terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Ciocchini, 4

“Hunting guanacoes in Patagonia”; from the Illustrated London News, 1869
Assim como cada fragmento ensaístico de Ciocchini remete à grande peça que ele organiza, nomeia e publica – sem, contudo, estabelecer uma hierarquia de sentido entre as variadas peças –, também o atlas poético de Saint-Exupéry responde ao mesmo desejo de des-hierarquização da percepção do espaço: “O ser humano que se sabe passageiro, itinerante, parece ser o único que tem o sentido de sua habitação na terra”, escreve Ciocchini na frase de abertura do fragmento “O ser itinerante”, e continua: “Distância e carência outorgam sentido aos alimentos, e fazem florescer uma memória que devolve a realidade vestida de presença”. “Nas extensões desertas”, continua Ciocchini, “a Patagônia, o Saara, Saint-Exupéry se volta a uma memória profunda da infância”. Porque a presença do ser humano “quer indagar as extensões mais estranhas, entrar no coração do mistério, ser uma presença viva no planeta, ainda que nos rincões mais desolados; e tem o poder de levar a intimidade ao mais vasto, ao mais insensível”.

O atlas poético de Saint-Exupéry, conforme capturado na ensaística de Héctor Ciocchini, faz da visão contemporânea da Patagônia um resgate também do Saara, do contexto colonialista francês de inícios do século XX e, consequentemente, da dimensão “profunda da infância”, como aponta Ciocchini. “O ser itinerante adquirirá na noite a visão de um planeta deserto”, escreve ele, e “quanto mais distante está de toda presença humana, sua visão do homem adquirirá mais sentido. E, perdidos irremediavelmente no deserto, as leis humanas adquirirão sua formulação mais adequada”. E mais adiante completa: “A natureza em Saint-Exupéry culmina no homem; este sempre é um milagre infinito desse incessante esforço por chegar à superfície de uma verdade”, pois “a natureza da verdade humana é uma busca”. 

A “busca” em Saint-Exupéry, resgatada por Ciocchini como signo mitológico, ou seja, como indício da criação de uma “mitologia contemporânea”, se refrata em duas potências: uma busca pelo arcaico, pelos tempos imemoriais que ficam acessíveis através do olhar distanciado do aviador (o tema da atualização do “voo noturno”, como exposto anteriormente), e uma busca pela infância, pela sensação primordial do “estar no mundo”. Essas duas versões da busca ganham ressonância também na já mencionada dialética entre o instrumento e seu objeto, entre o avião e a terra, que coexistem a partir de um sistema tenso de relações – é da terra que sai o avião e é a ela que ele retorna, sem com isso remover a constante consciência de que a terra também puxa o avião para si. Nesse sentido, a morte, que ocorre quando a terra tem sucesso em puxar o avião para si (ou seja, o momento em que o objeto absorve o instrumento que dele se ocupa), é tanto uma reivindicação da experiência do retorno ao arcaico quanto uma lembrança enviesada desse momento primitivo da experiência, que em Saint-Exupéry é nomeado como “infância”.

Podemos apontar, finalmente, para a complexa configuração desse atlas poético de Saint-Exupéry tal como dissecado por Ciocchini: ele se apresenta fragmentado em quatro compartimentos interligados, dois deles que dizem respeito à geografia particular do aviador (a união da Patagônia com o Saara, em linhas gerais - o que faz pensar no esforço de Warburg de aproximar Atenas e Oraibi; ou o esforço de Bruce Chatwin em torno da Patagônia), dois deles que dizem respeito à imagem particular do tempo que daí emerge (a infância como experiência primitiva do mundo e, mais profundamente, o exercício poético como acesso à consciência primitiva – ou primeva – do “estar no mundo”). 

Nesse ponto, Ciocchini e Saint-Exupéry se misturam na análise que estou propondo aqui, pois o procedimento de análise do ensaísta termina por espelhar os conflitos do artista, e ambos aproveitam certa faceta estrangeira (nômade ou “itinerante”, para usar um termo-chave para Ciocchini) de suas experiências para plasmar uma leitura de mundo diversa. É, portanto, essa heterogeneidade que está por trás da ideia de atlas (a heterogeneidade do pesquisador latino-americano em Londres e do aviador francês no sul argentino). Além disso, tal heterogeneidade se encaminha em direção a uma dinâmica descontínua de percepção do tempo e da geografia, dinâmica essa que deve ser retida e cultivada em um exercício de contaminação também do presente e de suas linhas de força. 

domingo, 29 de dezembro de 2019

Ciocchini, 3

É a partir da utilização efetiva do avião que Saint-Exupéry extrai sua criação ficcional, e, nesse processo, argumenta Ciocchini, atualiza a mitologia clássica do voo noturno em uma mitologia moderna que mescla o desejo de ascensão (o sucesso, o domínio sobre a máquina e a natureza) com o desejo de morte (a queda, o encontro fatal com a terra que é observada do alto e que parece esperar a falha do piloto). O fragmento do ensaio de Ciocchini que se ocupa de Saint-Exupéry através da imagem do avião é aquele intitulado “O desejo de comunicação”, que é suplementado adiante por “O ser itinerante”. “A paixão pelo sagrado da vida, por sua matéria imperecível marca a obra de Saint- Exupéry”, escreve Ciocchini na primeira frase do fragmento “O desejo de comunicação”, e continua: “E dentro dela um meio de penetração, um instrumento, o avião, e um objeto, a terra, marcam essa leitura que se fará através de sinais mais ou menos evidentes, de belas visões e mitos que precedem a essa comunhão e a esse conhecimento que resulta de sua experiência”.

Para Ciocchini, essa escolha de Saint-Exupéry, ainda que indique uma contingência muito específica de sua vida, uma contingência material que o levou tanto ao avião quanto à carreira de aviador, tal escolha acarreta um radical investimento simbólico. O pacto que Saint-Exupéry estabelece com o avião é um pacto que diz respeito ao contato do homem com a técnica na modernidade (na era do capitalismo tardio, por assim dizer), mas também, e sobretudo, um pacto do homem com aquilo que o ultrapassa em termos simbólicos – a dimensão histórica do desejo e da escolha. Ciocchini articula, a partir dessa perspectiva dúplice do pacto, uma dialética suplementar, aquela que relaciona o avião e a terra, um “instrumento” e seu “objeto”, ambos ligados naquilo que ele denomina uma “comunhão”. Há um conhecimento – poético e mitológico – que Saint-Exupéry alcança a partir do exercício dessa comunhão, argumenta Ciocchini. Esse conhecimento alcançado pelo artista é desvelado pouco a pouco em sua obra a partir de “sinais mais ou menos evidentes”, como coloca Ciocchini, “belas visões e mitos” que funcionam como preparação para essa comunhão, “visões e mitos” que Saint-Exupéry tem acesso a partir da mediação de seu instrumento, o avião.

Quando vista do alto, de dentro de um avião, a terra apresenta uma lógica diversa. Os limites da terra podem ser reescritos e reinterpretados pelo aviador a partir de sua percepção, daí a ideia de uma reformulação do espaço latino-americano, por parte de Saint-Exupéry, a partir da configuração de um atlas especial, um atlas poético que inaugura seus próprios marcos de localização e significação. Como o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, marcado pela convivência tensa e criativa de imagens provenientes de fontes, técnicas, temporalidades e geografias as mais diversas, também o atlas poético que Ciocchini reconhece em Saint-Exupéry faz do espaço latino-americano em geral, e do sul argentino em particular, um espaço de experimentação, um laboratório de articulação entre a criação estética e o pertencimento nacional. 

Assim como no cotidiano do Instituto de Humanidades se reconhecia a marca do Instituto londrino, e assim como no estilo e nos temas de Ciocchini se reconhecia a marca de sua filiação estrangeira, da mesma forma o olhar de Saint-Exupéry transforma essa geografia doméstica a partir de uma ressignificação poética. Da mesma forma, o olhar estrangeiro do escritor francês é reposicionado a partir do contato com a terra alheia, uma vez que a dialética entre instrumento e objeto (ou seja, entre avião e terra, como visto acima) repercute também na dimensão da escrita, da elaboração ficcional da vivência e da experiência (sendo esse um aspecto fundamental, que Ciocchini, como vimos, resgata em seu endereçamento do ensaio às gerações vindouras).

