terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Adeus, Lenin

John D. Rockefeller, 1839-1937
1) Sabemos que Dupin, o detetive de Edgar Allan Poe, resolvia os crimes sem sair de casa, lendo, relendo, montando e remontando as notícias dos jornais. Um método de investigação que pressupõe o tecido social como caótico, e a imprensa como uma espécie de estação captadora e irradiadora de absurdos que não compreende totalmente. Pereira, o personagem de Antonio Tabucchi, percebe que essa é também a lógica do sistema totalitário, e antes de desaparecer (antes de abandonar Portugal e seu nome de batismo) enxerta nesse sistema uma notícia falsa, apócrifa, que é ao mesmo tempo uma piada e um testamento.
2) Discutindo o filme O show de Truman em seu livro Lacrimae rerum, Slavoj Zizek fala dessas múltiplas camadas de falsidade que configuram o mundo dito real, dando, em seguida, um exemplo histórico bastante revelador: "O próprio Lenin não viveu, nos últimos dois anos de sua vida, num ambiente controlado muito similar, em que, como hoje sabemos, Stalin imprimia para ele uma edição especialmente preparada do Pravda, expurgada de todas as notícias sobre as disputas políticas sob a alegação de que o camarada Lenin deveria descansar, em vez de ser perturbado por provocações desnecessárias?" (Lacrimae rerum, tradução de Isa Tavares e Ricardo Gozzi [a tradução desse livro é um caso complicado, como pode ser visto aqui e aqui], Boitempo, 2009, p. 154).
3) Saramago, ao comentar a melancolia de Ricardo Reis diante das notícias impostas pelos jornais, escreve que "muito diferente da sua é a situação daquele ancião americano que todas as manhãs recebe um exemplar do New York Times, seu jornal favorito, o qual tem em tão alta estima e consideração o seu idoso leitor, com a bonita idade de noventa e sete primaveras, a precária saúde dele, o seu direito a um fim de vida tranquilo, que todas as manhãs lhe prepara essa edição de exemplar único, falsificada de uma ponta à outra, só com notícias agradáveis e artigos optimistas, para que o pobre velho não tenha de sofrer com os terrores do mundo e suas promessas de pior" (O ano da morte de Ricardo Reis, Companhia das Letras, 1988, p. 265). O pobre velho em questão, nos informa Saramago, é John D. Rockefeller, "o único habitante do mundo que dispõe de uma felicidade rigorosamente pessoal e intransmissível". 

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