segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Colônias penais


Penso nos fios subterrâneos que ligam Tchékhov e Bruce Chatwin, na capacidade proliferadora da literatura, que de um elemento por vezes simples, banal, promove uma espécie de disparo rizomático virtualmente infinito. Em primeiro lugar, a vida breve de ambos - o que teriam escrito se tivessem vivido mais dez, vinte anos? Mais especificamente, o incrível trabalho de escritores-viajantes de ambos - no caso de Tchékhov, a ilha de Sacalina, esse pedaço inóspito de terra ao norte do Japão que ele vista em 1890.

O relato do russo faz pensar em O rastro dos cantos, de Chatwin, por uma série de razões: antes de mais nada, a coincidência de dois lugares utilizados como colônias penais, a Austrália pelos britânicos, a Ilha de Sacalina pelos russos. Outro detalhe que aproxima os dois projetos e a preocupação dos escritores-viajantes com a população originária - no caso de Chatwin, a vivência dos aborígenes é o que dá título ao livro; no caso de Tchékhov, uma parte considerável do seu relato gira ao redor das especificidades de ainos e guiliaques. 

O fascínio com as colônias penais serve também para aproximá-los de uma figura intermediária, Kafka (Tchékhov morre em 1904, Kafka em 1924 e Chatwin nasce em 1940), outro viajante (embora mais comedido), outra figura do trânsito. A colônia penal é um dos tantos avessos monstruosos do projeto iluminista da colonização e da "civilização" dos espaços distantes (de resto, também Kafka se interessava, como os outros dois, pela experiência do outro, do nativo, do autóctone - basta pensar no conto "Wunsch, Indianer zu werden", já traduzido como "Desejo de ser índio" ou "O desejo de ser pele vermelha").

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Modelagem, nome próprio


1)
Quando César Aira escreve sobre Alejandra Pizarnik enfatiza o corte do nome próprio como estratégia de "auto-modelagem" (Self-fashioning, como diz Stephen Greenblatt), um abandono que funda a sua presença artística na "tradição": ou seja, a passagem de Flora Alejandra Pizarnik para Alejandra Pizarnik (repare que a primeira edição do primeiro livro, La tierra más ajena, de 1955, carrega ainda o nome completo). 

2) É possível armar uma história da literatura cujo principal eixo seja a recusa do nome, a transformação do nome como estrutura de fundação de uma obra: antes de decidir por Stendhal, Marie-Henri Beyle tentou outros vários (Bombet, Serpière); Faulkner acrescentou a letra "u" ao nome de família; Freud retirou as letras "is" de seu nome Sigismund; e assim por diante.

3) No contexto da América Latina, a transformação do nome também se articula com a questão do alter-ego, do espelhamento textual diferido de uma presença material, histórica - o caso paradigmático, reforçado recentemente com a publicação dos três volumes dos diários, é o de Ricardo Piglia transformado em Emilio Renzi (ele não corta o nome, ele desmembra e recompõe: seu nome completo é Ricardo Emilio Piglia Renzi). Mas o problema é central também em Roberto Bolaño (com Arturo Belano) e com Juan José Saer (com Tomatis ou Pichón Garay). 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Não me diga adeus


1)
Tununa Mercado reuniu em seu livro La letra de lo mínimo um breve texto sobre Manuel Puig, intitulado "Não me diga adeus". Ela relembra as vezes que encontrou Puig, sempre ligado às águas das piscinas: em primeiro lugar na cidade do México, ambos exilados da Argentina, Manuel nadando e Tununa olhando (o estilo crawl de Puig é impecável, escreve ela, sua pele é bronzeada, seus dentes brancos e seus cabelos negros, tudo realçado pela performance sem falhas do escritor-nadador).

2) Conversavam à beira da piscina sobre literatura e sobre a atividade da escrita - mesmo já escrevendo há dez anos, diz Puig a Tununa, que relata em seu texto, toda vez que recomeça ainda sente uma espécie de stage fright, um "pánico a la máquina" (em uma foto desse ano, 1975, ele aparece com sua Lettera 22 sobre uma mesa precária de desenho). No fim de 1974, enquanto escrevia O beijo da mulher aranha, Puig assistiu dezenas de filmes mexicanos de cabaré com objetivo de inventar um que fosse o denominador comum de todos, para ser incluído no romance. Tununa descreve os vários números musicais que Puig performou para ela.

3) Em 1978, Mercado vai a Cuernavaca para entrevistar Manuel: ele havia alugado uma grande casa sem móveis, mas com piscina. A entrevistadora leva a filha de 12 anos, Magdalena, e Puig pergunta: você gosta do Travolta? Coloca o disco de Embalos de sábado à noite e faz uma imitação perfeita do astro mencionado. Passamos o resto da tarde relembrando canções dos anos 40 e 50, escreve Tununa, rindo das imitações que Puig fazia de Esther Williams, Lilian Harvey, Marlene Dietrich. 