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Ciocchini, 2

O ensaio de Ciocchini vale-se tanto da forma quanto do conteúdo para passar uma mensagem de permanência heterogênea dos tempos, uma permanência que pode ser acessada somente a partir do trabalho sério e continuado de leitura – algo que envolve a percepção de uma “angústia”, a angústia da geração vindoura para Ciocchini.

Nessa perspectiva, temos um contexto complexo que articula variados níveis de experiência, que tocam tanto a vivência particular da cultura (a ida do ensaísta ao Instituto Warburg, sua preparação humanista rigorosa) quanto o cotidiano social que marca a passagem de um regime democrático para um regime ditatorial (o espaço de vanguarda construído no Instituto de Humanidades, em seguida dissolvido; a percepção de Ciocchini de que suas ideias e sua experiência de pesquisador e leitor poderiam servir, eventualmente, para a reconstituição de uma postura perdida diante do conhecimento e da cultura).

O modelo de heterogeneidade, que serviu tanto para Ciocchini como também para a argumentação deste meu ensaio, será o do atlas de Aby Warburg, compreendido, segundo a definição de Georges Didi-Huberman, como uma sorte de “sismografia de tempos móveis”. O atlas se apresenta, portanto, como registro provisório de uma série de imagens, tanto visuais quanto históricas, e que problematizam esse pertencimento duplo a cada vez que são requisitadas. O trabalho crítico de Warburg toma como pressuposto, e assim o fará também Ciocchini, a heterogeneidade inerente aos fragmentos presentes no arquivo. Não há qualquer pretensão de originalidade em qualquer dos fragmentos compostos no Atlas, o que desviaria o esforço hermenêutico em direção a uma crítica genética ou à formação de um repertório hierarquizado de repetições – avatares de um projeto essencialista e, consequentemente, redutor.

Monta-se um mosaico de referências a partir desses fragmentos estabelecidos por Ciocchini em seu ensaio, um mosaico que articula tanto a teoria de matriz warburguiana (a sobrevivência da Antiguidade, a contínua atenção às sobrevivências de temporalidades e geografias soterradas pelo discurso hegemônico) quanto a apropriação latino-americana dessa mesma matriz (o “humanismo contemporâneo” de Ciocchini a ser apropriado como uma tática de permanência desse legado crítico de resgate das heterogeneidades históricas, ou seja, a própria disposição dos fragmentos ensaísticos de Ciocchini como um espelhamento do contexto de perda que em breve iria se instalar na América Latina). Proponho uma leitura do ensaísmo breve de Ciocchini como uma estratégia textual carregada de complexas intenções – aquelas que remetem a uma operacionalização das teorias warbuguianas (os motivos arcaicos nos textos de Saint-Exupéry e René Char, por exemplo) e a uma operacionalização da reivindicação política no âmbito do ensino e da aprendizagem.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Ciocchini, 1

Proponho o resgate de um ensaio que Ciocchini publica em 1966, no âmbito do Instituto de Humanidades da Universidad Nacional del Sur, especificamente no âmbito dos “Cuadernos del Sur”. O ensaio, “Hacia un humanismo contemporáneo, Saint-Exupéry, René Char”, marca ao menos dois eventos: o retorno do pesquisador argentino a Bahía Blanca depois de seu período como visitante no Instituto Warburg e, finalmente, a cristalização de uma série de apontamentos (realizados nesse período anterior que se encerra) que Ciocchini prepara na década de 1960 em torno às obras de Antoine de Saint-Exupéry e René Char. 

Na edição de número 22 da revista L'arc, de 1963, Héctor Ciocchini publica em francês um texto intitulado “La parole habitable”, dedicado ao poeta René Char, que era o foco do dossiê temático dessa edição da revista (que contou também com um texto de Maurice Blanchot, “René Char et la pensée du neutre”). Os dossiês temáticos eram comuns em L'arc (sobre Queneau (nº 28), sobre Bataille (32), Fellini (45), Duchamp (59), Cortázar (80), Henry Miller (97)), cujo primeiro número saiu em janeiro de 1958 e o centésimo (e último) em janeiro de 1986, editada por Stephane Cordier em Aix-en-Provence (6, rue Ancienne Madeleine). Trata-se, portanto, de uma produção de Ciocchini do período em que estava atuando no Instituto Warburg. Um trabalho sobre as relações entre o pesquisador argentino e o poeta René Char ainda está por ser feito (os dois se tornaram amigos a partir de uma intensa troca de cartas justamente nos inícios da década de 1960, um contato que só foi interrompido com a morte de Char, em 1988; trocavam poemas, recortes de jornal, revistas, indicações bibliográficas).

O longo ensaio de Ciocchini se organiza a partir da montagem de fragmentos, de breves seções que tocam pontos diversos das poéticas tanto de Saint-Exupéry quanto de René Char. Mais do que isso, cada seção ensaia também uma dinâmica diversa e uma intensificação própria da articulação entre os dois autores e a articulação mais ampla que propõe Ciocchini entre a literatura contemporânea e os motivos clássicos que sobrevivem. São exatamente catorze fragmentos presentes na composição do ensaio, intitulados, respectivamente, “O hiato”, “O desejo de comunicação”, “O poema do esforço”, “O ser itinerante”, “Caminhante e alpinista”, “Em direção a um tipo de homem”, “A cidade pessoal”, “Teoria da linguagem e arte do governo”, “O mito humano e as leis da vida”, “A vida anterior”, “Saint-Exupéry e a Cabala”, “Linguagem”, “Estilo” e, finalmente, “O geômetra”. “Mais do que colocar-me como crítico de Saint-Exupéry ou René Char”, escreve Ciocchini na introdução ao ensaio, “pretendi aproximar, a partir de uma ordenação e de rubricas, a obra desses autores a uma juventude que vejo necessitar a organização de sua angústia”, e “minha tarefa”, continua Ciocchini, “pode ter sido encontrar as 'linhas de força' que na obra desses autores foram eminentemente úteis para minha experiência pessoal, pensando que podem ter uma refração mais funda e saudável naqueles que abrem as páginas deste livro” (CIOCCHINI, Héctor. “Hacia un humanismo contemporáneo, Saint-Exupéry, René Char”. El sendero y los días, 1973, p. 8). 

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Ciocchini

Héctor Eduardo Ciocchini (La Plata, 1922 – Buenos Aires, 2005) foi um dos principais nomes por trás do florescimento do Instituto de Humanidades da Universidad Nacional del Sur, em Bahía Blanca, ao longo da década de 1950 e 1960. Com o incentivo do professor de filosofia Francisco Maffei e sobretudo com o apoio de Vicente Fatone, Ciocchini fez parte de um grupo de professores que incluía, entre outros, o tradutor de Platão Antonio Camarero, o heideggeriano de primeira hora Carlos Astrada, Rodolfo Agoglia, Jaime Rest e Antonio Austral. Com sua atividade dupla de poeta e professor, Ciocchini incentivava um ambiente que poderíamos chamar, talvez anacronicamente, de “transdisciplinar”, com a articulação permanente de textos e imagens de variadas latitudes e épocas. Havia uma publicação que organizava essa variabilidade, os “Cuadernos del Sur”, ou ainda “Los trabajos de Anfión” para os frequentadores, espaço de circulação teórica e de colocação em prática das aulas dadas no Instituto de Humanidades.

Em seu livro Historia, arte, cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg, de 2003, José Emilio Burucúa fala do Instituto: “é quase certo que o modelo imaginado e aplicado nesse lugar foi o Warburg Institute de Londres”, pois “não apenas Ciocchini frequentou a biblioteca de Woburn Square na qualidade de investigador visitante em inícios dos anos sessenta” e, entre parêntesis, Burucúa acrescenta que Ciocchini “voltaria, mais tarde, em 1976, exilado pela tirania militar depois do 'desaparecimento' e assassinato que esse regime perpetrou contra sua filha María Clara, uma adolescente de 16 anos”, e retoma: “não apenas portanto pela familiaridade de nosso Héctor com o lugar cuja irradiação estudamos, mas também que o interesse de Aby Warburg pela Nachleben der Antike já havia atraído a atenção de três intelectuais argentinos ativos nos anos quarenta e cinquenta”, intelectuais “que Ciocchini chamou de seus mestres”, a saber, o já citado Fatone, Arturo Marasso e Ezequiel Martínez Estrada (José Emilio Burucúa, Historia, arte, cultura, FCE, 2007, p. 104).

