sábado, 31 de julho de 2021

A simulação


1) Los siete locos, de Roberto Arlt, lançado em 1929, articula em dois níveis distintos e complementares uma poética do engano, da falsidade e da simulação: em primeiro lugar está o nível da narração, do modo como a história é contada, pois a voz narradora às vezes se identifica com um "eu" que organiza as falas de Erdosain e os fatos da trama, mas frequentemente opera também em um registro onisciente, panorâmico (além disso, uma série de notas são dispostas ao longo do romance fazendo referência a eventos futuros, quando personagens já estão mortos ou presos - além de indicar (como no caso do membro militar do complô do Astrólogo, o Major, que se revela na trama como um farsante mas que a nota afirma que ele é, de fato, o militar que afirma não ser).

2) O segundo nível diz respeito à falsidade e simulação constante no comportamento dos personagens, algo que Arlt cuidadosamente marca tanto na exterioridade quanto na interioridade: os sonhos, os delírios e os devaneios são muito frequentes, fazendo com que o tecido da "realidade" seja contaminado por esse movimento incessante de Erdosain em direção ao devaneio (ele está sempre imaginando situações possíveis, encontros, reencontros e diálogos ideais); na dimensão cotidiana e imediata das relações a simulação também é central - seja no casamento, seja nas relações entre "amigos" (o "amigo" que diz a Erdosain que o denunciou em seu trabalho para ficar com sua mulher), seja nas relações "políticas" do grupo revolucionário do Astrólogo e do Rufião Melancólico (que sempre faz questão de marca sua posição ambivalente, sempre um pouco dentro e um pouco fora).

3) Arlt capta essa potência da simulação na literatura dos cem anos anteriores, seguindo uma linha muito clara de afinidades eletivas: Poe (que em 1827 já publica poemas intitulados "Um sonho", "Imitação", "Espíritos dos mortos"), Baudelaire (La Fanfarlo, de 1847), Dostoiévski (não só as "memórias do subsolo" de 1864, mas toda a evocação do submundo anarquista em Os demônios, de 1871), Huysmans (o excêntrico Jean des Esseintes de À rebours, em 1884), Oscar Wilde (o artista Dorian Gray que se torna assassino, 1890), Nietzsche e tantos outros (o precursor argentino decisivo, argumenta Josefina Ludmer em O corpo do delito, é Soiza Reilly e seu La ciudad de los locos, de 1914).  

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Curtius, Balzac

"Já no século V, a figura da mulher sobrenatural que reúne em si a velhice e a juventude degenera em chavão retórico, readquirindo, porém, com Boécio, consagração religiosa.

Em épocas messiânicas e apocalipticamente agitadas, revivem empalidecidas figuras simbólicas, como sombras que bebem sangue. Uma época semelhante viveu a França antes e depois da Revolução de Julho. Na obra do jovem Balzac assomam figuras alegóricas; personificam certos poderes que lutam pelo domínio na nova ordem... e na imaginação de Balzac. Na empolgante narrativa Jesus Cristo em Flandres (1831), a Igreja aparece numa visão onírica como anciã desdentada e calva. Pergunta-lhe o sonhador: "O que você fez de bom?". De súbito ela se transforma: "A essa pergunta a velhinha ergueu-se sobre seus ossos, desfez-se dos seus trapos, cresceu, iluminou-se, sorriu, saiu da sua crisálida negra. Depois, qual borboleta recém-nascida, essa criação indígena saiu das suas palmas e surgiu-me branca e jovem, trajando uma veste de linho. Seus cabelos de ouro flutuaram-lhe sobre os ombros". 

É a Igreja de Hermas, ressurgindo em época inteiramente diversa com o mesmo papel de salvadora sobrenatural que teve no fim da Antiguidade, a oscilar entre velhice e juventude, entre estatura humana e porte gigantesco. Balzac era leitor voraz, apaixonado por teosofia, iluminismo e mística. Mas, por mais importante que seja a questão das fontes literárias, o fato é que Balzac sabia renovar o velho patrimônio espiritual com o encanto fascinante da vida. Podemos ver neste caso como o tópos, aparentemente gasto, é capaz de renovar-se depois de um milênio e meio"

(Ernst Robert Curtius, Literatura europeia e Idade Média latina, trad. Teodoro Cabral, Edusp, 2013, p. 148-149)

