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segunda-feira, 4 de julho de 2022

Metempsicose



1) Em seu romance Cauterio (Anagrama, 2022), Lucía Lijtmaer conta duas histórias paralelas, um capítulo para cada uma em alternância, até a condensação final, mágica (o final é uma atualização da metempsicose - a migração das almas através dos tempos - que Joyce coloca em questão em Ulisses e que, entre tantos, Ricardo Piglia também resgata em seu comentário de O último leitor). A estrutura de Cauterio faz pensar também em Palmeiras selvagens, de Faulkner (publicado em 1939 com o título escolhido pelo editor da Random House, que Faulkner não aprovou - preferia o título escolhido por ele, If I Forget Thee, Jerusalem).

2) Duas histórias de duas mulheres, uma delas na Espanha dos últimos anos, a outra em Londres e, em seguida, no "Novo Mundo", durante o século XVII (Deborah Moody, figura histórica, fundadora da cidade de Gravesend). Moody, contudo, é resgatada por Lijtmaer sobretudo por conta de seu envolvimento com a "bruxaria" em Salem, com o esforço de construção de uma comunidade de apoio mútuo entre mulheres (que envolvia também um conjunto de estratégias de leitura e interpretação emancipatória da Bíblia). Um detalhe revelador da trama: uma mulher é presa e condenada à morte pelo assassinato de um de seus filhos, que leva ao mar e o afoga; sua justificativa é a seguinte (p. 170):

"No podía seguir viviendo con la incertidumbre de que mis acciones pudieran representar tanto mi salvación como mi condena. Quería saber la verdad, y saberla cuanto antes." No le hizo falta decir mucho más. Margaret había ahogado a su hija para tener la certeza de que iba a ir al infierno.

3) Além de comentar de forma ficcional - enviesada e, por isso, cognitivamente estimulante - o clima peculiar de paranoia religiosa dos "pioneiros", a cena também evoca alguns juízos freudianos: em "Criminosos por sentimento de culpa" (de Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica, 1916), Freud fala que a culpa precede o crime - o sujeito mata para ser punido, porque deseja, desde antes do crime, a punição. Em Moisés e o monoteísmo, Freud fala da importância dos impulsos assassinos (e suas respectivas punições) para a formação das instituições sociais. Piglia condensa essas reflexões de Freud em uma frase de Nome falso: "Não foi por acaso que Freud escreveu: a distorção de um texto é semelhante a um assassinato: o difícil não é cometer o crime, mas esconder o rastro".


domingo, 26 de dezembro de 2021

A grande abóbora



1) A frase de abertura de Entre los indios, de César Aira (história que leva a data 4 de maio de 2012 no final), registra a aparição do demoníaco entre os índios: La cabeza de Pillán (el diablo) asomaba lentamente de la tierra, como un gran zapallo, apartando piedras y pasto con un rumor de derrumbe. O efeito em cascata das referências que nos levaram até este ponto: estamos em plena evocação daquilo que é soterrado e ressurge, dos "frutos terrestres" (o poema em prosa que André Gide escreve em 1895, publica em revista em 1896 e em livro em 1897, espécie de "contracanto" alegre ao De Profundis de Oscar Wilde, escrito na prisão em 1897).

2) O diabo surge da terra como un gran zapallo, como uma abóbora, um fruto a ser colhido, repartido, compartilhado e consumido - como na cena da gravura do século XIII, presente em uma Bíblia judaica conservada na Biblioteca Ambrosiana de Milão, citada por Agamben no primeiro capítulo de O aberto, mostrando o banquete depois do Juízo Final, quando será servido o Leviatã aos convidados, cada um com uma coroa na cabeça, cabeças de animais por baixo das coroas. A irrupção do demoníaco - como em Grünewald ou Bulgakóv - serve também de ensejo para a criação de uma fábula sobre a irrealidade da realidade, com ênfase na capacidade de um determinado indivíduo de perceber tanto o fantástico quanto a capacidade desse fantástico de passar ignorado pelo restante do mundo (é o inframince duchampiano que Aira faz circular na ficção). 

