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domingo, 13 de agosto de 2023

O fio de Ariadne


Em Todos os nomes, seu romance publicado em 1997 (um ano antes de receber o Nobel de Literatura), Saramago fala de um homem que se perde no "arquivo dos mortos", um "investigador de temas heráldicos": ele só foi descoberto uma semana depois do desaparecimento, "quase nas últimas", quando também as esperanças já estavam todas perdidas. A partir desse caso, foi instaurada uma "ordem de serviço" determinando o "uso obrigatório do fio de Ariadne, designação clássica e, se me permitem dizê-lo, irónica, da corda que guardo na gaveta"; desde então, nenhum outro caso de desaparecimento foi registrado (Cia das Letras, 1997, p. 208).

Logo depois do relato desse caso e da reflexão sobre a efetividade do fio de Ariadne, o narrador de Saramago apresenta uma compreensão que o aproxima, por exemplo, do projeto de Sebald em Austerlitz: sem casos como esse, "nunca eu teria chegado a compreender a dupla absurdidade que é separar os mortos dos vivos. Em primeiro lugar, é uma absurdidade do ponto de vista arquivístico, considerando que a maneira mais fácil de encontrar os mortos seria poder procurá-los onde se encontrassem os vivos, posto que a estes, por vivos serem, os temos permanentemente diante dos olhos, mas, em segundo lugar, é também uma absurdidade do ponto de vista memorístico, porque se os mortos não estiverem no meio dos vivos acabarão mais tarde ou mais cedo por ser esquecidos, e depois, com perdão da vulgaridade da expressão, é o cabo dos trabalhos para conseguir descobri-los quando precisamos deles, como também mais tarde ou mais cedo sempre vem a acontecer" (p. 208).

domingo, 27 de março de 2022

Trieste, 1902


1) Falecidos ambos em 2021, Roberto Calasso e Daniele Del Giudice gravitaram durante alguns momentos de suas carreiras ao redor de uma mesma figura, Roberto Bazlen, Bobi Bazlen, falecido em 1965, aos 63 anos (em 1962 ele funda, com Luciano Foà e Roberto Olivetti, a editora Adelphi). Em 1976, sai postumamente o único romance escrito por Bazlen, Il capitano di lungo corso, escrito em alemão e traduzido para o italiano por Calasso (nascido em Trieste, Bazlen frequentou o colégio alemão, o Realgymnasium, por isso a escrita em alemão - de resto, foi também tradutor de Brecht, Freud e Jung). 

2) Além do romance dedicado à busca pelos rastros de Bazlen, Lo stadio di Wimbledon, de 1983, Del Giudice publicou também um livrinho, Nel museo di Reims, de 1988: o personagem Barnaba, que está perdendo a visão por conta de uma doença, decide aproveitar o tempo que resta no museu de Reims, entre as telas de Corot, Géricault e Delacroix (a trama evoca aquela de Thomas Bernhard em Mestres antigos, romance de 1985: conta a história de Reger, crítico de 82 anos que escreve sobre música para o The Times, que por mais de 30 anos senta no mesmo banco do mesmo museu em Viena para observar sempre a mesma pintura: Homem de barba branca, de Tintoretto). 

3) Tanto Bazlen quanto Del Giudice tiveram pais estrangeiros que morreram ainda durante suas infâncias: o pai de Bazlen era alemão, morreu quando Bobi tinha um ano de idade; o pai de Del Giudice era suíço, e antes de morrer deixou a ele de herança uma máquina de escrever. A partir de 1999, até 2003, Del Giudice se dedica a um projeto interdisciplinar intitulado Fondamenta - Venezia città dei lettori (fizeram parte do comitê científico Claudio Magris e José Saramago), que teve cinco edições: Futuro Necessario (1999), Globo Conteso (2000), Corpi (2001), Significati Condivisi (2002), Senza Più (2003). Ao longo desses anos, Del Giudice reúne vozes como as de Ian McEwan, Laurie Anderson, Jean-Luc Nancy, Orhan Pamuk, Lou Reed, entre outras.   