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Ficção do porvir

"Macedonio Fernández é a antítese de Sarmiento. Inverte todos os pressupostos, ou melhor, inverte os pressupostos que definem a narrativa argentina desde sua origem. Une política e ficção, não as confronta como duas práticas irredutíveis. O romance mantém relações cifradas com as maquinações do poder, as reproduz, usa suas formas, constrói sua contrafigura utópica. Por isso, no Museo de la novela de la Eterna, há um presidente no centro da ficção. O presidente como romancista, outra vez o narrador da tribo no lugar do poder. A utopia do estado futuro se funda agora na ficção e não contra ela. Porque há romance há estado. É o que diz Macedonio. Ou melhor, porque há romance (ou seja, intriga, crença, bovarismo), pode haver estado. Estado e romance nascem juntos? Em Macedonio, a teoria do romance faz parte da teoria do estado, foram elaboradas simultaneamente, são intercambiáveis" (Ricardo Piglia, "Ficção e política na literatura argentina" (abril de 1987), O laboratório do escritor, trad. Josely Vianna Baptista, Iluminuras, 1994, p. 92).

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Em seguida, Piglia ainda comenta o trabalho preparatório de Macedonio com o Museo, um romance sem forma definida, não-acabado: uma versão possível publicada postumamente, ainda que antecipada em diferentes momentos, "escrito e adiado entre 1904 e 1952", anunciado, adiado, conhecido no boca-a-boca, um "livro interminável" que "anuncia o romance futuro, a ficção do porvir" (comentário próximo daquele de Benjamin em seu ensaio sobre Proust, quando diz que toda grande obra ou inaugura ou ultrapassa um gênero - a lição de Macedonio pode ser observada também na estratégia de Piglia com relação ao próprio diário, também um livro interminável trabalhado ao longo da vida, anunciado, adiado, uma ficção do porvir que se alimenta da reconstrução do passado: em 18 de dezembro de 1975, por exemplo, dentro do próprio diário, Piglia anuncia que, "na reportagem do El Cronista" (por conta do lançamento de Nome falso), ele fala do diário "pela primeira vez em público": agora que o divulguei, "seria bom que eu finalmente começasse a escrever direito aqui", finaliza Piglia).

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Notas alheias


1) O modo como a ficção lida com os resíduos textuais de terceiros: alguém encontra uma caixa, uma pasta, um conjunto de papeis, e com isso tem acesso a um tempo remoto ou a uma perspectiva diversa da subjetividade de alguém conhecido. Em Respiração artificial, Renzi encontra uma caixa dentro do guarda-roupa de seu pai; dentro da caixa estão os recortes de jornal sobre o caso "Marcelo Maggi", o tio historiador de Renzi; essa primeira caixa leva a outras, ou seja, os dois baús de Enrique Ossorio, um com dinheiro, outro com os papeis (que passam para as mãos de Maggi e, muito depois, para as mãos de Renzi). Ossorio, além disso, é o autor das muitas cartas que pontuam o romance de Piglia (mobilizadas também pela leitura paranoica do censor Arocena).

2) De forma bem mais linear (e "cartesiana", para usar um dos personagens centrais do romance de Piglia), Martín Kohan, logo no início de Dos veces junio, apresenta também a questão dos resíduos textuais de terceiros: um "caderno de notas" está aberto, "no meio da mesa"; ao lado do caderno está a caneta utilizada para escrever a única frase à vista: a partir de que idade se pode começar a torturar uma criança? O narrador sente o impulso de corrigir uma falha ortográfica na escrita - diz que não suporta esse tipo de falha e com isso ressalta que o diferencial da violência ditatorial é sua capacidade de esquecer o conteúdo (o teor monstruoso da frase) e se dedicar exclusivamente à forma (das leis e das regras; o superior do soldado-narrador, o Dr. Mesiano, dirá mais adiante: Lo importante era llevar un ritmo metódico, porque en la vida, según decía el doctor Mesiano, todo es cuestión de método).

3) "Deixo o tempo correr, leio ao acaso. Também me dedico ao livro da Ludmer sobre Onetti, que estou lendo com muito interesse. Bom começo, os dois primeiros capítulos com excelentes arremates sobre o corte e o início da narrativa, ao mesmo tempo há como que uma superinterpretação, que faz pensar nos excessos de uma crítica que acrescenta significados próprios e que pode ser lida como a autobiografia do próprio crítico, que sem saber escreve sobre si mesmo" (Ricardo Piglia, Os anos felizes: diários, volume 2, trad. Sérgio Molina, Todavia, 2019, p. 439, 2 de dezembro de 1975).

terça-feira, 20 de julho de 2021

Jogo mundial

"Uma história global do Renascimento contribui para reinterpretar dos Grandes Descobrimentos restabelecendo ligações que a historiografia europeia ignorou ou silenciou. Ela ajuda a desembaraçar-se dos esquemas simplistas da alteridade - para os quais a história se resume em um confronto entre nós e os outros - e a substituí-los por enredos mais complexos: a história global mostra que não existem apenas vencedores ou vencidos, e que os dominantes podem igualmente ser dominados em outra parte do mundo. 

