sábado, 23 de novembro de 2019

MacBird!

Imagino o dia em que Tom Stoppard escreverá uma peça chamada Gleizes e Metzinger, ou talvez Gleizes e Metzinger estão pintando, ou ainda Gleizes e Metzinger no inferno. A peça, evidentemente, seguiria os moldes de Rosencrantz and Guildenstern Are Dead (a peça de Stoppard cuja primeira performance ocorreu em 24 de agosto de 1966), cuja graça está justamente no fato de Hamlet aparecer pouquíssimas vezes. A peça de Stoppard é uma brilhante invasão na mente de Shakespeare - como se Stoppard, por um momento, pelo momento que durou a escrita da peça, fosse amaldiçoado com a "memória de Shakespeare", segundo o tardio conto de Borges -, uma brilhante fantasia a respeito daquilo que, simultaneamente, está e não-está na peça de Shakespeare. 

A peça de Stoppard é genial em sua simplicidade: ela funciona como uma piada despretensiosa levada às últimas consequências - e o fato de lidar com Hamlet, a maior e mais famosa peça de teatro da história da literatura ocidental, plena de importância e canonicidade, só torna o jogo ainda mais produtivo, ainda mais desconfortável.   
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Juan Rodolfo Wilcock tinha o mesmo gosto de Stoppard pelo desvio ridículo da História, seus momentos de excesso e seus personagens que operam na passagem de um paradigma a outro (como muitos da Sinagoga dos iconoclastas). Em 1967 – mesmo ano da primeira edição em inglês e um ano depois da peça de Stoppard –, a editora Feltrinelli publica a tradução de Wilcock da peça teatral de Barbara Garson, MacBird!, uma sátira que justapõe a trama de Macbeth, de Shakespeare, ao assassinato de John F. Kennedy (1963). A peça de Garson, que começou como um esquete satírico em Berkeley, no âmbito das atividades anti-Vietnã, parodia trechos também de outros trabalhos de Shakespeare – Hamlet e Ricardo III –, transformando o inglês do século XVI no inglês falado no Texas da década de 1960 (que Wilcock, em sua tradução, pode ter vertido ao dialeto romano ou napolitano, especulo eu).

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

El analfabeto

O leitor, muitas vezes levado por um novo interesse, repassa textos antigos, já conhecidos, na esperança de captar algo distinto (e com sorte ligado ao novo interesse). Relendo a coletânea de ensaios de Giorgio Agamben Il fuoco e il racconto (de 2014), encontrei uma rápida e sugestiva menção a César Vallejo (poeta que Agamben já havia mencionado antes em Profanações). A menção está no ensaio chamado "Sobre a dificuldade de ler" e nem sequer usa o nome de Vallejo, e sim a perífrase "um grande poeta peruano do século XX", que escreveu em sua poesia o seguinte verso:

por el analfabeto a quien escribo

Agamben retem a ideia de uma escrita destinada a quem não pode ler, fazendo desse gesto também um resgate da oralidade (como a escolha de Dante pelo vulgar, "língua materna analfabeta", escreve Agamben). O verso de Vallejo vem de um livro publicado postumamente, España, aparta de mí este cáliz, escrito nos últimos meses de 1937 e lançado em 1939 (Vallejo morre em abril de 1938). 

Curioso e digno de nota é que o verso de Vallejo - esse mesmo citado por Agamben, por el analfabeto a quien escribo - foi utilizado por Elsa Morante como epígrafe para seu romance La Storia, lançado em 1974. Em nenhum momento Agamben aponta essa coincidência, embora seja conhecida sua relação com Morante (em um dos ensaios de outro livro seu, Categorias italianas, Agamben conta que foi através de Wilcock que conheceu Morante).

sábado, 16 de novembro de 2019

Mnemotécnica do leitor

Os textos, ainda que registrados no papel (inscritos, marcados), mudam com o tempo. A escrita é a mesma - a sucessão de letras, palavras, frases - mas a passagem do tempo (sua organização naquilo que chamamos História) transforma seus significados - é a lição do Pierre Menard de Borges, por exemplo, ou da filologia imaginativa e metafísica de Walter Benjamin. 