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Studiolo

O último livro de Giorgio Agamben - lançado em novembro de 2019 e intitulado Studiolo - é uma espécie de compilação de imagens favoritas: cada breve capítulo é construído como um comentário a uma coleção de imagens, "imagens amadas de modo especial" escreve o autor na "advertência" que abre o livro. "Studiolo", ensina Agamben na mesma advertência, é o termo utilizado para denominar - no Renascimento - o cômodo da casa para o qual se dirige o príncipe para ler e meditar, tendo à sua volta os quadros prediletos. 

Desde o início Studiolo apresenta a marca de um "estilo tardio", para usar a expressão de Edward Said no livro de mesmo nome (um livro, aliás, póstumo). O estilo tardio opera em Studiolo em um duplo registro: em primeiro lugar, o esforço de Agamben em apresentar um inventário crítico de suas imagens preferidas, uma sorte de testamento no qual recupera e organiza uma das vias de convivência do crítico com a arte; em segundo lugar, certa recorrência sutil do comentário em torno a obras concebidas no final da vida, com destaque para três pintores: Giovanni Bellini, Hans Holbein e Diego Velázquez. 

Ou seja, não apenas Agamben exercita o estilo tardio como busca em certos pintores a repercussão estética do estilo tardio - como é o caso da pintura de Bellini que ilustra a capa do livro: Noé, velho e bêbado, sendo coberto por seus filhos. Agamben comenta que Bellini não havia, até esse momento, pintado qualquer cena do Antigo Testamento - seu interesse, portanto, não seria teológico, mas técnico: seu objetivo é dar conta da nudez do corpo envelhecido: "o tema do quadro", escreve Agamben, "não é a nudez, mas a nudez que deve ser coberta. (...) A nudez que mostra Bellini é a sua, a de um velho que se pôs a nu em sua obra e que agora quer apenas ser coberto (...) Ao mestre importa apenas o jogo das seis mãos ao redor do corpo branco, luminoso".

domingo, 15 de dezembro de 2019

Opus Gelber

Leio Opus Gelber: retrato de un pianista, de Leila Guerriero, uma meditação sobre a criatividade e a arte, sobre a relação do indivíduo com seu ofício e a percepção dessa dinâmica por parte de quem está de fora. A princípio, trata-se da história do contato de Guerriero com o pianista argentino Bruno Gelber, nascido em 1941, eleito um dos cem melhores pianistas do século XX. Tema e personagem fazem pensar de imediato no Glenn Gould de Thomas Bernhard, em O náugrafo (o professor dos três personagens de Bernhard, Horowitz, é mencionado várias vezes no livro de Guerriero).

O livro de Guerriero é ao mesmo tempo complexo e terno, sentimental - ou seja, é visível a complexidade da forma, do modo como os diversos testemunhos são costurados, sobrepostos, editados e montados; mas é também visível o comprometimento da narradora com o personagem, seu envolvimento emocional, sua angústia diante do desejo de fazer justiça às décadas de maníaca dedicação de seu personagem à arte. Das várias tensões que percorrem a narrativa, uma delas - talvez a mais reiterada - é a tensão entre movimento e permanência, viagem e lar (tema que é espelhado na dificuldade de mobilidade de Gelber, que teve poliomielite quando criança, que deixou sequelas na perna esquerda). 
Uma das principais conquistas de Gelber foi justamente a de se tornar um pianista mundialmente reconhecido apesar da dificuldade de se mover. Uma questão decorrente daí é: por que voltou à Argentina depois de quase 50 anos vivendo na Europa? E por que vive em um prédio localizado em uma área degradada da cidade? O retrato de Gelber envolve, portanto, o contraste entre seu apartamento ricamente decorado e os camelôs na calçada, doze andares abaixo. A atenção de Guerriero à influência da casa na subjetividade do artista é, nessa perspectiva, bastante benjaminiana - faz pensar no que escreveu Benjamin sobre as mudanças de endereço constantes de Baudelaire ou seus comentários sobre o interior ("estojo", "veludo") da casa burguesa.
A narradora alcança o artista praticamente no fim de seu percurso - de volta a Buenos Aires, com cada vez mais dificuldade para se locomover. Só ouve (dele e de outros) acerca de seus sucessos, suas viagens e, sobretudo, de sua técnica no piano, sua paixão na interpretação. Esse ponto é central para a narrativa e nunca mencionado diretamente: a narradora nunca presencia a atuação do artista no piano. Sua performance é sempre um ouvir dizer. O livro se encaminha para as últimas 50 páginas quando surge a pergunta: "posso ver você praticar?". O artista responde que sim, mas isso nunca acontece. Nessa perspectiva, Gelber surge como uma espécie de Bartleby, ou seja, como o artista que tem o domínio não apenas do fazer mas também do não-fazer (da "potência-do-não", para dizer com Agamben em seu comentário a Aristóteles).  

Em alguns momentos, a narradora inclusive comenta o desconforto do artista diante do registro da arte, ou seja, diante da possibilidade de gravação da arte, diante da possibilidade de contato com a arte para além da performance do artista (Gelber gravou poucos discos, esclarece ela, e resiste à ideia de gravar mais). No lugar da visibilidade imediata da performance, está o anedótico, o legendário, a máscara, a cortina das várias versões de inúmeros acontecimentos. A narradora sabe que Gelber é um artista genial, mas nunca comprova - a narrativa é apresentação desse fato a partir da perspectiva de várias testemunhas e, sobretudo, do artista (que, por sua vez, fala pouco da técnica, da performance - preferindo contar várias vezes a situação em que teve que comer um mosquito (cuspir seria pior) em um palco italiano). 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Shakespeare barbeado

A dissonância, que age no cerne da expectativa de leitura de Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, vai ainda mais longe do que a simples retomada irônica de Hamlet: ao propor um exercício jocoso de metaficção (afinal de contas, RaGad depende perigosamente de um conhecimento satisfatório do universo shakespeareano - e uma reflexão, por breve que seja, sobre o que pode significar sua atualização em uma peça humorística do século XX), ao propor um exercício jocoso de metaficção, eu dizia, Stoppard está, também e ao mesmo tempo, alcançando um grau altíssimo de vitalidade, no sentido de efetivamente aproximar Hamlet da vida cotidiana. 

Repare na consequência revolucionária do procedimento de Stoppard: Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, ao se infiltrar nas tramas de Hamlet, retoma sua força estética de forma enviesada, oblíqua, mostrando o que poderia estar acontecendo (ou o que aconteceu, ou o que deveria ter acontecido - perceba que os tempos já começam a se embaralhar na enunciação de uma simples sinopse) por trás das grandes cenas, as cenas principais, escritas por Shakespeare. 

A partir do momento em que Stoppard apresenta sua proposta disruptiva - "eu posso ver o que eles estão fazendo lá atrás" -, tudo passa a funcionar como se diante de um leve toque demoníaco: passamos a ver a peça de Shakespeare já de forma impura, sua ação já não é coesa e cada fala leva a incontroláveis implicações subterrâneas. O gesto de Stoppard está plasmado em Rosencrantz and Guildenstern Are Dead mas seu procedimento é inexaurível, ele circula pela tradição, fazendo-se e refazendo-se, procurando novos avatares, novas configurações (o gesto é análogo àquele de Duchamp com a Monalisa: mesmo depois dos bigodes, mesmo com a modelo "barbeada" - L.H.O.O.Q. rasée, de 1965 -, o quadro de Da Vinci jamais será o mesmo). 


sábado, 23 de novembro de 2019

MacBird!

Imagino o dia em que Tom Stoppard escreverá uma peça chamada Gleizes e Metzinger, ou talvez Gleizes e Metzinger estão pintando, ou ainda Gleizes e Metzinger no inferno. A peça, evidentemente, seguiria os moldes de Rosencrantz and Guildenstern Are Dead (a peça de Stoppard cuja primeira performance ocorreu em 24 de agosto de 1966), cuja graça está justamente no fato de Hamlet aparecer pouquíssimas vezes. A peça de Stoppard é uma brilhante invasão na mente de Shakespeare - como se Stoppard, por um momento, pelo momento que durou a escrita da peça, fosse amaldiçoado com a "memória de Shakespeare", segundo o tardio conto de Borges -, uma brilhante fantasia a respeito daquilo que, simultaneamente, está e não-está na peça de Shakespeare. 