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Não leio mais ficção

1) A questão da velhice e da morte é fundamental para Markson porque é o que, de certa forma, justifica essa pulsão incontrolável da citação, esse esforço de dar conta de todos os livros, de toda a tradição, incorporando-os ao tecido da própria obra (a obra de Markson pensada por ele próprio como uma suma radical de tudo que foi importante para ele). Mas há um ponto paradoxal aí, ponto que Markson levanta nas cartas e em entrevistas dadas nos últimos anos: envelhecer reflete diretamente no desejo de ler ficção, o que aconteceu também com Philip Roth (e muitos outros escritores, como Cormac McCarthy, por exemplo), que declarou certa feita que não lia mais ficção.
2) Markson, no entanto, em seus últimos anos de vida, esboçou certa reação contra essa falta de desejo de ler ficção, e registrou suas tentativas nas cartas que escreveu para a poeta Laura Sims: em 05 de setembro de 2006 ele escreve: "estou me forçando a ler os ditos 'grandes' romances que deixei passar nos últimos anos - Saramago, Sebald, etc, e ficando entediado com mais do mesmo" (Fare Forward: Letters from David Markson, 2014, p. 80). Mais do mesmo com Saramago e Sebald! Na carta de 05 de outubro ele escreve que tentou Antonio Tabucchi, mas sem nenhum efeito. Mas completa com o seguinte diagnóstico: "Mas ignore tudo isso, sou só eu e minha cabeça exausta, não são os livros" (p. 82). Mas não deixa de vir à superfície a tristeza desse vanishing point de um leitor tão dedicado, e mais: um escritor que legou tanto de sua poética ao ato da leitura.
3) "Muito depois de nos termos tornado escritores", escreve Susan Sontag, "ler livros escritos por outros - e reler os livros amados, do passado - constitui uma irresistível distração da escrita. Distração. Consolo. Tormento. E, sim, inspiração". Nem todos os escritores vão admitir isso, ela continua. "Lembro ter falado certa vez a V. S. Naipaul a respeito de um romance inglês do século XIX que eu adorava, um romance muito conhecido, e que eu supunha que ele, assim como todos a quem eu conhecia e que tinham apreço por literatura, admirava como eu. Mas não, ele não o havia lido, respondeu, e, vendo a sombra de surpresa em meu rosto, acrescentou com severidade: 'Susan, sou escritor, não leitor'" (Questão de ênfase, tradução de Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2005, p. 338). 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Adeus, Lenin

John D. Rockefeller, 1839-1937
1) Sabemos que Dupin, o detetive de Edgar Allan Poe, resolvia os crimes sem sair de casa, lendo, relendo, montando e remontando as notícias dos jornais. Um método de investigação que pressupõe o tecido social como caótico, e a imprensa como uma espécie de estação captadora e irradiadora de absurdos que não compreende totalmente. Pereira, o personagem de Antonio Tabucchi, percebe que essa é também a lógica do sistema totalitário, e antes de desaparecer (antes de abandonar Portugal e seu nome de batismo) enxerta nesse sistema uma notícia falsa, apócrifa, que é ao mesmo tempo uma piada e um testamento.
2) Discutindo o filme O show de Truman em seu livro Lacrimae rerum, Slavoj Zizek fala dessas múltiplas camadas de falsidade que configuram o mundo dito real, dando, em seguida, um exemplo histórico bastante revelador: "O próprio Lenin não viveu, nos últimos dois anos de sua vida, num ambiente controlado muito similar, em que, como hoje sabemos, Stalin imprimia para ele uma edição especialmente preparada do Pravda, expurgada de todas as notícias sobre as disputas políticas sob a alegação de que o camarada Lenin deveria descansar, em vez de ser perturbado por provocações desnecessárias?" (Lacrimae rerum, tradução de Isa Tavares e Ricardo Gozzi [a tradução desse livro é um caso complicado, como pode ser visto aqui e aqui], Boitempo, 2009, p. 154).
3) Saramago, ao comentar a melancolia de Ricardo Reis diante das notícias impostas pelos jornais, escreve que "muito diferente da sua é a situação daquele ancião americano que todas as manhãs recebe um exemplar do New York Times, seu jornal favorito, o qual tem em tão alta estima e consideração o seu idoso leitor, com a bonita idade de noventa e sete primaveras, a precária saúde dele, o seu direito a um fim de vida tranquilo, que todas as manhãs lhe prepara essa edição de exemplar único, falsificada de uma ponta à outra, só com notícias agradáveis e artigos optimistas, para que o pobre velho não tenha de sofrer com os terrores do mundo e suas promessas de pior" (O ano da morte de Ricardo Reis, Companhia das Letras, 1988, p. 265). O pobre velho em questão, nos informa Saramago, é John D. Rockefeller, "o único habitante do mundo que dispõe de uma felicidade rigorosamente pessoal e intransmissível". 