3) A aparição de Pillán, anjo caído, como abóbora, como "fruto da terra", faz parte daquela conexão alto/baixo, serpente/raio, de que fala Warburg no Ritual da serpente (a "aparição" deve necessariamente tomar as feições dos frutos da estação, daí a importância da conjunção astronômica e da crítica pós-colonial: onde e quando, exatamente, aparece esse demônio?). O dispositivo do demônio que sai da terra é também aquele que garante o inesperado da ficção: é impossível saber com certeza os desdobramentos desse "fruto", desse "dom" - como acontece com as pedras preciosas que vem das entranhas da terra em Leskov ("Alexandrita"), ou os corais das profundezas do oceano em Joseph Roth (O Leviatã, 1938).

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

De Kafka a Bulgakov

Ainda em seu livro sobre a renúncia de Bento XVI (O mistério do mal), Agamben comenta a partir de Paulo essa característica da Igreja que, no fundo, é uma característica da linguagem e do pensamento: Cristo e Anticristo convivem como substâncias no interior de uma mesma entidade, mal e bem, coesão e implosão. O evento messiânico é aquele que suspende essa tensão, resolvendo-a tanto historicamente quanto metafisicamente: de certa forma, o advento do Messias instaura a completude do arco hermenêutico e, assim, tudo fará sentido, tudo se explicará e a impureza da mescla entre bem e mal será eliminada.

A ficção de Kafka, por exemplo, é muitas vezes lida - por Benjamin, Blanchot, Agamben - como um reflexão sobre essa completude impossível do arco hermenêutico (o morto que nunca chega ao fim da escada; a porta que nunca se abre; o castelo que nunca é alcançado, etc). Um contemporâneo de Kafka (1883-1924), Mikhail Bulgakov (1891-1940), rompe essa incompletude não pela via messiânica redentora de Paulo, mas na ruptura da harmonia pelo viés contrário: Satanás e seu séquito estão em visita a Moscou, encontram poetas, editores, burocratas e todo tipo de pessoas tentando levar a vida em pleno regime comunista. Bulgákov levou quase dez anos para terminar O mestre e Margarida, ditando à mulher as últimas revisões semanas antes de morrer, em março de 1940.

A epígrafe de Bulgakov vem do Fausto de Goethe:

-...mas, quem é você, afinal? 
- Sou a parte da força que quer sempre o mal, mas sempre faz o bem

Não é disso que fala Agamben através de Paulo e dos Pais da Igreja? Goethe, como de hábito, funciona como uma espécie de centro de gravidade da tradição, absorvendo e reconfigurando em si camadas infindáveis de sentido: uma "força" guarda em si "mal" e "bem"; além disso, "querer" e "fazer" estão em íntima correlação, ainda que permaneçam em tensão (por isso Judas precisa trair; por isso Jó precisa sofrer, etc).


sábado, 26 de dezembro de 2015

Portas abertas, 4

1) Um tema forte em Sciascia: a relatividade das leis, dos sentimentos, das pessoas. Aquilo que é legítimo e sagrado para alguns será abjeto e criminoso para outros (a Inquisição, o fascismo). Na novela Majorana desapareceu, de 1975, Sciascia mais uma vez usa um caso real, documentado pela imprensa, para investigar esse tema da variabilidade das certezas humanas. Nunca se descobre a razão do desaparecimento de Majorana - que teria fabricado o próprio suicídio -, mas Sciascia especula que pode ter alguma relação com seu trabalho como físico e matemático e a precoce consciência que Majorana teria da possibilidade de construção da bomba atômica.
2) O percurso especulativo que Sciascia realiza para tentar explicar, sutilmente, o desaparecimento de Majorana segue os extremos típicos dessa relatividade: da consciência da destruição mais completa e atroz em direção ao silêncio mais radical; do estudo das consequências mais amplas em direção ao recolhimento mais íntimo. O físico Majorana pode ter se transformado em monge, recluso em um convento:
Empreendemos esta viagem, entramos nesta cidadela dos cartuxos, correndo atrás de um sutil, atormentador rastro de Ettore Majorana. Uma vez, em Palermo, estávamos falando do seu misterioso desaparecimento com Vittorio Nisticò, diretor do jornal L'ora. De repente, Nisticò lembrou-se claramente de uma coisa: muito jovem, nos anos da guerra ou do imediato pós-guerra, em suma, por volta de 1945, visitara em companhia de uma amigo um convento de cartuxos. e a certa altura da visita foram confidencialmente informados por um dos "irmãos" de que entre os "padres", no convento, havia um grande cientista. (Sciascia, Majorana desapareceu, trad. Mário Fondelli, Rocco, 1991, p. 74-75).
3) Majorana foi contemporâneo de Wittgenstein ou, mais precisamente, foi contemporâneo do segundo Wittgenstein, aquele que retorna à filosofia em fins da década de 1920 depois de alguns anos como professor de crianças no interior da Áustria. Majorana desaparece em 1938, ano em que Wittgenstein torna-se cidadão inglês por conta das leis raciais de Hitler. Como leitor, Wittgenstein às vezes se dividia entre Tolstói (o que nos leva diretamente à articulação entre santidade e mundanidade) e livros de detetives, pulp fiction como aquela de Norbert Davis (o que nos leva ao tipo de relato que interessava ao próprio Sciascia). Pois é o próprio Wittgenstein quem vai reunir a Inquisição, o fascismo e as novas formas de destruição em massa em um único comentário, reunido, junto com tantos outros, por seus alunos e seguidores em uma publicação póstuma:
Pense um pouco no que deve significar o fato de o governo de um país ser controlado por um bando de gangsters [Wittgenstein está falando de Hitler e da Alemanha]. A época das trevas está retornando. Não me surpreenderia, Drury, se você e eu tivéssemos de viver para assistir horrores como aqueles que consistem em queimar vivas pessoas consideradas feiticeiras. (Recollections of Wittgenstein, Org. R. Rhees, Oxford, 1984, p. 152 - citado em Christiane Chauviré, Wittgenstein, trad. Maria Luiza Borges, Zahar, 1991, p. 148).

