueto, o fiscal do povoado, que lhe ameaça. "Não gosto do que o senhor escreve", diz Cueto. "Nem eu", responde Renzi. "Não se meta onde não é chamado", insiste Cueto. Adotara agora o tom descuidado e frio dos matadores dos filmes, interfere o narrador, e prossegue, trazendo uma das notas de Renzi: O cinema, segundo Renzi, ensinara todos os provincianos a parecer cosmopolistas e canalhas [algo que poderia inclusive ter sido anotado por Manuel Puig, porque viu e viveu esse ensinamento].
3) Pouco antes, Renzi comenta com alguém do jornal a descoberta do corpo de um suicida. Alguém chamou o comissário Croce, que estava jantando com Renzi e o chamou para ir junto. Ah, ele levou você... diz o sujeito que conversa com Renzi no jornal: Você vai terminar escrevendo Os casos do comissário Croce... E Renzi lhe responde: Boa ideia. Talvez haja uma seção na caderneta de Renzi reservada para os projetos de livros futuros, e talvez por isso um projeto que já vinha com título ["Os casos do comissário Croce", com seus ecos de Chesterton] lhe pareceu uma boa ideia.
4) Mais adiante, Croce está no manicômio. Foi traído por seu auxiliar e aposentado à força. Começou a escrever cartas anônimas contando os podres do povoado. Foi internado. Renzi vai visitá-lo [talvez já tenha feito algum diagrama, esboçado algumas notas para Os casos do comissário Croce], leva uma lata de pêssegos e um frango assado. Croce lhe fala de Saldías, aquele judas, que me acusou de chegar a conclusões pouco científicas, diz Croce a Renzi, e continua: Pergunto a ele: 'o que você quer dizer com isso?'. E ele me responde: 'que não se trata de uma dedução, mas de uma indução'. Talvez Renzi faça uma anotação mental e lembre da polêmica entre Roger Caillois e Borges nas páginas da revista Sur, na década de 1940, sobre as diferenças entre o gênero policial tal como praticado na França e sua versão inglesa [um debate que transcorria justamente por essas categorias de indução e/ou dedução].
5) Croce está no manicômio e nada pode fazer para seguir com sua investigação - interrompida pelo corrupto fiscal Cueto. Quando Renzi o visita, Croce o coloca a par de suas últimas "induções" e lhe dá uma série de tarefas. Você trouxe lápis e papel?. Trouxe, disse Renzi. Vou ditar para você. Venha, vamos dar uma volta. Renzi responde: Não consigo escrever andando. Croce: Você para, escreve e depois continua andando. De modo que Renzi acumula notas e, ao sair do manicômio, passando de ônibus pelos arrabaldes do povoado, pensa que ele é a conexão de Croce com o mundo real, o auxiliar que a grande inteligência precisa para repassar e sedimentar suas especulações. Croce parecia ter-lhe confiado uma missão, como se sempre tivesse necessidade de alguém para conseguir pensar claramente, é o que diz o narrador. Alguém neutro para ir até a realidade e reunir dados.
6) "Reunir dados": uma prática etnográfica que Renzi conhece muito bem, que pratica há anos e que constitui, grosso modo, sua forma de ver o mundo. Renzi lera tantos romances policiais que conhecia o mecanismo muito bem, continua o narrador, no mesmo contexto citado acima. Ou seja, Renzi conhece o mecanismo de colaboração que movimenta o gênero policial [e nesse ponto a cobra morde o próprio rabo, porque a capacidade de observação de Renzi - sua capacidade de tomar notas e registrar os detalhes encobertos do real - é colocada sob a guarda de seu arquivo de leituras, e já não sabemos o que veio primeiro, a anotação ou a leitura].

domingo, 7 de agosto de 2011

Sobre a lei e o crime

Emilio Renzi relembra uma conversa com seu editor em Blanco nocturno:
"Quem não gostaria de ser comissário?", dissera-lhe uma noite o velho Luna. "Não seja ingênuo, menino. Eles são os verdadeiros fodões [los verdaderos tipos pesados]. Estão com mais de quarenta anos, já engordaram, já viram de tudo, têm várias mortes nas costas. Homens muito vividos, com muita autoridade, que circulam o tempo todo entre delinquentes e personalidades políticas, sempre à noite, em bailecos e bares [en piringundines y bares], conseguindo toda a droga que quiserem e ganhando dinheiro fácil porque todos esquentam a mão deles [todos los adornan]: os passadores de jogo, os comerciantes, os mafiosos, gente comum. Eles são nossos novos heróis, meu querido. Andam sempre armados [van siempre calzados], entram e saem, formam bandos, derrubam todas as portas. São os especialistas do mal, os encarregados de garantir que os idiotas durmam tranquilos, fazem o trabalho sujo das almas imaculadas. Transitam entre a lei e o crime, voam a meia altura. Meio a meio, se alterassem a dose não conseguiriam sobreviver. São os guardiães da segurança e a sociedade lhes delega a função de tomar conta do que ninguém quer ver", lhe dizia Luna naquela noite, jantando no El Pupito enquanto o instruía, uma vez mais, sobre a vida verdadeira.

