Rubens, Saturno, 1636 |
1) Na metáfora de Valéry do leão e do carneiro - e naquela de João do pecador prestes a ser vomitado pela divindade - é evidente a preponderância daquele que retém, daquele que absorve e que de certa forma mantém um corpo estranho em gestação. O gesto artístico se configura como a manipulação e a decisão sobre a destinação de um dejeto, que é precisamente esse corpo estranho.
2) No caso do artista da fome de Kafka, do conto de mesmo nome (publicado em 1922), se vê a elaboração desse paradigma da gestação e da criatividade como corpo estranho, uma elaboração que segue os moldes daquela já exposta em O processo (romance escrito entre 1914 e 1915 mas só publicado em 1925). Kafka coloca o próprio processo numa situação limite, numa situação insustentável, uma vez que o caluniador lança falso testemunho sobre si próprio - ou seja, Josef K. é simultaneamente aquele que instaura a infâmia e aquele que a sofre, retribuindo a falsa acusação com a morte de um acusado que jamais fez coisa alguma além de acusar a si próprio (Agamben disseca a questão em um dos ensaios de Nudità).
3) O artista da fome reencena a mesma lógica em outra chave: seu objetivo é "fazer arte" sem a interferência de qualquer corpo estranho, de qualquer dejeto ou interferência - nesse sentido, o gesto do artista da fome é análogo à fórmula de Bartleby, "prefiro não fazer", pois é autofágica, gerando uma cena artística cujo único horizonte é apontar para seu próprio esvaziamento (no caso do artista da fome, e aí está o gênio de Kafka, aponta para um esvaziamento material e literal - o próprio tema ou conteúdo da história espelha seu procedimento).
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