A peça de Stoppard é genial em sua simplicidade: ela funciona como uma piada despretensiosa levada às últimas consequências - e o fato de lidar com Hamlet, a maior e mais famosa peça de teatro da história da literatura ocidental, plena de importância e canonicidade, só torna o jogo ainda mais produtivo, ainda mais desconfortável.   
*
Juan Rodolfo Wilcock tinha o mesmo gosto de Stoppard pelo desvio ridículo da História, seus momentos de excesso e seus personagens que operam na passagem de um paradigma a outro (como muitos da Sinagoga dos iconoclastas). Em 1967 – mesmo ano da primeira edição em inglês e um ano depois da peça de Stoppard –, a editora Feltrinelli publica a tradução de Wilcock da peça teatral de Barbara Garson, MacBird!, uma sátira que justapõe a trama de Macbeth, de Shakespeare, ao assassinato de John F. Kennedy (1963). A peça de Garson, que começou como um esquete satírico em Berkeley, no âmbito das atividades anti-Vietnã, parodia trechos também de outros trabalhos de Shakespeare – Hamlet e Ricardo III –, transformando o inglês do século XVI no inglês falado no Texas da década de 1960 (que Wilcock, em sua tradução, pode ter vertido ao dialeto romano ou napolitano, especulo eu).

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

El analfabeto

O leitor, muitas vezes levado por um novo interesse, repassa textos antigos, já conhecidos, na esperança de captar algo distinto (e com sorte ligado ao novo interesse). Relendo a coletânea de ensaios de Giorgio Agamben Il fuoco e il racconto (de 2014), encontrei uma rápida e sugestiva menção a César Vallejo (poeta que Agamben já havia mencionado antes em Profanações). A menção está no ensaio chamado "Sobre a dificuldade de ler" e nem sequer usa o nome de Vallejo, e sim a perífrase "um grande poeta peruano do século XX", que escreveu em sua poesia o seguinte verso:

por el analfabeto a quien escribo

Agamben retem a ideia de uma escrita destinada a quem não pode ler, fazendo desse gesto também um resgate da oralidade (como a escolha de Dante pelo vulgar, "língua materna analfabeta", escreve Agamben). O verso de Vallejo vem de um livro publicado postumamente, España, aparta de mí este cáliz, escrito nos últimos meses de 1937 e lançado em 1939 (Vallejo morre em abril de 1938). 

Curioso e digno de nota é que o verso de Vallejo - esse mesmo citado por Agamben, por el analfabeto a quien escribo - foi utilizado por Elsa Morante como epígrafe para seu romance La Storia, lançado em 1974. Em nenhum momento Agamben aponta essa coincidência, embora seja conhecida sua relação com Morante (em um dos ensaios de outro livro seu, Categorias italianas, Agamben conta que foi através de Wilcock que conheceu Morante).

sábado, 16 de novembro de 2019

Mnemotécnica do leitor

Os textos, ainda que registrados no papel (inscritos, marcados), mudam com o tempo. A escrita é a mesma - a sucessão de letras, palavras, frases - mas a passagem do tempo (sua organização naquilo que chamamos História) transforma seus significados - é a lição do Pierre Menard de Borges, por exemplo, ou da filologia imaginativa e metafísica de Walter Benjamin. 

Em paralelo a isso, existe o processo muito mais misterioso da mudança do olhar do leitor, sua virtualmente infinita capacidade de mudar de ideias e interesses. Um leitor diante de Guerra e paz, de Tolstói, por exemplo, lerá livros completamente diferentes caso saliente em sua leitura tópicos (temas, metáforas, sensações) distintos: a guerra, o amor, a descrição das vestimentas, a interferência do narrador, a morosidade, o tom épico, a presença de animais, a presença de mulheres, a ausência dos astros, a insistência na cor vermelha, a repetição de advérbios de modo, a filosofia, a religião, as técnicas de manejo agrícola:

o comandante em chefe queria ver o regimento exatamente nas mesmas condições em que fazia a marcha - de capote, mochila, sem preparativos de nenhuma espécie (p. 246)

Os franceses estavam apagando o incêndio, espalhado pelo vento, e isso dava tempo para os russos recuarem (p. 392)

a figura do pequeno e insignificante Napoleão (p. 610)

começaram a encontrar uma planta semelhante ao aspargo que chamaram de doce raiz de Maria, e se espalhavam pelos pastos e pelos campos em busca daquela doce raiz de Maria (que era muito amarga), desenterravam-na com os sabres e a comiam, apesar das ordens de não comer aquela planta nociva (p. 817)

Tudo aquilo tinha o cheiro, o apelo, o gosto de Aníssia Fiódorovna (p. 1047)

O carroceiro, de sandálias de palha, correu para a parte de trás da telega, enfiou uma pedra embaixo da roda traseira, sem nenhuma proteção pneumática, e pôs-se a ajeitar os arreios do seu cavalinho que estava parado (p. 1583)

o fato grandioso e inevitável do incêndio e do abandono de Moscou (p. 1731)

o lacaio veio à sala comunicar que o conde Rostóv havia chegado (p. 1963)

A Sociedade Bíblica ocupa agora todo o governo (p. 2390)

aquilo que conhecemos, chamamos de leis da necessidade; o que desconhecemos, chamamos de liberdade (p. 2485)


(Liev Tolstói, Guerra e paz, trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, 2011)

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Pizarnik, Vallejo

"Durante la época en la que Pizarnik comienza a escribir su obra poética, en América Latina ya se conocían los movimientos de vanguardia, gracias a autores como César Vallejo (1892-1938), Enrique Banchs (1888-1968) y Macedonio Fernández (1874-1952). También habían aparecido algunos movimientos de vanguardia liderados por escritores latinoamericanos. Tal es el caso del huidobrismo en Chile y el estridentismo en México. Xavier Abril (1905-1990) y Alberto Hidalgo (1897-1967) representaban en Perú, a la par con Vallejo, a los escritores vanguardistas, de la misma manera en que lo hacían Mariano Brull (1891-1956) en Cuba y León de Greiff (1895-1976) en Colombia.

(...)

Alejandra Pizarnik no sentía afinidad por los autores españoles o latinoamericanos, y le costaba hacer estas lecturas, lo que la hacía sentir culpable por no “conocer” la tradición literaria del idioma en el que escribía. César Vallejo es de los pocos autores de habla hispana que Alejandra Pizarnik leía con frecuencia.

(...)

Poemas como “Mucho más allá” de Alejandra Pizarnik, 

“Quisiera hablar de la vida
Este aullido, este clavarse las uñas
en el pecho, este arrancarse
las cabellera a puñados, este escupirse
a los propios ojos, solo decir:
¿es que yo soy? ¿verdad que sí?”

Tienen relación con el poema “Intensidad y altura” de César Vallejo: 

“Quiero escribir, pero me sale espuma, 
quiero decir muchísimo y me atollo; 
no hay cifra hablada que no sea suma, 
no hay pirámide escrita, sin cogollo”, 

en tanto muestran no solo el dolor latente y la frustración, sino que también exponen la dificultad que supone para el poeta el acto de la escritura cuando se encuentra precisamente, en este punto intermedio, dividido entre su corporalidad, su existencia inmediata y el pensamiento."



(Mónica Alejandra Quintana Rey, El estallido del silencio: la proliferación del lenguaje en la obra de Alejandra Pizarnik, disponível aqui)


domingo, 3 de novembro de 2019

Três caminhos

Buscando por César Vallejo nos ensaios de Roberto Bolaño - leitor constante de Vallejo, usado como mote para seu romance Monsieur Pain - releio um breve texto intitulado "O livro que sobrevive". Bolaño começa com Mircea Eliade para chegar em Borges e Harold Bloom:

Foi o primeiro livro que comprei na Europa e ainda está em minha biblioteca. É a Obra poética de Borges, editada por Alianza/Emecé em 1972 e desde então fora de catálogo. Comprei em Madri em 1977 e, mesmo não desconhecendo a obra poética de Borges, nessa mesma noite comecei a lê-lo, até as oito da manhã.