sábado, 2 de novembro de 2013

Nota sobre os jornais

1) A utilização dos jornais na literatura: Pereira, em Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi, personagem cuja própria trajetória de conscientização e emancipação política vai em paralelo ao seu uso cada vez mais anárquico das possibilidades de sua atividade jornalística (primeiro com a tradução de autores franceses, depois, antes de desaparecer e abandonar sua identidade, a derradeira peça de sabotagem que deixa no prelo).
2) Em paralelo, na mesma época histórica e com materiais semelhantes, O ano da morte de Ricardo Reis, de Saramago, em que Ricardo Reis vai pouco a pouco retornando ao mundo português e ao mundo europeu (estava no exílio carioca...) a partir das notícias do jornal - notícias que acompanha um pouco no piloto automático, pela força do hábito, uma força do hábito que Saramago de alguma forma consegue encaixar na própria dinâmica da narrativa, costurando milimetricamente o cotidiano, o histórico e o poético. Ricardo Reis como uma espécie de detetive involuntário que vai reunindo e montando as peças meio que à revelia de sua própria consciência, trajetória e desejo (muito como Pereira nesse sentido). 
3) A ideia do detetive involuntário faz iluminar imediatamente a analogia com Poe, com seu detetive Auguste Dupin, que jamais pisou numa cena do crime - resolvia todos os casos dentro de seu quarto, lendo as notícias dos jornais (não tanto aquilo que estava escrito, mas aquilo que faltava, aquilo que era eloquente em sua ausência - uma leitura das lacunas que é também o mote para o romance de Sabato, Sobre heróis e tumbas, baseado numa nota do La Razón de 28 de junho de 1955).  

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Profetas bêbados

1) Da mesma forma que Ricardo Reis, na ficção de Saramago, reflete em seu corpo a decadência de Portugal - ele morre porque morre Portugal tal como lhe era familiar -, também em Afirma Pereira o corpo do protagonista espelha essa dissolução externa. Nada mais típico da época, essa progressiva consciência de que o mal de fora apodrece também a subjetividade (está em Freud, está em Benjamin). O coração de Pereira não vai bem, ele não consegue subir a ladeira que leva a sua casa, tem que pedir ao táxi que o leve (e deve pagar uma gorjeta extra para que isso aconteça). "Alô, doutor, disse Pereira, aqui é Pereira. Então, como vai?, perguntou o doutor Costa. Estou ofegante, respondeu Pereira, não consigo subir as escadas e acho que engordei uns quilos, e é só dar um passeio que meu coração fica aos sobressaltos" (p. 68).
2) Joseph Roth foi quem melhor personificou esse espelhamento somático da situação política europeia na década de 1930, condensando de forma incisiva algo que é só sugerido em Tabucchi e Saramago. Ilse Lazaroms fala dessa feição "profética" da obra e da figura de Roth, sua capacidade de captar com antecedência as repercussões do contexto histórico traumático - algo que, no caso de Roth, cobrou seu preço, transformando-o numa "profeta bêbado", já que "a queda da Europa em direção a outra guerra seguiu em paralelo ao próprio declínio de Roth em direção ao alcoolismo" (The Grace of Misery. Joseph Roth and the Politics of Exile, Leiden: Brill, 2013, p. xiv). Destino bastante semelhante ao de Fernando Pessoa, por sinal (alguns dizem que Pessoa morreu por conta de uma pancreatite aguda, causa de morte semelhante à de Roberto Bolaño).
3) E com relação a Pereira é preciso levar em consideração o aviso de Tabucchi na nota introdutória ao romance, frisando o passado judaico do nome Pereira - algo que se torna bastante sintomático quando a aventura de Pereira é posta ao lado das histórias de Benjamin ou Roth, por exemplo; e também quando se relembra que o destino de Pereira, no fim do romance, quando ele abandona seu nome e seu país, é justamente a França (ou pense em Gombrowicz chegando a Buenos Aires em 1939). Consta que Joseph Roth morreu em 27 de maio de 1939, depois de ter um colapso, em 23 de maio de 1939, ao receber a notícia do suicídio de Ernst Toller, dramaturgo, seu amigo, enforcado em um hotel de Nova York.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Pereira e a versão oficial