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Pensador, ouvinte

1) E se o Pensador fosse, na verdade, um Ouvinte? Ou melhor, se fosse pensador na medida em que se instaura como ouvinte? No tratado Sobre a vida contemplativa, Fílon de Alexandria discorre sobre a relação entre silêncio e escuta e sugere a escolha (o cultivo) de uma postura fixa para o ritual da escuta - Foucault comenta esse tratado em uma conferência dada em 1982 nos Estados Unidos, "As técnicas de si": em Sobre a vida contemplativa, Fílon de Alexandria "descreve os banquetes do silêncio, que não têm nada a ver com esses banquetes de devassidão, em que há vinho, rapazes, orgias e diálogo. Aqui, é um professor que oferece um monólogo sobre a interpretação da Bíblia e dá indicações muito precisas sobre a maneira como convém escutar. Por exemplo, é preciso assumir sempre a mesma postura quando se escuta." (Dits et Écrits, vol. IV, texto nº 363). 
2) É significativo que o projeto inicial de Rodin tenha sido o de abarcar, nessa imagem, a partir de Dante, tanto o poeta quanto o pensador - pois na estátua temos também Dante diante do Inferno, ou ainda, Dante simultaneamente diante do Inferno e de seu poema. Se lhe chegam vozes vindas do Inferno, e se essas vozes configuram a espessura poética da Comédia, é precisamente aí que o pensador se instaura necessariamente como ouvinte, dois lados entre muitos na emergência contingente do poeta.
3) Pose e situação são análogas àquelas do Moisés do Antigo Testamento, em parte figurado por Michelangelo - o pensador-poeta-ouvinte sentado na pedra, a mesma pedra que feriu com seu cajado para dela extrair água, ouvinte em sua relação com o povo (essas vozes vindas de uma espécie de Inferno, o deserto), poeta em sua relação com Deus (é ele quem porta a palavra). Não é Moisés um dos principais modelos de Freud? Ao abrir seu Traumdeutung, sua interpretação dos sonhos, Freud não evocou justamente Virgílio na epígrafe, aquele mesmo Virgílio que serviu de guia a Dante? Freud resgata uma frase da Eneida, Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo, se não dobro poderes elevados, moverei o Inferno - ou seja, atento ao abismo do inconsciente, pensador-ouvinte (escuta-dor, diria Lacan? ou Joyce?), sempre na mesma postura, com essa "atenção flutuante" de que fala Freud em "Recomendações ao médico que pratica a psicanálise", de 1912, uma sorte de escuta contemplativa, aberta e porosa àquilo que ainda não se sabe, aberta àquilo que não se espera. 