(Tununa Mercado, "No me digas adiós", La letra de lo mínimo, Rosario, Beatriz Viterbo, 2003, p. 59-63)

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Epígrafe


"Na epígrafe de Nombre falso, Piglia atribui a Arlt uma sentença equívoca, 'só se perde o que nunca se teve', tomada de um clássico borgiano: 'Nova refutação do tempo'. A atribuição errônea é, neste caso, deliberada e está a serviço de uma teoria da produção textual muito consistente para que um relato possa dramatizá-la com elegância. O que Piglia talvez não soubesse é que a sentença de Borges traduz outra, de Friedrich Schlegel, 'Aquilo que podes perder nunca te pertenceu', com a qual se encerra um dos 'Fragmentos do Athenaeum', o 338. Acabei de descobrir e não resisti ao impulso de avisar"

Alberto Giordano, El tiempo de la convalecencia, Rosario, Ivan Rosado, 2017, p. 67 

*

"Vou pôr uma frase de Borges na abertura do meu livro Nome falso, mas atribuí-la a Roberto Arlt: 'Só se perde o que realmente não se teve'. Essa frase não faz mais do que sintetizar o que para mim é o 'tema' central do livro: as perdas" (18 de setembro de 1975)

Ricardo Piglia, Os anos felizes: diários, volume 2, trad. Sérgio Molina, Todavia, 2019, p. 434

terça-feira, 11 de agosto de 2020

As cartas


1)
Em um texto sobre Bruce Chatwin (a introdução que escreveu a um livro reunindo fotografias de Chatwin), Roberto Calasso fala da amizade e da proximidade ao resgatar uma carta que Chatwin enviou a ele em fevereiro de 1986. Na ocasião, Chatwin estava lutando com as muitas versões possíveis do livro que seria O rastro dos cantos. Na carta para Calasso (e jamais saberemos até que ponto a afirmação é, também ela, um ato de amizade), Chatwin diz que A ruína de Kasch (livro que Calasso publicou em 1983) era seu modelo formal, por conta de seu uso do cut-up.

2) No mesmo livro que hoje reúne o ensaio sobre Chatwin (La follia che viene dalle Ninfe), Calasso também incorpora um ensaio sobre Elias Canetti. Aí existe outra carta, de 1973, quando Canetti responde a Calasso acerca de seu encontro com as Memórias de Schreber (em agosto de 1939 Canetti descobre o livro na estante de Anna Mahler e de imediato reconhece que é um dos livros da sua vida). Por conta do caos da guerra, o livro fica esquecido por nove anos - até ser lido com voracidade no fim da década de 1950 e incluído nas seções finais de Massa e poder, lançado em 1960.

3) A evocação da carta pessoal por parte do crítico: a repetição do tema por Calasso me fez pensar em uma passagem de um livro de Alberto Giordano, passagem que ficou na minha cabeça precisamente pela insistência na carta manuscrita (que faz pensar na tecnologia do envio, da filiação, operando em uma temporalidade radicalmente diversa): No ensaio "Uma profissão de fé", Giordano fala de sua amizade com César Aira e das "três ou quatro cartas muito extensas" que ele guarda do escritor, "verdadeiros ensaios epistolares", todas dedicadas a "refutar" seus posicionamentos críticos (o elogio aberto ao livro de Giordano sobre Manuel Puig, em 2001, já pertence ao presente e é feito em um breve e-mail).

domingo, 9 de agosto de 2020

Louco voo


"A literatura nada promete a não ser que por mais duramente que tentemos alcançar seu horizonte mais distante, vamos fracassar. Mas apesar de nenhuma leitura ser jamais completada, e nenhuma página ser jamais a última, voltar a um texto com o qual estamos familiarizados, seja relendo ou rememorando, nos permite uma navegação mais ampla, e nosso 'louco voo', como Dante descreve a busca de Ulisses, nos levará sempre um pouco além no significado.

E como descobre Ulisses, seja qual for a compreensão a que finalmente cheguemos, ela não será a que esperávamos. Séculos de palavras transformam a antiga chama de Virgílio numa floresta de significados, nenhum perdido, nenhum definitivo, e pode ser que quando as palavras retornem a nós em nosso momento de necessidade, elas realmente nos salvem, mas apenas provisoriamente. Palavras sempre encerram outro significado que nos escapa.

Franz Kafka imaginou em Na colônia penal uma máquina que pune prisioneiros inscrevendo em seus corpos uma misteriosa escrita. Apenas quando a agulha já penetrou profundamente na carne os prisioneiros são capazes de perceber a natureza de sua transgressão e o motivo de sua punição, um instante antes do último."