Em seguida, abruptamente, Bolaño resgata o juízo de Harold Bloom - "o continuador por excelência de Whitman é Pablo Neruda" (nisso Bloom está errado, escreve Bolaño, embora seja "provavelmente o melhor ensaísta literário do nosso continente"). Diante disso, Bolaño estabelece uma continuidade de Whitman distribuída em três caminhos: Neruda é um continuador que surge como um "filho obediente"; César Vallejo, por sua vez, instaura um segundo caminho a partir de Whitman, aquele do "filho rebelde", ou "filho pródigo"; por fim, Borges instaura o caminho do "sobrinho", "nem dos mais próximos", escreve Bolaño, "um sobrinho cuja curiosidade oscila entre a frieza do entomólogo e o resignado ardor do amante" (Bolaño resgata sem nomear a ideia dos formalistas russos da filiação literária via tio-sobrinho).

(Roberto Bolaño, "El libro que sobrevive", Entre paréntesis, Anagrama, 2006, p. 184-186).

sábado, 2 de novembro de 2019

Redobre fúnebre

"Em seu último livro de ensaios, Profanazioni, que é uma tentativa de retirar os homines sacri de seu círculo de indecidibilidade, o filósofo italiano Giorgio Agamben evoca a famosa conferência de Foucault O que é um autor? Relembra Agamben a drástica separação que Foucault estabelecia entre a função-autor e o autor como indivíduo, e que o levara a repetir, em várias oportunidades, que a marca do escritor residia na singularidade de sua ausência, aguardando-lhe, no jogo escriturário, o papel de morto.

(...)

Ora, essas considerações levam Agamben a concluir que um autor assinala tão-somente uma vida que foi jogada na obra – e que foi jogada como obra. Para ilustrar essa noção de autor como gesto, o filósofo se vale do verso inicial do "Redobre fúnebre pelos escombros de Durango", o poema XIII de Espanha, afasta de mim este cálice [de César Vallejo]. 

Fiel ao princípio mallarmaico de que rien n'aura lieu que le lieu, Agamben se questiona se o sentido desse verso – "Padre pó, tu que sobes da Espanha" – veio antes ou depois de Vallejo escrever o verso. Nada nos garante que ele tenha primeiro imaginado e depois escrito o verso que nos comove. Aliás, essa hipótese (o sujeito precede sempre o texto) é a menos plausível de todas que porventura imaginemos. 

É bem mais provável que só depois de ter escrito essas palavras o sentimento que elas encerram tenha se tornado real para o indivíduo César Vallejo, o que leva Agamben a concluir que il luogo – o, piuttosto, l'aver luogo – del poema non è, dunque, né nel testo, né nell'autore (o nel lettore): è nel gesto in cui autore e lettore si mettono in giocco nel testo e, insieme, infinitamente se ne rittraggono [o lugar - ou melhor, o ter lugar - do poema não está, pois, nem no texto nem no autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso], de tal modo que o autor é tão-somente a testemunha, o fiador de sua própria ausência na obra, cabendo ao leitor, por sua vez, retraçar essa ausência como infinito recomeço do jogo"


(Raul Antelo, "O autor como gesto. À memória de Ronaldo Assunção", disponível aqui)


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Vallejo na Rússia

César Vallejo, poeta peruano, nascido em 16 de março de 1892 e falecido em 15 de abril de 1938, está enterrado no Cemitério do Montparnasse, em Paris. Juan José Saer, escritor argentino, nascido em 28 de junho de 1937 e falecido em 11 de junho de 2005, está enterrado no Cemitério do Père-Lachaise, o maior de Paris. 
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Vallejo viaja à Rússia pela primeira vez em 1928 - por pouco não é contemporâneo de Walter Benjamin no mesmo país e na mesma cidade (passou dois meses em Moscou em 1927). Vallejo volta a Paris em seguida e funda lá a célula parisiense do Partido Socialista peruano (depois rebatizado de Partido Comunista Peruano). No ano seguinte, 1929, Vallejo vai uma segunda vez à Rússia, agora acompanhado de Georgette Marie Philippart Travers (futura Georgette Vallejo, responsável pelo cuidadoso processo de publicação póstuma dos inéditos de Vallejo). Georgette havia recebido uma herança pouco tempo antes, com isso havia dinheiro para ampliar o trajeto e estender o tempo da viagem: passaram por Varsóvia, Praga, Viena, Budapeste, Moscou e Leningrado.
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Em julho de 1931, Vallejo publica em Madri (pela editora Ediciones Ulises) seu livro Rusia en 1931. Reflexiones al pie del Kremlin - reunindo crônicas e reportagens escritas nas duas viagens. O livro foi um sucesso: teve três edições em menos de quatro meses. Em um momento histórico muito preciso, um poeta extemporâneo como Vallejo - vindo do fundo da América Latina e reconfigurando as vanguardas europeias com um punhado de poemas - se vê em um encaixe perfeito com o Zeitgeist (de resto, o tema da Rússia estava na ordem do dia: em 1926 é Joseph Roth quem viaja para lá e depois reúne suas reportagens no livro Viagem à Rússia; dez anos depois, em 1936, é a vez de André Gide publicar seu polêmico Retour de L'U.R.S.S., também fruto de uma viagem e relato das censuras e violências observadas por ele) 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Me gusta la vida enormemente

"Pensava em César Vallejo.

Sempre tive sorte com os poetas. Quer dizer: meus encontros com suas obras sempre foram oportunos. Sempre topei, no momento oportuno, com a obra poética que podia me ajudar a viver, me fazer avançar na acuidade da minha consciência do mundo. Assim com César Vallejo. Assim, mais tarde, com René Char e com Paul Celan.

Em 1942, era a poesia de César Vallejo que eu havia descoberto. Não foi nada agradável, aquele ano. Fui obrigado a largar o preparatório para a Escola Normal Superior, no Henri IV, a fim de ganhar minha vida. Minha sobrevivência, melhor dizendo: algo com que subsistir parcamente. Conseguia, a duras penas, dando aulas de espanhol a alunos de todas as idades, de latim a jovens malandros de boa família, às vezes detestáveis. Só fazia refeições de verdade dia sim, dia não, mais ou menos. Volta e meia me alimentava com bolinhos de trigo-sarraceno comprados sem tíquete de racionamento numa padaria que havia na época no bulevar Saint-Michel, no lugar onde se encontram as ruas Racine e Ecole-de-Médecine.

Mas havia descoberto a poesia de César Vallejo.

Me gusta la vida enormemente
pero, desde luego,
con mi muerte querida y mi café
y viendo los castaños frondosos de París..."

(Jorge Semprun, A escrita ou a vida, tradução de Rosa Freire d'Aguiar, Cia das Letras, 1995, p. 165)

domingo, 20 de outubro de 2019

Hegel, Rembrandt

"Seria Rembrandt uma espécie de equivalente pictórico de Shakespeare? Nossas análises autorizam algumas aproximações jamais feitas explicitamente pelo próprio Hegel. Seja como for, o trágico que se lê em Rembrandt, na cisão que é expressa pela luta da sombra e da luz, não é isento nem de serenidade, nem de cômico ou de ironia: serenidade do capitão e do tenente, que parecem alheios à agitação do conjunto da cena; sorriso, ou antes, riso, irônico, ou até sarcástico, da menina que, quebrando o movimento, faz reinar sobre o conjunto uma inquietante estranheza, que é justamente a da dissolução. 
E nos encontramos então no ponto mais alto. A cisão que vemos se desenhar aqui não é a que arranca a subjetividade de seu meio ético, precisamente porque esse meio começa a fazer da individualidade o único valor, porque todos os conteúdos se dissolvem ante a emergência da subjetividade? Momento de fratura porque o século XVII holandês ainda está marcado por essa comunidade ética que conduziu esses burgueses protestantes ao ápice de sua glória. Mas essa glória encerra as razões de sua dissolução na oposição dos interesses privados, de tal modo que o artista já não encontra senão em si mesmo, na solidão, seu conteúdo"

(Gérard Bras, Hegel e a arte: uma apresentação à Estética, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, Zahar, 1990, p. 53)

domingo, 6 de outubro de 2019

Morada

Por que, para Heidegger, o ser se conjuga com o tempo? Porque o ser não está dado desde sempre de forma essencialista; pelo contrário, o ser está em construção, em processo, em devir. Para Heidegger, a subjetividade não é o reino de um autodomínio absoluto e homogêneo - por isso a imagem do ser que é "lançado" no mundo, em um ambiente de desamparo e angústia. 