sábado, 9 de agosto de 2014

Aqueronte

Visio Tnugdali, edição alemã, xilogravura de 1514
1) Quando fala do Aqueronte, no Livro dos seres imaginários, Borges sublinha o tema da "viagem vertical", da viagem às profundezas, o esquema vertical de revelação, de contato entre sagrado e profano, que ganhou sua realização máxima com a Comédia de Dante. A associação não é fortuita, pois o texto citado por Borges em seu verbete, A visão de Túndalo, do século XII, relato de uma visita aos Infernos, teria sido um dos textos-base para Dante - "Túndalo era um jovem cavaleiro irlandês, educado e valente", escreve Borges, que "adoeceu e durante três dias e três noites foi dado por morto. Quando voltou a si, contou que o anjo da guarda lhe mostrara as regiões ultraterrenas" (p. 151).
2) Em seu livro sobre Rabelais, Bakhtin também comenta a Visão de Túndalo, ressaltando sua importância não apenas para Dante e Rabelais, mas para todo o contexto literário da Idade Média - a Visio Tnugdali, de Tnugdalus, ou Tundulus, ou ainda Tondolus, e também Tundale, e na versão francesa, Les Visions du chevalier Tondal. Bakhtin comenta que a verticalidade inerente ao tema da visita às profundezas é muito mais do que um artifício retórico, é uma visão de mundo. Essa concepção espacial do mundo é ainda bastante ambivalente em Túndalo, argumenta Bakhtin, mas aquilo que em Dante é resolvido como hierarquia e rigidez, em Rabelais transforma-se em anarquia celebratória.
3) Bakhtin escreve que isso ocorre porque Rabelais é o primeiro a mesclar a verticalidade da concepção de mundo da Idade Média com a horizontalidade da cultura popular. Mais do que isso, Rabelais utiliza a verticalidade não como um indício de hierarquia, mas como uma via de troca e contato entre o alto e o baixo (assim como a morte já não assusta, passa a ser celebrada como parte da vida). "Na época de Rabelais", escreve Bakhtin, "o mundo hierárquico da Idade Média ruía. O modelo do mundo unilateralmente vertical, extratemporal, com o seu alto e o seu baixo absolutos, estava em plena desorganização. Um novo modelo começa a reformar-se, no qual o papel dominante passava às linhas horizontais, ao movimento para frente no espaço real e no tempo histórico" (A cultura popular ... O contexto de Rabelais. Trad. Y. F. Vieira, Hucitec, 2010, p. 353).    

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Os demônios de Loudun

1) Estamos, ao mesmo tempo, no despertar do século XVII - 1634, o ano do assassinato do padre Grandier, o "herói" do livro de Huxley - e no auge do século XX, 1952, o ano de publicação de Os demônios de Loudun. Huxley jamais perde de vista esse salto temporal, que ele encara não como um obstáculo, mas como um exercício - sempre questionando seu ponto de vista, sempre se perguntando será que não estou vendo o século XVII com as lentes do século XX? ou ainda como posso, ainda que indiretamente e de forma precária, resgatar esse olhar que o século XVII lançava a si próprio? (Lembrando que, para Auerbach, essa capacidade de "trocar as lentes" é o maior legado deixado por Vico).   
Em meio à cristandade da época medieval e do início da Idade Moderna, a situação dos feiticeiros e seus clientes era quase que exatamente igual à dos judeus sob o jugo de Hitler, dos capitalistas durante o governo de Stálin, dos comunistas e seus simpatizantes nos Estados Unidos (p. 151). No auge da caça às bruxas no século XVI, a vida social em determinadas regiões da Alemanha deve ter sido muito semelhante àquela sob o domínio nazista ou num país recentemente dominado pelos comunistas (p. 156). Aldous Huxley, Os demônios de Loudun. Trad. Sylvia Taborda. São Paulo: Globo, 2014.
2) Se, como dizia Barthes, a língua é fascista porque obriga a dizer, mais um elo se estabelece a partir desse exercício de Huxley de ligar o século XVII ao XX - a histeria das freiras se contagiou pelo discurso, do exorcista para a prioresa e desta para as outras: "a prioresa recontava essas aventuras noturnas às demais freiras; as histórias nada perdiam na narrativa e, dentro em pouco, duas outras jovens estavam também tendo visões de clérigos importunos e ouvindo uma voz que sussurrava as mais indelicadas propostas em seus ouvidos" (p. 133). Se Didi-Huberman fala de uma "invenção da histeria" - com Charcot estimulando as poses e as palavras das mulheres, investindo tanto na visualidade quanto na textualidade -, no livro de Huxley está em jogo uma "invenção da possessão".
3) O contexto francês e a forte carga sexual em Os demônios de Loudun (imaginária nos delírios das freiras, real na vida de Grandier, padre metido a Don Juan que era) me fizeram pensar em Rabelais e, consequentemente, em Bakhtin. Grandier é rabelaisiano, com seus excessos, sua sensualidade, sua eloquência: "Domingo após domingo", escreve Huxley, Grandier, "no púlpito da igreja de Saint-Pierre", "fazia suas famosas imitações de Jeremias e Ezequiel, de Demóstenes, de Savonarola, mesmo de Rabelais - pois ele era tão bom na zombaria quanto na justa indignação" (p. 26). Uma passagem de Bakhtin evoca essa liberdade de Grandier:
A tradição antiga permitia o riso e as brincadeiras licenciosas no interior da igreja na época da Páscoa. Do alto do púlpito, o padre permitia-se toda espécie de histórias e brincadeiras a fim de obrigar os paroquianos, após um longo jejum e uma longa abstinência, a rir com alegria e esse riso era um renascimento feliz. Essas brincadeiras de tipo carnavalesco referiam-se à vida material e corporal. A tradição do risus paschalis persistia ainda no século XVI, isto é, enquanto vivia Rabelais. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. Hucitec, 2010, p. 68.
A história de Grandier, portanto, é também a história da progressiva dissolução dessa tradição carnavalesca - "as tradições do realismo grotesco se empobrecem e se restringem mais ainda nos diálogos do século XVII", escreve Bakhtin mais adiante (p. 90), e vai piorando, numa "total degenerescência da franqueza da praça pública" (p. 91). O caso Grandier, tão bem esmiuçado por Huxley, com sua morte na fogueira, condensa as múltiplas estratégias postas em movimento para abafar e neutralizar esse modo "carnavalesco" (no sentido dado por Bakhtin) de conceber o mundo e a linguagem.        