(Alberto Manguel, Uma história natural da curiosidade, trad. Paulo Geiger, Cia das Letras, 2016, p. 400)

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Zürau



"Em 12 de setembro de 1918, aos 35 anos, muitos dos quais marcados pela tuberculose que acabaria por matá-lo, Franz Kafka recusou a internação no sanatório em que seus médicos queriam confiná-lo e partiu para a aldeia de Zürau, onde vivia sua irmã Ottla. Decidira passar ali algumas semanas de repouso; acabou ficando pelo que chamaria de 'os oito meses mais felizes da minha vida'. Tratado pela irmã, sentia-se bem-disposto e descansado; comia, bebia e lia tão-somente autobiografias, obras filosóficas e antologias de cartas em tcheco e em francês. Um mês após a chegada, recomeçou a escrever: nem contos nem um novo romance, mas reflexões, fragmentos, aforismos que viriam a ser publicados em 1931, sete anos depois de sua morte, sob o título de Meditações sobre o pecado, o sofrimento e a esperança pelo amigo Max Brod."


(Alberto Manguel, A cidade das palavras, trad. Samuel Titan Jr., Cia das Letras, 2008, p. 57-58).
*



"A casa de Ottla ficava na praça do mercado, ao lado da igreja. Exceto pelos amigos e parentes, que sempre ameaçavam vir em visita, a situação aproximava-se daquela redução a um mínimo de elementos a que Kafka tendia por vocação em sua escrita - e que bem gostaria de estender a toda a vida" (p. 258)

"Mas, como bem sabia Strindberg, o inferno está pronto a irromper de uma hora para outra, anunciado por um ruído. Em Zürau, será o barulho dos ratos. A primeira crônica, semelhante a um boletim de guerra, encontra-se numa carta a Felix Weltsch, de meados de novembro de 1917: 'Caro Felix, o primeiro grande defeito de Zürau: uma noite de ratos, uma experiência medonha. Saí ileso e meus cabelos estão mais brancos do que ontem, foi o horror dos horrores'" (p. 259)

"O mesmo amálgama de cômico e de atroz, que é um dom de Kafka como de certos versos shakespearianos de uma simplicidade arcana, mostra-se em todas as crônicas epistolares sobre os ratos de Zürau, donde nascerão um dia as especulações da Toca e os episódios de Josefina a cantora ou o povo dos camundongos. Para Kafka, o 'povo dos ratos' seria sempre a imagem última da comunidade" (p. 261).

(Roberto Calasso, K., trad. Samuel Titan Jr. (sim, de novo!), Cia das Letras, 2006)

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A noite tropical


1)
Em Las tres vanguardias, curso universitário que virou livro, Ricardo Piglia apresenta, entre muitas outras coisas, uma diferença clara entre Manuel Puig e Saer: o primeiro escreve depois de Borges e deliberadamente recusa seu legado. O material da ficção de Puig é heterogêneo, popular: letras de canções, cinema hollywodiano, novelas de rádio, melodrama, folhetim. Exilado da Argentina por conta da ação de grupos policiais paralelos ligados à terceira presidência de Perón, Puig começa a trabalhar com o gravador, registrando as vozes e os relatos de indivíduos das mais diversas proveniências (sobre Puig, Onetti declarou: en las novelas de Puig se sabe cómo hablan sus personajes, pero no como escribe el autor). 

2) Com a absorção do imaginário cinematográfico, Puig estabelece uma peculiar relação entre tradição e vanguarda. Puig, além de narrador, era um pesquisador do cinema, um colecionador de filmes, cartazes e fotografias (sua cinemateca tinha mais de 1.500 itens), além de um entusiasta da produção cinematográfica latino-americana (nesse aspecto é possível pensar em uma longínqua ressonância borgiana, especialmente se levarmos em consideração as análises que Edgardo Cozarinsky faz da relação entre Borges e o cinema, especialmente aquele feito pela diáspora teutônica na Hollywood dos anos 1930).

3) Os últimos anos de Puig o levam a uma mudança geográfica e linguística: Sangre de amor correspondido, de 1982, é escrito no Rio de Janeiro, em um português oralizado e selvagem. O ponto de partida são as gravações que Puig faz das histórias de um pedreiro que trabalhou em seu apartamento. Cae la noche tropical, de 1988, foi seu último romance e também escrito em português - a camada autobiográfica é evidente com a personagem Luci, argentina que vive no Rio de Janeiro e que recebe a visita da irmã Nadia. Puig morre dois anos depois, em 22 de julho de 1990, aos 57 anos, no México.