domingo, 28 de agosto de 2016

Problema no paraíso

Uma estratégia retórica, quase uma figura do pensamento, se repete bastante nesse livro de 2014 de Slavoj Zizek, Problema no paraíso (traduzido por Carlos Alberto Medeiros e publicado pela Zahar em 2015), a estratégia do falso paradoxo. Uma série de instituições e discursos se sustentam a partir de um jogo duplo entre aparência e essência, entre denúncia pública e cultivo privado (um desdobramento daquilo que Foucault propôs acerca da sexualidade: o controle reside não na aparente proibição, mas na íntima necessidade de confissão constante). A pedofilia na igreja católica, por exemplo, escreve Zizek:
é um fenômeno que diz respeito à Igreja católica em si, que se inscreve no seu próprio funcionamento como instituição sociossimbólica. (...) Não é algo que aconteça porque a instituição tenha de se acomodar às realidades patológicas da vida libidinal a fim de sobreviver, mas uma coisa de que a própria instituição necessita para se reproduzir. Pode-se muito bem imaginar um padre não pedófilo que, depois de anos de serviço, venha a se envolver com a pedofilia porque a própria lógica da instituição o seduz a isso. (p. 89).
Pouco antes, resgatando o Sloterdijk de Ira e tempo, Zizek comenta esse supremo gesto do capitalismo de criar em si mesmo "seu oposto mais radical", o "gesto soberano de autonegação da acumulação infindável de riquezas", ou seja, a caridade, o gasto da riqueza "com coisas sem preço":
O que a ideia de Sloterdijk significa é nada menos que a elevação de figuras como George Soros ou Bill Gates a personificações da inerente autonegação do próprio processo capitalista: sua obra de caridade, suas imensas doações para organizações de previdência social, não é apenas uma idiossincrasia pessoal, sincera ou hipócrita, mas a conclusão lógica da circulação capitalista, necessária de um ponto de vista estritamente econômico, uma vez que permite ao sistema capitalista postergar sua crise. (p. 61).
Voltando à Igreja e suas inúmeras contradições, Zizek escreve que "tão logo uma religião se estabeleça como instituição ideológica legitimando as relações de poder existentes" ela precisa lutar "contra seu próprio excesso endógeno" (cismas, divisões e acusações do tipo: por que estamos fazendo justamente aquilo que combatemos no passado?). Como conciliar a sociedade de classes e a desigualdade com o ideal da "pobreza igualitária" dos Evangelhos?:
A solução de Tomás de Aquino é que, embora, em princípio, a propriedade comum seja melhor, isso só vale para humanos perfeitos; para a maioria de nós, que vivemos no pecado, a propriedade privada e a diferença de riquezas são naturais, e é até pecaminoso exigir a abolição da propriedade privada ou promover o igualitarismo em nossas sociedades decaídas, ou seja, exigir para pessoas imperfeitas o que só vale para as perfeitas. Essa é a contradição imanente que está no cerne da identidade eclesiástica, tornando a Igreja estabelecida a principal força anticristã de nossos dias. (p. 174).
Nesse último caso, o paradoxo inaugural - a mensagem igualitária dos Evangelhos versus a prática hierarquizante da Igreja - e sua manutenção ao longo dos séculos termina por gerar um paradoxo mais amplo e estrutural, a Igreja como principal força anticristã de nossos dias.  
Tomás de Aquino em detalhe de afresco de Filippino Lippi

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

A lente de aumento

Sebald começa Os anéis de Saturno celebrando o olhar anticartesiano de Rembrandt, que escolhe representar a mão do bandido assassinado de forma desproporcional, mostrando, segundo a leitura de Sebald, o absurdo da empresa racionalista exemplificada pela Lição de anatomia do dr. Nicolaas Tulp. O detalhe revelador, sempre à mostra como a carta roubada de Poe, salta aos olhos e mostra a mão invertida, absurda. A mão do morto faz par com a mão do dissecador, do cientista, que mimetiza o movimento que o morto já não pode mais fazer.
Em Os emigrantes, no último capítulo, quando visita o pintor Frank Auerbach pela segunda vez, depois de vinte e cinco anos de distância, o narrador de Sebald reencontra pendurado no mesmo lugar outro quadro de Rembrandt, uma reprodução de Homem com uma lente de aumento (retrato feito por volta de 1660 de Pieter Haringh, leiloeiro e negociador de obras de arte, artefatos os mais diversos, relógios, joias, diamantes, que se tornam mais ou menos íntegros, mais ou menos valiosos através do uso desse instrumento, dessa prótese que é a lente de aumento).
O ofício do modelo de Rembrandt faz lembrar o joalheiro de Leskov, aquele que sabia reconhecer a pedra especial, a alexandrita. Mas não só por isso: existe algo de transcendental, quase metafísico, tanto na relação do joalheiro de Leskov com as pedras (e as profundezas que a produziram, sobretudo) quanto na relação do pintor Auerbach com a reprodução de Rembrandt, pendurada como um amuleto, no mesmo lugar, durante vinte e cinco anos (como se estivesse sempre a relembrar, do fundo de suas trevas tão anticartesianas, a importância de atentar para os detalhes, de ver de perto, de perseverar na minúcia). 