Uma história global leva a juntar novamente as peças do jogo mundial desmembradas pelas historiografias nacionais ou pulverizadas por uma micro-história mal dominada. Ela incita a deslocalizar nossas curiosidades e nossas problemáticas. Havíamos começado por nos centrar sobre a Monarquia Católica de Filipe II, esse império planetário nascido da união das Coroas da Espanha e de Portugal, e por restituir-lhes os espaços que ela ocupava no globo. Havíamos prosseguido nossa releitura analisando as relações reais e virtuais que o islã e o Novo Mundo mantinham nesse contexto. 

Uma história global teria o dever de atribuir à África todo o lugar que lhe cabe, tanto porque é lá que se elabora a primeira experiência colonial de envergadura com a bênção do papado como porque esse continente não cessará de abastecer com escravos a América recém-conquistada, conservando ao mesmo tempo vínculos muito antigos com os mundos do oceano Índico. Tampouco se deve esquecer que foi nessa terra que os portugueses celebraram o casamento trágico entre o tráfico e o cristianismo"

(Serge Gruzinski, A águia e o dragão: ambições europeias e mundialização no século XVI, trad. Joana Melo, Cia das Letras, 2015, p. 348-349)

quinta-feira, 15 de julho de 2021

O filho do amigo

1) Em dezembro de 1921 a revista Cosmópolis, de Madri, publica uma antologia intitulada "Lírica argentina contemporânea", organizada por um jovem Jorge Luis Borges (ele nasceu em 24 de agosto de 1899). É interessante notar que a antologia se abre com um poema de Macedonio Fernández, e não qualquer poema, mas um poema intitulado "Ao filho de um amigo" - o amigo em questão era Jorge Guillermo Borges Haslam, o pai de Borges, precisamente o "filho" que recebe o poema.

2) No comentário que coloca logo depois do poema, Borges fala de Macedonio como "talvez o único genial que fala nesta antologia", "homem definitivo e pensador, não secundário e de reflexo", que "vive plenamente sua vida", que prefere falar a escrever: "é lícito supor que durante séculos psicólogos e metafísicos se ocuparão em redescobrir as genialidades que ele já encontrou, limou, aquilatou e silenciou" (toda a antologia está disponível no volume Textos recobrados, 1919-1929).

3) O espaço de fundação da "lírica contemporânea" é uma extensão da casa, do espaço doméstico e familiar - Macedonio, amigo íntimo do pai de Borges, de quem foi colega na universidade, faz do filho alheio uma sorte de discípulo, funcionando como um elo de ligação entre os escritores mais velhos (de sua geração, da geração do pai de Borges) e o novo panorama que Borges testava no intervalo Buenos Aires / Genebra. A antologia - publicada em uma revista da Espanha - não é representativa de um momento específico da poesia de um lugar, e sim um decalque dos encontros sociais na casa da família de Borges - é surpreendente, pensando na sobriedade de sua fase tardia, que Borges tenha achado pertinente - em uma de suas primeiras aparições na "esfera pública" - abrir uma antologia de poesia com um poema que o elogiava de forma tão descaradamente doméstica, quase pueril. 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Foucault, Steiner


1) A ideia do "monstro" em Nietzsche faz pensar nas ideias expostas por Foucault em um artigo de 1971 chamado “As monstruosidades da crítica”: trata-se de uma resposta de Foucault a duas críticas que havia recebido, uma de Jean-Marie Pelorson e outra de George Steiner, a primeira sobre História da loucura, a segunda sobre As palavras e as coisas.

2) A crítica de Steiner a As palavras e as coisas saiu em fevereiro de 1971, no The New York Times Book Review. Esse também foi o ano em que Steiner passou a receber sua bolsa Guggenheim, e, no mês seguinte, março de 1971, proferiu, na Universidade de Kent, a conferência que gerou o livro que conhecemos como No castelo do Barba Azul: algumas notas para a redefinição da cultura. Steiner escolheu como epígrafe para essa conferência um verso de René Char – poeta que também foi o escolhido, por Foucault, para a epígrafe de seu texto sobre Ludwig Binswanger. A essa altura, Steiner também já havia publicado seu estudo sobre Tolstoi e Dostoiévski (Tolstoy or Dostoevsky: An Essay in Contrast, de 1960), seu livro sobre a tragédia (The Death of Tragedy, de 1961) e sua célebre coletânea de ensaios, Language and Silence, de 1967. O título que Steiner deu à crítica já marca uma posição de antagonismo: “The mandarin of the hour: Michel Foucault”, algo como “a sensação do momento”, “a moda francesa mais recente”, no sentido, também, de “embusteiro” ou “charlatão”.