1) Pereira trabalha num jornal, o jornal Lisboa, cuidando da página cultural, depois de trinta anos trabalhando como repórter policial de um grande jornal, que não é nomeado. Há no romance esse permanente contato com o jornalístico, com a rotina da notícia, da pauta, da versão oficial - o diretor do jornal não poderia estar mais alinhado ao regime de Salazar e, ironicamente, o único meio do jornalista Pereira obter qualquer informação crítica sobre Portugal é a partir do garçom do Café Orquídea, que escuta, clandestinamente, estações de rádios estrangeiras.
2) Nesse e em alguns outros pontos, Afirma Pereira, de Tabucchi, pode ser aproximado de O ano da morte de Ricardo Reis, romance que Saramago publica em 1984 (que Tabucchi iria reescrever dez anos depois com Os três últimos dias de Fernando Pessoa, de 1994, mesmo com toda a má-vontade do português com o italiano, que de qualquer forma não servia de nada a esse último). Se é possível aproximar a desaparição de Reis e Pereira a partir da perspectiva política (suas "mortes" são respostas ao mergulho de Portugal no fascismo), fugindo da aproximação fácil entre Saramago e Tabucchi a partir somente de Pessoa, é possível também aproximá-los no contato com a rotina jornalística: no romance de Saramago, Salazar aparece nas ridículas palavras de exaltação dos jornais que Ricardo Reis lê no Hotel Bragança, quando faz hora para o jantar ou quando toma o pequeno almoço em seu quarto. Reis vai aos poucos se dando conta que o Portugal que encontra - depois de dezesseis anos de exílio brasileiro - é um Portugal esvaziado, feito da ridícula "versão oficial" (é o fantasma de Pessoa quem lhe dá a melhor definição: se veio para dormir, a terra é boa para isso (O ano da morte de Ricardo Reis, Companhia das Letras, 1988, p. 94), e mais:
Duas horas deram, duas e meia, lidos foram e tornados a ler estes dessangrados jornais de Lisboa, desde as notícias da primeira página, Eduardo VIII será o novo rei de Inglaterra, o ministro do Interior foi felicitado pelo historiador Costa Brochado, os lobos descem aos povoados, a ideia do Anschluss, que é, para quem não saiba, a ligação da Alemanha à Áustria, foi repudiada pela Frente Patriótica Austríaca, até aos anúncios, Pargil é o melhor elixir para a boca, amanhã estreia-se no Arcádia a famosa bailarina Marujita Fontan, veja os novos modelos de automóveis Studebaker, o President, o Dictator, se o anúncio do Freire Gravador era o universo, este é o resumo perfeito do mundo nos dias que vivemos, um automóvel chamado Ditador, claro sinal dos tempos e dos gostos. (p. 123-124 - lembrando que também Ensaio sobre a lucidez Saramago faz uso da imprensa, de forma bastante semelhante àquela de Afirma Pereira, em que o texto veiculado é uma "mensagem engarrafada" destinada a poucos).
3) Essa rotina jornalística era típica da época - basta lembrar, por exemplo, a publicação seriada de Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, em 1929, no Frankfurter Zeitung, jornal que abrigou tantos outros escritores, como Márai, Benjamin e Joseph Roth (e como a obra desses três é marcada por essa serialização, esse sentimento do imediato que vem da contribuição quase diária com os jornais da época). Há também essa curiosa e persistente proximidade entre o título dos periódicos e suas localizações geográficas, o que não deixa de ser irônico diante da intensa "desterritorialização" empreendida pelos autores citados, seja em obra, seja em vida - como está posto na pergunta que Pereira faz ao diretor do jornal Lisboa: "que raça podemos celebrar nós, os portugueses?".    

