"Com certeza o resultado [alcançado por Balzac em seu romance O cura da aldeia] dá facilmente razão à ironia de Borges: 'Ortega y Gasset observa com justeza que a 'psicologia' de Balzac não nos satisfaz absolutamente; poderíamos dizer a mesma coisa de suas intrigas'. O cura da aldeia é o exemplo perfeito dessas intrigas 'mal feitas' às quais Borges opõe a perfeição das intrigas dos modernos, de A outra volta do parafuso à Invenção de Morel. Mas talvez seja justamente da essência do romance que suas intrigas sejam mal feitas.
Claramente, são duas teologias da escrita romanesca que se opõem nesse aparente julgamento de valor, duas maneiras de amarrar o 'segrego' do livro ao paradigma policial do segredo racionalmente desvendado. Borges escreve e pensa a escrita na tradição de Poe. Esta identifica o poder demiúrgico do escritor com o saber do inquiridor que reverte qualquer aparência em sua verdade. Nessa teologia, a andança da letra e o fantasma de sua carne são mandados embora juntos. A letra perdida não sai das escrivaninhas dos grandes personagens e seu segredo nunca é outra coisa do que ser apresentada às avessas. A fábula policial das aparências revertidas mada embora a fábula teológico-social do louco da letra [cujo arquétipo é o Quixote].
Esse escritor não escreve romances, mas, ao infinito, contos que renovam os traços e as cores da alegoria. Ora, é precisamente neste ponto da identificação da fábula com o inquérito policial que se opera o desvio romanesco no relato balzaquiano. Os indícios do policial, o olhar do padre, a lógica do dramaturgo e a intenção do moralista não conseguem se reunir para expor o crime do livro. (...) Este não é caso de 'conteúdo' que venha, à maneira hegeliana, contradizer e fazer romper a forma. É antes a própria forma que se revela inseparável de seu 'conteúdo', a encenação da partilha da escrita"
(Jacques Rancière, Políticas da escrita, Ed. 34, 2017, p. 98-99)
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