"Já no século V, a figura da mulher sobrenatural que reúne em si a velhice e a juventude degenera em chavão retórico, readquirindo, porém, com Boécio, consagração religiosa.
Em épocas messiânicas e apocalipticamente agitadas, revivem empalidecidas figuras simbólicas, como sombras que bebem sangue. Uma época semelhante viveu a França antes e depois da Revolução de Julho. Na obra do jovem Balzac assomam figuras alegóricas; personificam certos poderes que lutam pelo domínio na nova ordem... e na imaginação de Balzac. Na empolgante narrativa Jesus Cristo em Flandres (1831), a Igreja aparece numa visão onírica como anciã desdentada e calva. Pergunta-lhe o sonhador: "O que você fez de bom?". De súbito ela se transforma: "A essa pergunta a velhinha ergueu-se sobre seus ossos, desfez-se dos seus trapos, cresceu, iluminou-se, sorriu, saiu da sua crisálida negra. Depois, qual borboleta recém-nascida, essa criação indígena saiu das suas palmas e surgiu-me branca e jovem, trajando uma veste de linho. Seus cabelos de ouro flutuaram-lhe sobre os ombros".
É a Igreja de Hermas, ressurgindo em época inteiramente diversa com o mesmo papel de salvadora sobrenatural que teve no fim da Antiguidade, a oscilar entre velhice e juventude, entre estatura humana e porte gigantesco. Balzac era leitor voraz, apaixonado por teosofia, iluminismo e mística. Mas, por mais importante que seja a questão das fontes literárias, o fato é que Balzac sabia renovar o velho patrimônio espiritual com o encanto fascinante da vida. Podemos ver neste caso como o tópos, aparentemente gasto, é capaz de renovar-se depois de um milênio e meio"
(Ernst Robert Curtius, Literatura europeia e Idade Média latina, trad. Teodoro Cabral, Edusp, 2013, p. 148-149)
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