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Fantástico de biblioteca

Hans Baldung, Bruxas, 1508, detalhe
1) O problema de Carlo Ginzburg com as bruxas e os inquisidores é um problema de arquivo e de leitura - daí a validade da lição de Auerbach de "ler lentamente" (e no caso das analogias feitas por Freud entre as bruxas e os paranoicos o problema também está posto da mesma forma, uma vez que tudo que resta das bruxas - ao menos daquelas bruxas medievais - é justamente o arquivo). Daí a produtividade da descoberta de Ginzburg, segundo ele próprio: nem a versão da bruxa, nem a versão do inquisidor, mas um processo progressivo de mescla desses registros, algo que se dá no tempo, no arquivo e no discurso. Para Freud, o caso Schreber funcionaria não apenas como uma ligação efetiva entre o discurso do paranoico e das bruxas (análogos na riqueza de detalhes e sobretudo na carga religiosa e sexual das imagens), mas também como a inauguração dessa cena hermenêutica feita de texto, discurso e arquivo (porque Freud faz questão de frisar que sua análise do caso Schreber foi pautada quase que exclusivamente pela leitura das Memórias).
2) Isso adquire importância na medida em que se pensa que os casos clínicos de Freud, que são e serão todos cenas de interpretação, de leitura, só existem hoje como arquivo, da mesma natureza daqueles casos de interrogatório investigados por Carlo Ginzburg. Talvez consciente dessa dinâmica temporal (como fica provado em vários trechos de sua obra, especialmente no que diz respeito às cartas enviadas a Fliess, por exemplo, ou nos vários prefácios para reedições, já no fim da vida), Freud intercalou a atividade clínica com a interpretação cultural, ou ainda, a interpretação distanciada do arquivo, forçosamente distanciada, dada a natureza textual desse acesso (assim como foi o caso com as Memórias de Schreber, também ocorreu com Dostoiévski, Leonardo da Vinci, Jensen ou Hoffmann).
3) Essa interpretação forçosamente distanciada do arquivo recebeu de Foucault, em texto sobre Flaubert, o nome de "fantástico de biblioteca" (mas ocupa posição central também na discussão sobre as "vidas infames", que são apreendidas de forma tênue na trama do arquivo). Foucault rastreia em Flaubert uma espécie de coleção de monstros e fantasmagorias resgatados dos interstícios do arquivo da história,  elementos que são transfigurados pela ficção e, a partir disso, ganham nova vida (uma vida que está entre o  imaginativo e o documentativo). "O quimérico", escreve Foucault, "nasce da superfície negra e branca dos signos impressos, do volume fechado e poeirento que se abre para um voo de palavras esquecidas" (Michel Foucault. "Posfácio a Flaubert (A Tentação de Santo Antão)" (1964). Estética: literatura e pintura, música e cinema, tradução de Inês Autran Dourado Barbosa, Forense Universitária, 2001, p. 79).