Em paralelo a isso, existe o processo muito mais misterioso da mudança do olhar do leitor, sua virtualmente infinita capacidade de mudar de ideias e interesses. Um leitor diante de Guerra e paz, de Tolstói, por exemplo, lerá livros completamente diferentes caso saliente em sua leitura tópicos (temas, metáforas, sensações) distintos: a guerra, o amor, a descrição das vestimentas, a interferência do narrador, a morosidade, o tom épico, a presença de animais, a presença de mulheres, a ausência dos astros, a insistência na cor vermelha, a repetição de advérbios de modo, a filosofia, a religião, as técnicas de manejo agrícola:

o comandante em chefe queria ver o regimento exatamente nas mesmas condições em que fazia a marcha - de capote, mochila, sem preparativos de nenhuma espécie (p. 246)

Os franceses estavam apagando o incêndio, espalhado pelo vento, e isso dava tempo para os russos recuarem (p. 392)

a figura do pequeno e insignificante Napoleão (p. 610)

começaram a encontrar uma planta semelhante ao aspargo que chamaram de doce raiz de Maria, e se espalhavam pelos pastos e pelos campos em busca daquela doce raiz de Maria (que era muito amarga), desenterravam-na com os sabres e a comiam, apesar das ordens de não comer aquela planta nociva (p. 817)

Tudo aquilo tinha o cheiro, o apelo, o gosto de Aníssia Fiódorovna (p. 1047)

O carroceiro, de sandálias de palha, correu para a parte de trás da telega, enfiou uma pedra embaixo da roda traseira, sem nenhuma proteção pneumática, e pôs-se a ajeitar os arreios do seu cavalinho que estava parado (p. 1583)

o fato grandioso e inevitável do incêndio e do abandono de Moscou (p. 1731)

o lacaio veio à sala comunicar que o conde Rostóv havia chegado (p. 1963)

A Sociedade Bíblica ocupa agora todo o governo (p. 2390)

aquilo que conhecemos, chamamos de leis da necessidade; o que desconhecemos, chamamos de liberdade (p. 2485)


(Liev Tolstói, Guerra e paz, trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, 2011)

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Pizarnik, Vallejo

"Durante la época en la que Pizarnik comienza a escribir su obra poética, en América Latina ya se conocían los movimientos de vanguardia, gracias a autores como César Vallejo (1892-1938), Enrique Banchs (1888-1968) y Macedonio Fernández (1874-1952). También habían aparecido algunos movimientos de vanguardia liderados por escritores latinoamericanos. Tal es el caso del huidobrismo en Chile y el estridentismo en México. Xavier Abril (1905-1990) y Alberto Hidalgo (1897-1967) representaban en Perú, a la par con Vallejo, a los escritores vanguardistas, de la misma manera en que lo hacían Mariano Brull (1891-1956) en Cuba y León de Greiff (1895-1976) en Colombia.

(...)

Alejandra Pizarnik no sentía afinidad por los autores españoles o latinoamericanos, y le costaba hacer estas lecturas, lo que la hacía sentir culpable por no “conocer” la tradición literaria del idioma en el que escribía. César Vallejo es de los pocos autores de habla hispana que Alejandra Pizarnik leía con frecuencia.

(...)

Poemas como “Mucho más allá” de Alejandra Pizarnik, 

“Quisiera hablar de la vida
Este aullido, este clavarse las uñas
en el pecho, este arrancarse
las cabellera a puñados, este escupirse
a los propios ojos, solo decir:
¿es que yo soy? ¿verdad que sí?”

Tienen relación con el poema “Intensidad y altura” de César Vallejo: 

“Quiero escribir, pero me sale espuma, 
quiero decir muchísimo y me atollo; 
no hay cifra hablada que no sea suma, 
no hay pirámide escrita, sin cogollo”, 

en tanto muestran no solo el dolor latente y la frustración, sino que también exponen la dificultad que supone para el poeta el acto de la escritura cuando se encuentra precisamente, en este punto intermedio, dividido entre su corporalidad, su existencia inmediata y el pensamiento."



