domingo, 26 de junho de 2011

Sapatos, 4

Meyer Schapiro e Martin Heidegger defendiam posições opostas com relação aos sapatos de Van Gogh. Uma das pinturas de sapatos desempenha um papel heurístico central no célebre ensaio de Heidegger de 1935 intitulado "A origem da obra de arte". Para Heidegger, os sapatos de Van Gogh são uma imagem da vida no campo, uma imagem da trajetória do homem na natureza, um equipamento impregnado de "ansiedade resignada com relação à certeza do pão". Schapiro acha que Heidegger escreveu tudo isso sem sequer olhar para os quadros de Van Gogh. Sobre qual versão dos sapatos Heideger está falando?, ele se pergunta. Se tivesse olhado, não seria difícil perceber que Van Gogh representava botas de duas maneiras inteiramente diferentes: quando pertenciam a camponeses, pintava botas claras, macias e em bom estado; quando pintava botas surradas, eram sempre as suas próprias botas. As botas surradas são parte de um auto-retrato, são dotadas de sentimentos do próprio pintor - sentimentos que incluem a percepção da vida como peregrinação, a inquietude, o desconforto ou o simples hábito de caminhar. Van Gogh está mais em suas botas do que em qualquer imagem de seu rosto.
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O confronto de perspectivas está dado desde o início, uma vez que o objeto em questão é justamente o pé, o limite do corpo, sua extremidade, seu clímax, seu ponto radical. Cruzando literatura e artes plásticas, Balzac também faz do pé o ponto máximo de sua reflexão e de sua problematização a respeito da representação. Em A obra-prima desconhecida, de 1837, tudo que resta de visível é o pé, um pé perfeito que desponta, que dissolve momentaneamente a cisão entre realidade e ficção. No outro extremo de um potencial arco interpretativo, está o ensaio de Bataille, Le gros orteil (escrito em 1929 para a revista Documents) - o dedão do pé mostra aquilo que no corpo (e na sociedade e no discurso) não pode ser mostrado, aquilo que é velado, escondido e que, em sua emergência, desvia o sentido e questiona a separação entre alto e baixo, real e ficção.   

domingo, 12 de junho de 2011

Sapatos, 3

Em primeiro lugar, o que é um vagabundo?
O vagabundo é uma espécie nativa inglesa. Estas são as características que o distinguem: ele não tem dinheiro, veste-se com andrajos, caminha cerca de vinte quilômetros por dia e nunca dorme duas noites seguidas no mesmo lugar.
Em suma, ele é um andarilho que vive de caridade, perambula dia após dia durante anos e atravessa a Inglaterra de ponta a ponta muitas vezes em suas andanças.
Ele não tem emprego, lar ou família, nada de seu no mundo, exceto os farrapos que cobrem seu pobre corpo; vive às custas da comunidade.
O vagabundo não perambula para se divertir, ou porque herdou os instintos nômades de seus ancestrais; antes de mais nada, ele tenta não morrer de fome.
George Orwell, "Um dia na vida de um vagabundo".

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sapatos, 2

Há uma infinidade de histórias detetivescas que são resolvidas (ou encaminhadas, ou perdidas) a partir da pegada, da caminhada: a intensidade da pisada determina se é destro ou canhoto; um tipo muito específico de terra acumulada na sola diz muito sobre o terreno percorrido (que pode ser o terreno do crime); o respingo de um resíduo pode determinar um ofício (Roberto Arlt em seu laboratório, em sua fábrica improvisada de borracha). Há inclusive um assassino descoberto pela pegada muito característica que sua prótese deixou numa poça (em The international, de Tom Tykwer) - no fim das contas, a única parte que não era naturalmente sua foi responsável por determinar sua identidade num momento crucial. Nenhum cadáver é enterrado com os sapatos postos, e os assassinos, na tentativa de invadir algum lugar sorrateiramente, geralmente estão a) sem sapatos; b) na ponta dos pés ou c) com os sapatos protegidos por aquelas meias hospitalares, como Mark Wahlberg executando Matt Damon no final de The departed.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Sapatos, 1

O ofício da caminhada é mágico - colocar um pé diante do outro, desde a primeira luz da manhã até o anoitecer, mirando sempre adiante. Os hebreus rodearam a Terra Prometida durante quarenta anos, como se a caminhada fosse necessária para abrir a mente - eles literalmente andaram em círculos, um ano depois do outro, desde a primeira luz da manhã até o anoitecer. Walter Benjamin, como tantos jovens alemães da época, participava daqueles grupos que, entre outras coisas, organizavam longas caminhadas pela floresta. Walser, Sebald, Bruce Chatwin. The way back, de Peter Weir. A caminhada da fuga e da vergonha que Céline organiza em De castelo em castelo. As marcas inerentes a todo exercício de movimentação, mas uma movimentação intensiva, exaustiva. Eu não sei quantas pinturas Van Gogh fez de sapatos, mas sei que o que está em jogo na imagem não é a representação do objeto. Talvez o que apareça no objeto-sapato de Van Gogh seja uma possibilidade de memória, uma possibilidade de jogo diante da morte, do vazio, do nada. Isso porque o sapato surrado guarda a forma do pé de um morto, de um corpo que já é pó, e a pintura de Van Gogh - que é tudo que nos resta - guarda a forma de uma forma vazia, faz uma segunda ficção de uma presença que era ausente desde o princípio, desde quando ainda existia o objeto-fantasma.
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A caminhada de Martin Heidegger e René Char pela região de Le Thor, na França, onde o primeiro dava seus seminários. "Olho a foto de René Char ao lado de Heidegger", escreve Milan Kundera em um dos ensaios de Une rencontre (Gallimard, 2009), "um celebrado como membro da resistência contra a ocupação alemã. O outro denegrido por causa das simpatias que teve, num certo momento de sua vida, pelo nazismo nascente. A foto data dos anos do pós-guerra. Nós os vemos de costas; com um boné na cabeça, um grande, o outro pequeno, eles caminham pelo campo. Gosto muito dessa foto". A foto foi tirada por Roger Munier, aluno de Heidegger, em algum ponto entre 1966 e 1969.
 

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Arquivo e discurso

Falando sobre a mídia eletrônica e sobre a vertiginosa disseminação dos ditos e escritos na contemporaneidade, Edward Said (ainda em Humanismo e crítica democrática) escreve o seguinte: As nossas ideias atuais de arquivo e discurso devem ser radicalmente modificadas e já não podem ser definidas como Foucault a duras penas tentou descrevê-las apenas há duas décadas [o texto de Said é de 2002; Arqueologia do saber, de Foucault, é de 1969]. Said fala que um artigo seu, escrito em Nova York para um jornal britânico, pode ser replicado por incontáveis pessoas em páginas pessoais e aparecer em todos os continentes. A partir disso, como definir um leitor possível para aquilo que é escrito? Impossível (sequer necessário). Quando li o trecho sobre Foucault, pensei: 1) radicalmente modificadas é a proposta de uma tarefa bastante exaustiva; 2) no mesmo gesto, ele recusa e incorpora Foucault, sem necessariamente apontar um novo rumo; ele apenas enuncia a lacuna; 3) o esforço de Foucault - "duras penas" - foi apenas uma tentativa - "tentou descrevê-las" - e caducou rapidamente; 4) uma modificação tão profunda nas concepções de arquivo e discurso transforma não apenas a circulação do que é dito/escrito, mas a própria forma de fazê-lo: isso implica outro procedimento de leitura e de escritura da leitura.