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Peregrinação inglesa

A paisagem inglesa
Como sabemos, Os anéis de Saturno, de Sebald, tem como subtítulo "uma peregrinação inglesa" (do latim per agros, isto é, pelos campos). Por isso as caminhadas do narrador pela região de Suffolk, no leste da Inglaterra, e a descrição continuada de prados, bosques, desfiladeiros, praias, fazendas, charcos, e correlatos. Em determinado momento do terceiro capítulo, surge uma cerca elétrica e, atrás dela, um rebanho de porcos. O narrador pula a cerca e chega perto de um dos animais:
Corri a mão sobre seu dorso empoeirado, que estremeceu ao inusitado toque, acariciei-lhe o focinho e o rosto e afaguei-lhe a cova atrás da orelha, até que ele suspirou como alguém afligido por infinito sofrimento. Quando me reergui, tornou a fechar o olho com uma expressão de profundo afeto.
O episódio faz o narrador pensar na história de Jesus expulsando os demônios nos Evangelhos. Uma "história terrível", escreve ele, quando "o Senhor ordenou aos espíritos maus que entrassem no rebanho de porcos que ali se alimentava":
Os demônios imploraram a Jesus: "Manda-nos para os porcos, para que entremos neles". Ele lhes deu permissão, e os espíritos imundos saíram e entraram nos porcos. A manada de cerca de dois mil porcos atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e nele se afogou (Marcos 5, 12-13)
As ovelhas no fundo do precipício
A junção do projeto geral - peregrinação inglesa - com o detalhe da morte dos porcos me fez lembrar de Far from the Madding Crowd, o livro de Thomas Hardy de 1874, cuja ação inicia em 1870 (ano citado por Sebald quando menciona o projeto de iluminação pública usando cadáveres de arenque). O pastor Gabriel Oak acorda sobressaltado e vai conferir suas ovelhas, que não encontra no cercado. Ele começa a subir a colina que leva ao precipício e vê ao longe seu cão, "sombrio e impávido como Napoleão em Santa Helena", escreve Hardy, e continua:
A horrible conviction darted through Oak. With a sensation of bodily faintness he advanced: at one point the rails were broken through, and there he saw the footprints of his ewes. The dog came up, licked his hand, and made signs implying that he expected some great reward for signal services rendered. Oak looked over the precipice. The ewes lay dead and dying at its foot—a heap of two hundred mangled carcasses, representing in their condition just now at least two hundred more.
Existe até uma simetria na quantidade de animais - dois mil porcos, duzentas ovelhas. O que deu na cabeça do cachorro, que levou as ovelhas até a beira do precipício e as fez pular, uma a uma? Animais que enlouquecem; a insondável profundeza dos olhos de certos animais e filósofos, como Sebald aponta no início de Austerlitz:
A respeito da história de Jesus e os porcos, o narrador de Sebald também vê aí uma "parábola" acerca da necessidade de "nossa doentia razão humana" de "sempre investir contra uma outra espécie, por nós considerada inferior e digna de nada além da destruição". É digno de nota que também Hardy, ao concluir a história do cão e das ovelhas (ele é executado pelo pastor em seguida), mencionando sua capacidade de levar o trabalho até o fim, até as últimas consequências, aproxima o animal dos filósofos:
George's son [ou seja, o cão] had done his work so thoroughly that he was considered too good a workman to live, and was, in fact, taken and tragically shot at twelve o'clock that same day—another instance of the untoward fate which so often attends dogs and other philosophers who follow out a train of reasoning to its logical conclusion, and attempt perfectly consistent conduct in a world made up so largely of compromise.
E não é também uma espécie de antecipação de Adorno - o Adorno da Dialética do Esclarecimento - essa ideia do filósofo who follow out a train of reasoning to its logical conclusion, sendo essa "conclusão lógica" a própria destruição e mortandade, como tantas vezes escreve Sebald?  
O cão filósofo

(as imagens são da mais recente adaptação de Far from the Madding Crowd, de 2015, dirigida por Thomas Vinterberg)