(Mónica Alejandra Quintana Rey, El estallido del silencio: la proliferación del lenguaje en la obra de Alejandra Pizarnik, disponível aqui)


domingo, 3 de novembro de 2019

Três caminhos

Buscando por César Vallejo nos ensaios de Roberto Bolaño - leitor constante de Vallejo, usado como mote para seu romance Monsieur Pain - releio um breve texto intitulado "O livro que sobrevive". Bolaño começa com Mircea Eliade para chegar em Borges e Harold Bloom:

Foi o primeiro livro que comprei na Europa e ainda está em minha biblioteca. É a Obra poética de Borges, editada por Alianza/Emecé em 1972 e desde então fora de catálogo. Comprei em Madri em 1977 e, mesmo não desconhecendo a obra poética de Borges, nessa mesma noite comecei a lê-lo, até as oito da manhã.

Em seguida, abruptamente, Bolaño resgata o juízo de Harold Bloom - "o continuador por excelência de Whitman é Pablo Neruda" (nisso Bloom está errado, escreve Bolaño, embora seja "provavelmente o melhor ensaísta literário do nosso continente"). Diante disso, Bolaño estabelece uma continuidade de Whitman distribuída em três caminhos: Neruda é um continuador que surge como um "filho obediente"; César Vallejo, por sua vez, instaura um segundo caminho a partir de Whitman, aquele do "filho rebelde", ou "filho pródigo"; por fim, Borges instaura o caminho do "sobrinho", "nem dos mais próximos", escreve Bolaño, "um sobrinho cuja curiosidade oscila entre a frieza do entomólogo e o resignado ardor do amante" (Bolaño resgata sem nomear a ideia dos formalistas russos da filiação literária via tio-sobrinho).

(Roberto Bolaño, "El libro que sobrevive", Entre paréntesis, Anagrama, 2006, p. 184-186).

sábado, 2 de novembro de 2019

Redobre fúnebre

"Em seu último livro de ensaios, Profanazioni, que é uma tentativa de retirar os homines sacri de seu círculo de indecidibilidade, o filósofo italiano Giorgio Agamben evoca a famosa conferência de Foucault O que é um autor? Relembra Agamben a drástica separação que Foucault estabelecia entre a função-autor e o autor como indivíduo, e que o levara a repetir, em várias oportunidades, que a marca do escritor residia na singularidade de sua ausência, aguardando-lhe, no jogo escriturário, o papel de morto.

(...)

Ora, essas considerações levam Agamben a concluir que um autor assinala tão-somente uma vida que foi jogada na obra – e que foi jogada como obra. Para ilustrar essa noção de autor como gesto, o filósofo se vale do verso inicial do "Redobre fúnebre pelos escombros de Durango", o poema XIII de Espanha, afasta de mim este cálice [de César Vallejo]. 

Fiel ao princípio mallarmaico de que rien n'aura lieu que le lieu, Agamben se questiona se o sentido desse verso – "Padre pó, tu que sobes da Espanha" – veio antes ou depois de Vallejo escrever o verso. Nada nos garante que ele tenha primeiro imaginado e depois escrito o verso que nos comove. Aliás, essa hipótese (o sujeito precede sempre o texto) é a menos plausível de todas que porventura imaginemos. 

É bem mais provável que só depois de ter escrito essas palavras o sentimento que elas encerram tenha se tornado real para o indivíduo César Vallejo, o que leva Agamben a concluir que il luogo – o, piuttosto, l'aver luogo – del poema non è, dunque, né nel testo, né nell'autore (o nel lettore): è nel gesto in cui autore e lettore si mettono in giocco nel testo e, insieme, infinitamente se ne rittraggono [o lugar - ou melhor, o ter lugar - do poema não está, pois, nem no texto nem no autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso], de tal modo que o autor é tão-somente a testemunha, o fiador de sua própria ausência na obra, cabendo ao leitor, por sua vez, retraçar essa ausência como infinito recomeço do jogo"


(Raul Antelo, "O autor como gesto. À memória de Ronaldo Assunção", disponível aqui)