Jonas no ventre da baleia, escultura, IV d.C., Roma, Museo del Laterano |
1) Paul Valéry considerou também o outro lado - ou um lado suplementar - da questão da assimilação - não apenas aquele que diz respeito ao leão soberano, ativo, que digere o carneiro. No caso de Monsieur Teste, por exemplo, a parte ativa, ou ainda, a parte criativa, aquele que atua e é responsável pela exploração da linguagem, não é uma entidade que assimila, mas uma entidade que é assimilada, que vive no interior de outra entidade (mas não no estômago, como Jonas, e sim no crânio, como Atena).
2) Sabemos que Valéry estava irremediavelmente envolvido com a questão do pensamento como artefato maquínico e seu posicionamento físico no interior do crânio - tudo isso mediado por Descartes, cujo crânio Valéry teve em suas mãos. Em Monsieur Teste, Teste pode ser lido como cabeça - tête - e como texto - texte -, e as duas tentativas se complementam, fiéis ao mostrar o projeto de Valéry de uma ficção pura, autorreferente como uma máquina. A ficção de Valéry toma a cabeça como cenário (o pensamento, o cogito) e, nisto, é precursora de Beckett, que apresenta o cenário de Fim de partida como um crânio sem pele e sem carne, por onde passam fantasmas e figuras mortas (duas janelas como olhos e a porta como a boca escancarada).
3) Mas esse estado de puro pensamento de Monsieur Teste - o estado bruto de uma cabeça que se resolva e se materialize em texto - é inatingível sem um trabalho de mediação, ou seja, sem um trabalho de testemunho (por isso que Agamben fala de Teste também como testis, testemunha, no ensaio "L'io, l'occhio, la voce", em La potenza del pensiero). Valéry é esse mediador, que vive no interior dessa entidade e a partir dela configura seu texto. Procedimento semelhante está em A casa de Puchkin, de Andrei Bitov: o narrador se posiciona no interior de uma entidade que o assimila - Puchkin, e a casa de Puchkin como esse estômago ou esse crânio -, e sua narrativa, seu texto, é uma complexa elaboração em torno da questão de ser assimilado, de desejar ser assimilado para aí reconhecer sua voz.
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