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Paranoico Pérez

1) Um elemento que costuma passar irrefletido no que diz respeito à breve história de Paranoico Pérez, aquele personagem de Bartleby e companhia cujas ideias são roubadas por José Saramago, é justamente o caráter delirante de suas ideias. Pensamos muito nos efeitos e esquecemos a causa - ou melhor, pensamos muito no fim da equação (a coincidência absurda entre as ideias de Pérez e os romances publicados por Saramago) e esquecemos o início, que diz respeito à possibilidade de surgimento de tais ideias. O horizonte, como em boa parte da produção de Vila-Matas, é blanchotiano: não se trata de perguntar o que é a literatura, questão banal, mas de perguntar como a literatura é possível (o ponto de partida foi Agamben, em um comentário sobre Blanchot).
2) A inventividade de Paranoico Pérez, que é a inventividade de Saramago, o delírio de Saramago, leva a questão a um grau de intensidade radical - e talvez o que Vila-Matas tenha tentado com Paranoico Pérez seja justamente uma clivagem nesse delírio, o estabelecimento de um centro alternativo para a órbita do delírio de Saramago. Nesse ponto, Saramago se aproxima de César Aira (naquilo que Chklóvski chama de semelhança do dissimilar): grande quantidade de livros publicados, esforço de apresentar um ponto de partida instigante em cada um deles - e eu quase escrevo "original", "ponto de partida original", e me dei conta de que também isso está em questão em ambos: Aira problematiza o original a partir do automatismo vanguardista duchampiano; Saramago problematiza o original a partir do desejo de fazer ficção a partir da História, dos fatos sólidos da tradição portuguesa.
3) Nesse sentido, é importante notar que Paranoico Pérez não possui a memória de Saramago - como acontece com a memória de Shakespeare, tema borgeano que Vila-Matas também vai utilizar. Porque a inventividade de Saramago, seu delírio, tem, sem dúvida, raízes na História, mas é fundamentalmente um procedimento de intervenção no presente. A Península Ibérica que se desprende e vira uma jangada; uma epidemia que cega toda a humanidade; um copista que muda a História com um "não"; a viagem de um elefante; a morte.   

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Sem ajuda divina


Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que crêem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes-postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refrescos, anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros, canetas, mochos, caixinhas-de-música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua colecção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do coleccionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.

Saramago. Todos os nomes. Companhia das Letras, 1997, p. 23-24.

É preciso sempre lembrar da inventividade de Saramago e da maestria com que sempre puxou os fios das histórias, como naquele truque de retirar de dentro de um punho fechado uma série de panos coloridos amarrados uns nos outros. Ao contrário do que acontece em Gonçalo Tavares, seu imensamente talentoso sucessor, por trás da amargura e da rigidez do mundo técnico há, eventualmente, em Saramago, pares de olhos que lacrimejam, gestos súbitos de reconhecimento, conversas amenas. É o mesmo buraco negro, porém, que assombra os dois escritores: Deus - sugando as forças dos homens e toda plausibilidade do mundo. Na obra de Saramago, Deus frequentemente aparece como um inimigo, um castigo imposto pelo homem sobre si próprio, a legítima sarna para se coçar. O trecho acima é tudo isso junto: é a soberba de Lúcifer; é a Torre de Babel (uma Torre de Babel que retorna, que não cansa de se reconstruir); é a memória de Funes; é a maleta de Duchamp, Vila-Matas e Benjamin (e também sua coleção de brinquedos antigos); os microgramas de Walser; os talismãs de Sebald, etc.