3) Foucault diz ser criticado por tudo aquilo que não disse, por todos os autores que não citou e todas os eventos históricos que não mencionou: insiste na necessidade de se ler o que veio antes e o que veio depois, denunciando a “monstruosidade” das citações escolhidas pelos críticos – forçando a palavra de Foucault a servir em prol do “livro imaginário” que tanto Steiner quanto Pelorson criaram em suas resenhas. E o ponto mais forte: a ausência de contato com o texto – “O Sr. Steiner afirma que minha dívida é com Lovejoy, o que prova que ele não leu Daudin; ele afirma também que eu não cito minhas fontes, o que prova, uma vez mais, que ele não leu meu livro”, escreve Foucault.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Walser, Nietzsche


1) O abismo que Magris encontra na literatura de Walser é o abismo que Walser já havia encontrado na obra de Nietzsche (mesmo que não o tenha lido diretamente, viveu com sua geração os ecos e reverberações de sua figura e seus escritos), especialmente aquele célebre abismo que surge no aforismo 146 de Além do Bem e do Mal, publicado em 1886: "Aquele que combate monstros deve cuidar para que ele próprio não se torne um. E se olhar tempo demais para o interior de um abismo, o abismo olha de volta para você".

2) É em parte desse "niilismo" de que fala Magris em seu livro - uma tendência a imaginar o pior, uma predisposição ao pior cenário possível em qualquer situação, uma confiança na capacidade humana de sempre mostrar seu lado escuso (algo que Flaubert já investigava pelo viés da "estupidez", uma estupidez que ele muitas vezes acreditava contagiosa - a documentação maníaca para Salammbô (1862) como uma espécie de antídoto à imersão na vida mesquinha e limitada de Madame Bovary (1857), que o tragou como um abismo).

3) O jogo de espelhos que envolve aquele que combate monstros até se tornar, também ele, um monstro: "O tema do traidor e do herói", conto que Borges publica primeiro na revista Sur e, em 1944, em livro. Borges conta a história de um traidor que é transformado em herói em nome de uma "causa revolucionária", marcando, contudo, essa transformação de um extremo a outro com uma série de referências literárias (é a partir dessas referências - Júlio César e Macbeth de Shakespeare - que a farsa é lida e decifrada muito tempo depois).

domingo, 4 de julho de 2021

O abismo


1) Em seu livro de 1984, O anel de Clarisse (dedicado ao niilismo na literatura moderna), Claudio Magris se dedica a comentar autores como Ibsen, Franz Blei, Walser, Rilke, Svevo e Elias Canetti. Ao falar de Robert Walser, Magris fala das "regiões inferiores" visitadas por sua ficção: um "vazio sem fim" é encontrado em toda parte, tanto na paisagem quanto na subjetividade, nos espaços externos visitados pelo narrador (os vales vistos do alto, a vastidão do céu) e nos espaços internos carregados de angústia que nenhuma atividade consegue dar conta (por isso as mudanças de profissão e de cidade, por isso as relações sempre postiças, vagas, incertas). 

2) Magris resgata a passagem em O ajudante - romance publicado por Walser em 1908 - na qual Joseph Marti vai passear com a família Tobler no lago: o abismo canta, mas com sons "que nenhum ouvido consegue distinguir". Eis a síntese de uma literatura que recusa todo esforço de totalização que se lança em sua direção - mesmo a "obra" é um abismo que não tem fim, repercutindo no tempo e no espaço muito depois da morte do autor Walser (é por isso que em determinado momento Magris fala de Walser como "escritor pós-moderno" que refuta toda "síntese de suas contradições"; Walser é o escritor do intervalo e da pausa, do "não-dito" e do "não-revelado"). 

3) Frequentemente não são as palavras que "dizem" em Walser, mas o arranjo um pouco aleatório dos objetos: "Simon começou a se instalar no campo. Suas malas chegaram depois, pelo correio, ao que ele, então, desempacotou suas coisas. Já não tinha muitas - dois ou três livros velhos que não quisera vender ou dar, roupa de baixo, um terno preto e um amontoado de miudezas, como barbantes, retalhos de seda, gravatas, cadarços, tocos de vela, botões e pedaços de linha. (Robert Walser, Os irmãos Tanner, trad. Sergio Tellaroli, Cia das Letras, 2017, p. 118).