Ricardo Piglia. Alvo noturno.
Tradução de Heloisa Jahn.
Companhia das Letras, 2011, p. 119-120.

PS
: Já fiz uma primeira aproximação a Blanco nocturno, antes da tradução, aqui.

sábado, 6 de agosto de 2011

Diante de Puig, 2

1) O personagem mais inquietante de The Buenos Aires affair é Leo Druscovich, o crítico de artes plásticas. Há um extenso capítulo do livro dedicado a uma retrospectiva de sua vida, desde a infância. Especialmente em The Buenos Aires affair fica bem clara a habilidade com que Puig consegue articular formas atípicas de narração [conversas telefônicas, entrevistas imaginárias, consultas médicas, relatórios policiais] com um conteúdo dinâmico e esteticamente muito forte. Mais adiante, quando o sadismo de Druscovich começa a ficar mais consciente e sistematizado [quando ele começa a arquitetar situações de violência], sua infância, tão bem construída por Puig no capítulo 6, incomoda.
2) Leo brinca com sua irmã Olga, sete anos mais velha. Sua brincadeira favorita, escreve Puig, consiste no seguinte: Olga dizia 'era uma vez uma formiguinha que ia passeando, passeando...' e, com as pontas dos dedos indicador e do médio, tamborilava desde o punho até a axila do menino e lhe fazia cócegas ali. Mas esse era apenas o começo, continua Puig, porque a culminação da brincadeira acontecia quando, depois de uma pausa, a "formiguinha" descia para o pé e subia pela perna de Leo, até chegar à rósea virilha infantil, onde as tamboriladas se multiplicavam e Olga exclamava '...e a formiguinha encontrou um ratinho e fugiu assustada...', depois do que seguiam cócegas na barriga, '...mas logo a formiguinha voltou e viu que não era um ratinho, era um sininho, e começou a puxar o sininho, tlim, tlim...', e Olga puxava o diminuto membro viril, fazendo o menino rir convulsivamente.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Diante de Puig, 1

1) Acima, a curiosa capa do livro de Alan Pauls sobre o desenhista argentino Lino Palacio [1903-1984]. Eu, infelizmente, ainda não tive acesso ao livro - não sei dizer, portanto, o que Pauls encontrou de criticamente produtivo em Palacio. Mas é interessante observar esse gesto de Pauls em direção ao que alguns chamam de "cultura de massas", ou ainda, "artefatos culturais de ampla repercussão" [que são justamente aqueles que Puig usará fartamente em seus livros: filmes populares dos anos 1930 e 1940, revistas de fofocas, revistas de moda, jornais sensacionalistas, etc]. Palacio publicou desenhos em inúmeros periódicos argentinos a partir da década de 1930, criando personagens que procuravam plasmar, nas breves historietas das tiras, estereótipos humorísticos da cultura argentina.
2) Se pensarmos em um livro como História do pranto, de Pauls, que procura atravessar as memórias sentimentais de uma criança que cresce durante a ditadura militar, lembraremos das recorrentes referências aos tais "artefatos culturais". Alan Pauls já declarou que sua trilogia [a história do pranto, do cabelo e do dinheiro] é também uma forma de rever e atualizar o vasto arquivo de imagens que ele adquiriu em sua infância, além de uma reflexão acerca da composição do imaginário argentino contemporâneo, e penso que o livro sobre um cartunista popular [que trabalhava muito com revistas infantis, como a Biliken] realizado na década de 1980 seja uma das primeiras etapas desse esforço ficcional que agora corre o mundo em tradução. E na postura de ressignificação desses artefatos, Pauls também está diante de Puig, mestre na arte da montagem de partes heterogêneas [o alto e o baixo, o popular e o erudito, etc].
3) A história da morte de Lino Palacio é bizarra e trágica: foi assaltado e assassinado em sua casa por uma mulher e dois viciados em drogas, em 1984. A mulher foi presa, a história de seu crime passou na televisão e, sob intensa cobertura midiática, foi solta em 2006.