As noções de desamparo e angústia permitem relacionar o projeto de Heidegger ao de Freud. O sujeito psicanalítico é descentrado, já não é mais "senhor em sua própria casa" (como diz Freud nas Conferências introdutórias). Não por acaso, Heidegger fala da morada do ser, não por acaso valoriza tanto sua própria casa na floresta. Quando Karl Kraus fala que a psicanálise oferece a solução para um problema que ela criou acerta em cheio (ainda que contra sua intenção, que já não importa) nessa mudança de perspectiva: assim como Heidegger associa o ser ao tempo, fundando uma nova exposição de antigos problemas (a destruição da metafísica mais do que a desconstrução), Freud associa o ser à variabilidade infinita da interpretação, criando não uma "solução", mas um procedimento de produção interminável de questionamentos (acerca do ser e também do tempo). 

domingo, 29 de setembro de 2019

A lama e o poeta

1) O valor da subjetividade é uma ficção intensamente urdida já a partir do cogito de Descartes e aprimorada pelos românticos (o gênio, a inspiração). Para Baudelaire, a autoria é um anacronismo - a auréola do poeta inspirado está na lama. 

je traversais le boulevard, en grande hâte, et que je sautillais dans la boue, à travers ce chaos mouvant où la mort arrive au galop de tous les côtés à la fois, mon auréole, dans un mouvement brusque, a glissé de ma tête dans la fange du macadam

Em decorrência disso, um estudioso do Romantismo como Walter Benjamin vai pensar, já a partir da década de 1920, um livro construído apenas de citações, apenas de nomes alheios.
*
2) Beckett ressalta conscientemente essa herança (que é ao mesmo tempo uma ruptura) cartesiana. Beckett estava interessado em ler o Discurso do método (e as Meditações) como ficção - uma ficção na qual a retórica cria a realidade. Se lembrarmos de Dias felizes, por exemplo, peça de Beckett de 1961, veremos Winnie enterrada até o pescoço, mostrando apenas sua cabeça - uma imagem possível da separação cartesiana entre mente e corpo (mas Beckett vai além, ele suprime o corpo, dissolve o corpo, o que é impensável para Descartes, que via a máquina humana como uma articulação entre mente e corpo).
3) É possível inclusive dizer que, para Beckett, tudo começou com Descartes. Para Beckett, tudo começou com Whoroscope, um longo poema escrito em inglês, mas publicado (em 1930) em Paris por The Hours Press (um pequena casa editorial que contava com um concurso literário, que naquele ano foi vencido por Beckett). O personagem principal é Descartes (Beckett avisa nas notas), que medita sobre o tempo (tema do concurso) em algo que lembra um fluxo de consciência mesclado a comentários culinários, geográficos, teológicos e retóricos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Longos capotes

1) Em pleno 24 de dezembro - 1903 - nasce Joseph Cornell. Em seguida chegam as irmãs, Elizabeth e Helen - Nietzsche teve uma irmã chamada Elizabeth, assim como Walser. E Joseph Cornell, por sua vez, também terá um irmão chamado Robert: nasce em 1910, com paralisia cerebral. O pai morre de leucemia em 1917, tornando a situação financeira da família difícil: a mãe passa a vender doces que faz em casa e Joseph, depois de abandonar a escola, torna-se vendedor de tecidos (percorre a vizinhança, de porta em porta). É curioso que Robert Walser morre em um dia 25 de dezembro - em 1956, aos 78 anos (Cornell vivia seu primeiro dia com 53 anos).
2) Charles Simic dedicou um livro a Joseph Cornell: Dime-Store Alchemy: The art of Joseph Cornell, de 1992. Simic aborda a obra, a vida e o universo de Joseph Cornell através de capítulos bastante breves, escritos em uma prosa poética costurada com algumas citações (Nietzsche, Nerval, Poe, Valéry, Baudelaire) e algumas imagens das obras de Cornell. De modo que não se trata nem de uma biografia nem de um estudo crítico, ainda que seja um pouco de ambos: Simic apresenta um retrato de Cornell que é filtrado por seu próprio registro poético. Nascido em 1938, Simic tinha 18 anos de idade em 1956, e vivia há apenas dois anos nos Estados Unidos (Simic é natural da Sérvia).
3) "Tinha a expressão que imagino ser a do rosto do Bartleby de Melville", escreve Simic sobre Cornell. "Sua expressão no dia em que decide interromper o trabalho para olhar somente para o muro do outro lado da janela do escritório". Simic não vai além em seu anúncio de uma possível metempsicose entre Bartleby e Cornell. Só afirma que "existem homens assim em todas as grandes cidades", vagando solitários pelas ruas, envolvidos em seus longos capotes fora de moda. O olhar perdido, mas intenso, também como Walser; o longo capote fora de moda, também como Walser. 

domingo, 15 de setembro de 2019

Jünger cita Proust

"Entre 1941 e 1944, o major Ernst Jünger, oficial de campanha e poeta da Wehrmacht, residia no Hotel Raphael, em Paris, um dos escritórios alemães oficiais na França ocupada. Sempre que os bombardeiros noturnos da Royal Air Force decolavam de suas pistas no sul da Inglaterra para atacar a ville lumière, Jünger subia até o terraço do hotel para assistir à 'beleza sublime' e à 'força demoníaca' daqueles 'espetáculos' de multimídia. Pois lá podia ver aquelas radiações produzidas pelo marechal de campo Harris com suas Lancasters e Blenheims sobre Paris em chamas. 'Na mão', Jünger segurava 'uma taça de vinho da Borgonha com morangos'.

Recentemente, alguns críticos franceses têm procurado deduzir dessa taça de vinho o niilismo e o esteticismo de seu consumidor, tamanha é a falta de informação dos intérpretes. Pois Jünger, lá no alto do terraço de seu hotel, estava apenas citando: outra guerra mundial, outro autor. A história da literatura sabe que, já em 1915, dois habitantes de Paris saíram para o balcão de seu apartamento para se deleitar com os jogos de luz entre os zepelins agressores alemães e os holofotes antiaéreos franceses. A guerra de bombas como estreia mundial... Um desses dois franceses era Robert, Marquês de Saint-Loup, um jovem oficial brilhante que estava de férias para se recuperar das trincheiras, seu futuro túmulo. O outro, menos conhecido, era um homem chamado Proust. E já que nem guerras mundiais nem ataques aéreos conseguiam turvar seu amor por Wagner e pela Alemanha, o Marquês explicou ao escritor a beleza dos momentos em que os zepelins 'fazem constelações' e a beleza ainda maior de suas quedas, quando 'fazem o apocalipse'. Pois nesses momentos - reconheceu Saint-Loup com seus ouvidos wagnerianos - os zepelins se transformam em valquírias; e o barulho das sirenes, na cavalgada das valquírias"

(Friedrich Kittler, A verdade do mundo técnico, trad. Markus Hediger, Contraponto, 2017, p. 233-234)

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Joyce, Balzac (1)

No livro James Joyce A to Z: The Essential Reference to the Life and Work, os autores (A. Nicholas Fargnoli e Michael Patrick Gillespie) reservam um verbete para Balzac. Citam um ensaio de Joyce sobre Ibsen de 1903 (um ensaio sobre a peça Catilina, escrita entre 1848-1849 e apresentada pela primeira vez em 1881) no qual ele critica Balzac por sua "falta de precisão". O mais interessante, contudo, é a remissão que os autores fazem a uma referência a Balzac presente em Finnegans Wake - mais precisamente, uma referência a Balzac que Joyce mescla a uma referência a Oscar Wilde:

the squidself which he had squirtscreened from the crystalline world waned chagreenold and doriangrayer in its dudhud  (186.6-8)

A referência de Joyce aqui é La Peau de chagrin, romance de Balzac lançado em 1831, e que conta a história de um jovem que recebe um pedaço mágico de pele (ou couro) que satisfaz seus desejos (mas a cada desejo concedido a pele diminui de tamanho e leva consigo parte da energia vital do jovem). Joyce pega o chagrin do original em francês e acrescenta a palavra green e a palavra old, preparando o terreno para a próxima referência, de Oscar Wilde:

chagreenold and doriangrayer 

O verde de chagrin se articula com o cinza de doriangrayer, ou seja, de Dorian Gray - o romance e personagem de Oscar Wilde, também ele envolvido em um sistema mágico de retribuição e castigo (assim como a pele em Balzac, o quadro em Wilde recebe a pena do envelhecimento, que não é, contudo, compartilhada pelo protagonista).   

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Joyce, Balzac

1) O jogo da crítica é aquele de justapor peças, lançando aqui e ali contatos possíveis, sempre arbitrários, na esperança de que algum desenho (coerente, incoerente, figurativo ou cubista) possa surgir, um mapa que facilite (ou dificulte) o acesso a um texto já conhecido. No caso de Joyce, por exemplo, do Ulysses de Joyce, as referências acessíveis formam um percurso quase automático: Homero, Vico, Flaubert (e Beckett como um continuador). 
2) O que acontece, por exemplo, na passagem de Balzac a Joyce? São projetos análogos em seus desejos de totalidade e exaustividade: mas aquilo que Balzac faz em 91 obras (finalizadas; outras 46 ficaram incompletas - algumas apenas na fase do título), Joyce condensa em uma (ou duas, se contarmos o Finnegans Wake). Ulysses conta tantas histórias e tem tanta ambição de mergulhar em seus personagens quanto a Comédia humana de Balzac, mas o procedimento é radicalmente diverso - mais a condensação enigmática do que a extensividade pedagógica.
3) Diante da Comédia humana e de Ulysses, o leitor é igualmente convidado a gastar uma enorme quantidade de tempo na decifração. No caso de Balzac, é um tempo a princípio linear, extensivo, cumulativo, que se percebe na sucessão das obras (imagine 91 livros sobre uma mesa de trabalho dedicada exclusivamente a Balzac); no caso de Joyce, trata-se de um tempo mais amorfo e irregular, uma leitura que convida à decifração de palavra por palavra, frase por frase. No primeiro, a energia é difusa; no segundo, é concentrada.   

domingo, 1 de setembro de 2019

O cura da aldeia

"Com certeza o resultado [alcançado por Balzac em seu romance O cura da aldeia] dá facilmente razão à ironia de Borges: 'Ortega y Gasset observa com justeza que a 'psicologia' de Balzac não nos satisfaz absolutamente; poderíamos dizer a mesma coisa de suas intrigas'. O cura da aldeia é o exemplo perfeito dessas intrigas 'mal feitas' às quais Borges opõe a perfeição das intrigas dos modernos, de A outra volta do parafuso à Invenção de Morel. Mas talvez seja justamente da essência do romance que suas intrigas sejam mal feitas.

Claramente, são duas teologias da escrita romanesca que se opõem nesse aparente julgamento de valor, duas maneiras de amarrar o 'segrego' do livro ao paradigma policial do segredo racionalmente desvendado. Borges escreve e pensa a escrita na tradição de Poe. Esta identifica o poder demiúrgico do escritor com o saber do inquiridor que reverte qualquer aparência em sua verdade. Nessa teologia, a andança da letra e o fantasma de sua carne são mandados embora juntos. A letra perdida não sai das escrivaninhas dos grandes personagens e seu segredo nunca é outra coisa do que ser apresentada às avessas. A fábula policial das aparências revertidas mada embora a fábula teológico-social do louco da letra [cujo arquétipo é o Quixote].

Esse escritor não escreve romances, mas, ao infinito, contos que renovam os traços e as cores da alegoria. Ora, é precisamente neste ponto da identificação da fábula com o inquérito policial que se opera o desvio romanesco no relato balzaquiano. Os indícios do policial, o olhar do padre, a lógica do dramaturgo e a intenção do moralista não conseguem se reunir para expor o crime do livro. (...) Este não é caso de 'conteúdo' que venha, à maneira hegeliana, contradizer e fazer romper a forma. É antes a própria forma que se revela inseparável de seu 'conteúdo', a encenação da partilha da escrita"

(Jacques Rancière, Políticas da escrita, Ed. 34, 2017, p. 98-99)

terça-feira, 27 de agosto de 2019

As três vanguardas

1) Já na primeira aula de seu curso Las tres vanguardias, Ricardo Piglia afirma que por trás da sua escolha de três nomes contemporâneos da literatura argentina - Saer, Puig e Rodolfo Walsh - está seu desejo de refletir sobre a condição do romance para além das fronteiras nacionais. Para isso, ainda na primeira aula do curso, ele propõe outros três nomes, numa espécie de tabela de correspondências ou afinidades: para Saer está Peter Handke, para Puig está Thomas Pynchon e, para Walsh, está Alexander Kluge (o curso é de 1990 e me pergunto como, através de quem, em que traduções e/ou edições Piglia teve acesso à obra desses três nomes). 
2) Piglia afirma que um dos legados da obra e da figura de Borges é alinhar a literatura argentina com a literatura do resto do mundo - algo que acontece também, em paralelo, por conta da multiplicação dos meios técnicos de difusão de informação (cinema de massa, televisão, internet - um tema fundamental para Benjamin e para Puig, na visão de Piglia no curso).
3) Como é de praxe em se tratando de Piglia, ele retorna a Sarmiento e ao Facundo: mas tal retorno não é simples ou linear, é feito levando em consideração os dois movimentos mostrados acima - em primeiro lugar, a ligação de Saer, Puig e Walsh a Handke, Pynchon e Kluge e, em paralelo, a manutenção subterrânea do modelo de Borges para "o escritor argentino e a tradição". Já no começo do curso, Piglia aproxima Sarmiento e Flaubert - são rigorosamente contemporâneos, e Piglia separa o ano de 1852, indicando o que cada um estava fazendo no momento: se Flaubert é o ponto de referência em termos de vanguarda, escreve Piglia, Sarmiento é, por sua vez, o ponto de referência em termos de construção da figura do autor no sistema literário argentino.  

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Servo de um servo

1) O rei das sombras, romance de Javier Cercas, é mais um artefato artístico em uma longa cadeia de reelaborações de Homero e seus personagens. O objetivo principal de Cercas no romance - seu romance sem ficção, como ele diz - é apresentar as complexidades de Manuel Mena, parente seu que lutou na Guerra Civil Espanhola do lado dos fascistas. Um dos muitos recursos utilizados por Cercas para delinear o personagem - sendo o uso de fotografias talvez o mais notório - é a aproximação que faz dele com Aquiles, o guerreiro da Ilíada
2) "A morte de Manuel Mena tinha sido gravada a ferro e fogo na imaginação infantil de minha mãe como aquilo que os gregos antigos chamavam de uma bela morte", escreve o narrador no início do romance. "Aquiles demonstra sua nobreza e sua pureza arriscando a vida num tudo ou nada (...) para minha mãe, Manuel Mena era Aquiles" (p. 17).
3) Aquiles, porém, é também fonte de instabilidade e ambiguidade para a narrativa, como Cercas logo aponta. Aquiles é tanto aquele que alcança a bela morte como aquele que, reencontrado no Hades, declara que pior posição na vida é sempre preferível à melhor posição na morte: "na verdade ele [Manuel Mena] é o Aquiles da Odisseia e está no reino das sombras maldizendo o fato de, morto, ser o rei dos mortos e não o servo de um servo em vida" (p. 251). O Aquiles da Ilíada é o da bela morte, do sacrifício pela pátria; o Aquiles da Odisseia, contudo, é um herói arrependido, não-reconciliado com a morte, que preferia estar na terra, como servo de outro, do que reinar sobre os mortos.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Das duas às sete

No início de 1923, ainda dando aulas para crianças no interior da Áustria, Wittgenstein entra em contato com Frank Ramsey, o jovem matemático responsável pela tradução do Tractatus do alemão para o inglês. Wittgenstein escreve uma carta convidando Ramsey para uma visita à cidadezinha na qual ele mora, Puchberg. Em setembro desse ano a visita acontece e os dois leem o Tractatus juntos minuciosamente ao longo de duas semanas: palavra por palavra, linha por linha, todos os dias das duas às sete.
*
Uma cena de leitura como essa é profundamente angustiante em um período histórico de abundância maníaca como o nosso. A leitura minuciosa - letra por letra, palavra por palavra, como Foucault fazia em seus cursos (embora nunca com um livro inteiro), ou Derrida em seus ensaios e conferências - é hoje praticamente contra-intuitiva. A leitura cerrada, além de ser difícil em si, carrega a dificuldade externa de remeter continuamente ao excesso de referências, de textos e livros que não estão sendo lidos.
*
Como no caso de Wittgenstein, a minúcia da leitura por vezes toca a loucura - como acontece em Fogo pálido, de Nabokov, outro exemplo de uma cena de leitura intensa, exclusiva. O leitor passa a viver no interior de cada sílaba, assim como aquele que escreveu o fez. Nesse sentido, a leitura minuciosa gera um curto-circuito entre ação e reação, como se o tempo da leitura pudesse ser equivalente ao tempo da escrita (um livro perfeito para uma insônia perfeita, como queria Joyce, ou seja, um livro cuja leitura demore mais até do que a escritura). Penso na leitura que Flaubert fez de A educação sentimental no salão literário da princesa Mathilde, prima de Napoleão III, que levou dezesseis horas, divididas em quatro seções; ou nas várias noites que Kafka passou lendo na íntegra seus textos para os amigos; ou Fernando Pessoa atravessando a noite de 8 de março de 1914 e escrevendo, em uma espécie de êxtase, toda a obra de Alberto Caeiro. 

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Blanchot, Cioran

"Seu passado a confinava no mundo da cultura, e isso era um mal-entendido, porque o sonho dela era trabalhar no cinema de entretenimento, só ia ver filmes acessíveis a todo mundo, adorava Imensidão azul e mais ainda Os visitantes, enquanto o texto de Bataille lhe pareceu 'uma babaquice total', tanto quanto um texto de Leiris que lhe impingiram um pouco mais tarde, mas sem dúvida o pior foi uma leitura de uma hora de Blanchot para a France Culture, eu nunca desconfiei, disse ela depois, que existissem merdas assim, era incrível, disse, que tivessem coragem de apresentar ao público uma asneira daquelas. Pessoalmente eu não tinha nenhuma opinião sobre Blanchot, só me lembrava de um parágrafo divertido de Cioran explicando que Blanchot é o autor ideal para se aprender datilografia porque 'o sentido do texto não atrapalha'"


Michel Houellebecq, Serotonina, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht, Alfaguara, 2019, p. 77

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Pesquisa, romance

1) A estratégia enciclopédica de Michel Houellebecq - que é polimorfa e se adapta ao projeto específico de cada romance - não pode ser vista como um mero instrumental para a preparação do romance. Ou seja, um conjunto neutro de ferramentas que tornam possível o romance e dele não fazem parte. Pelo contrário, a estratégia enciclopédica é o próprio cerne dos romances, tornando-os possíveis e constituindo uma sorte de meta-comentário da performance romanesca. 
2) Nessa perspectiva, o procedimento vem desde Flaubert - e Houellebecq deliberadamente reconfigura o procedimento flaubertiano, renovando-o tendo em vista o aumento exponencial da estupidez na contemporaneidade (ou, ao menos, seus meios de distribuição e divulgação). O uso que Houellebecq faz da Wikipedia, por exemplo, não é por acaso: o que está em jogo não é a pesquisa para um romance como estratégia realista - a documentação como garantia da verossimilhança - e sim como diapasão da proliferação da estupidez. 
3) Assim como Flaubert usa Cartago para Salammbô, MH usa a clonagem para A possibilidade de uma ilha; assim como Flaubert usa a vida no interior para Madame Bovary, MH usa a vida corporativa em Extensão do domínio da luta e os meandros da arte contemporânea em O mapa e o território. A minúcia da pesquisa equivale à minúcia da estupidez (e a primeira serve para realçar a segunda, e não para escondê-la). Não é por acaso também que a epígrafe de Plataforma venha de Balzac - do qual podemos ler, em Ilusões perdidas, o seguinte diagnóstico, que jamais perderá sua atualidade, seu caráter polimorfo: 

Enfim, meu caro, o segredo da fortuna, em literatura, não é trabalhar; trata-se de explorar o trabalho de outrem. Os proprietários de jornais são empreiteiros, e nós pedreiros. Assim é que, quanto mais medíocre for o homem, tanto mais rapidamente subirá. (Balzac, Ilusões perdidas, trad. Ernesto Pelanda e Mario Quintana - A comédia humana, vol. 7, Globo, 2013, p. 307).

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Retratos, sombras

1) O romance que Javier Cercas publica em 2017, O rei das sombras, sobre a morte de seu tio-avô na Guerra Civil Espanhola, apresenta em suas páginas três fotografias: em primeiro lugar, logo no começo, a fotografia do parente - com o uniforme militar, portando medalhas e insígnias -; algumas páginas depois, uma fotografia deteriorada mostrando uma turma de escola, treze crianças (todos meninos) e um professor; por fim, bem mais adiante, para além da metade do romance, uma fotografia de estúdio, em preto e branco, mostrando três mulheres, duas em pé e uma sentada, bem no centro (a da direita, Sara, foi assassinada pelos franquistas - o narrador só pode especular as razões, nada é certo).
2) Parafraseando o Fredric Jameson de Brecht e a questão do método, quando escreve que "o que chamamos 'eu' é em si um objeto da consciência, e não nossa própria consciência" (trad. Maria Sílvia Betti, Cosac, 2013, p. 84), podemos dizer que a fotografia no romance é um objeto (uma ferramenta) da representação (dos "fatos", da "realidade") e não a própria representação (que não existe fora do jogo da mediação). É esse apelo paradoxo da imagem que tanto fascinou Barthes (A câmara clara), Sontag (Sobre a fotografia) ou Alberto Manguel (Lendo imagens). 
3) Mais do que ilustrar a narrativa escrita, a imagem conta uma história suplementar - mais do que isso, as imagens conversam entre si. A imagem da turma de escola de Cercas, as treze crianças e o professor, mais do que expressar seu conteúdo, seu tema, expressa sua condição material, sua deterioração, seus rasgos e remendos - como faz também Paul Auster na abertura de seu A invenção da solidão, livro inesgotável, especialmente na abertura de sua primeira seção, sintomaticamente intitulada "Retrato de um homem invisível". O rasgo da foto, sua deterioração, sua materialidade - mais do que a família diante da casa, mais do que seu tema, é o rasgo que comenta, indiretamente, a narrativa (relata a história por outras vias).

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Assinatura

"Tenho o mau gosto de estar maravilhado por ser Roberto Arlt", escreve Ricardo Piglia, indicado na epígrafe de A vida como literatura de Silviano Santiago. Piglia, leitor de Arlt, se apropria do nome próprio deste último em 1975 (em seu livro Nome falso); Silviano Santiago, leitor de Graciliano Ramos, repete o procedimento em 1981 (com Em liberdade); e, finalmente, em 2006, em A vida como literatura, é o nome próprio "Silviano" que é posto em questão, agora na leitura que se faz de Cyro dos Anjos.
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No ensaio sobre As afinidades eletivas de Goethe (concluído em 1922), no qual versa também sobre a escolha feita por Goethe dos nomes dos personagens ("Dificilmente haverá em qualquer outra literatura uma narrativa da extensão das Afinidades eletivas em que se encontrem tão poucos nomes"), Walter Benjamin escreve: Nada vincula tanto o ser humano à linguagem quanto seu nome. O nome funda a existência - toca tanto a signatura (como mostra Agamben em Signatura Rerum) quanto a arkhé (a arqueologia dos discursos e dos enunciados, a partir de Nietzsche, Freud, Foucault, que busca não a exaustão da origem, mas a multiplicidade dos começos).


Assinar é estabelecer um parentesco e um pertencimento, é ligar o caráter intangível da subjetividade e da identidade à materialidade do traço, da grafia, da tinta e do papel. A assinatura é mais do que o nome próprio - é a junção do nome próprio com o rastro possível de um corpo, de uma performance, uma atuação, uma imposição motora (empunhar, escrever, assinar). No sétimo episódio da terceira temporada de Mad Men, vemos Don Draper assinar seu nome em um contrato, algo que até então ele sempre recusou - porque reconhece que a assinatura é uma abertura, é uma performance de entrega, de abertura, de vulnerabilidade. A assinatura de Don Draper é também uma tentativa de reassumir o protagonismo, já que no mesmo episódio duas outras pessoas sentam em sua cadeira, atrás de sua mesa, dentro de sua sala (ocupando o lugar de um morto, como Agamben define a autoria).