domingo, 29 de dezembro de 2013

Bruxas e paranoicos

Dürer, As quatro feiticeiras, 1497
1) Em suas cartas a Fliess, Freud frequentemente reforça um tema recorrente em sua obra: a ideia de que a psicanálise toca forças arcaicas com um instrumental moderno. Na carta de 17 de janeiro de 1897: "O que diria se eu lhe contasse que toda a minha novíssima pré-história da histeria já era conhecida e foi publicada mais de cem vezes, embora há muitos séculos? Você se lembra de que eu sempre disse que a teoria medieval da possessão, sustentada pelos tribunais eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria de um corpo estranho e da divisão da consciência? Mas por que será que o demônio que se apossava das pobrezinhas invariavelmente abusava delas sexualmente, e de maneira repugnante? Por que é que as confissões delas, sob tortura, são tão semelhantes às comunicações feitas por meus pacientes em tratamento psíquico?" (A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, 1887-1904. Edição de Jeffrey Masson, tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Imago, 1986, p. 225).
2) Na carta seguinte, de 24 de janeiro de 1897, Freud escreve: "A ideia de trazer as bruxas à cena está ganhando força. (...) A história do demônio, o vocabulário dos palavrões populares, as cantigas de roda e costumes de infância - tudo isso vai agora adquirindo significado para mim. (...) Estou começando a apreender uma ideia: é como se, nas perversões, das quais a histeria é o negativo, estivéssemos diante de um remanescente de um culto sexual primitivo (...) uma religião demoníaca primitiva, com ritos praticados em segredo, e compreendo a terapia rigorosa aplicada pelos juízes das bruxas. Os elos de ligação são abundantes. Outro afluente dessa corrente de ideias provém da consideração de que existe uma classe de pessoas que, até os dias de hoje, conta histórias como as das bruxas e as de meus pacientes; ninguém lhes dá crédito, mas a confiança que essas pessoas tem em suas histórias é inabalável. Como você deve ter adivinhado, refiro-me aos paranoicos" (p. 228).   
3) Freud apresenta portanto uma espécie de sobreposição da prática psicanalítica no contexto medieval das bruxas - e o paralelo indicaria, por exemplo, a possibilidade de pensar a transferência entre juiz e bruxa, ou ainda, a carga de "realidade" nas "confissões" das bruxas (assim como se pode pensar a carga de "realidade" nos relatos de abusos e violações nos pacientes de Freud). Esse é o nó central de parte das pesquisas iniciais de Carlo Ginzburg: em Os andarilhos do bem, por exemplo, de 1965, ele escreve que "a riqueza da documentação friulana permite reconstruir esse processo", ou seja, o processo progressivo de distorção dos relatos das "bruxas" em direção a uma demonologia oficial, desenvolvida pela Inquisição, "mostrando como um culto de características nitidamente populares, como o que tinha o seu centro nos andarilhos do bem, foi pouco a pouco se modificando sob a pressão dos inquisidores. Mas essa discrepância existente entre a imagem proposta pelos juízes nos interrogatórios e aquela oferecida pelos acusados permite alcançar um estrato de crenças genuinamente populares, depois deformado, anulado pela superposição do esquema culto" (tradução de Jônatas Batista Neto, Companhia das Letras, 1988, p. 8).

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O horror e o artifício

1) Baudelaire, em O pintor da vida moderna, de 1863, escreve que se analisarmos "tudo o que é natural", "todas as ações e desejos do puro homem natural", "nada encontraremos senão horror". E continua: "tudo quanto é belo e nobre é resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano hauriu no ventre da mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas, e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido incapaz de descobri-la" (Poesia e prosa, Trad. Ivo Barroso, Nova Aguilar, 2002, p. 874-875).
2) Típica construção de Baudelaire, cheia de contradições minuciosamente elaboradas, que funcionam poeticamente mesmo na prosa, contradições que exploram os níveis heterogêneos que se confrontam no interior de uma mesma ideia. Que tipo de artifício que gera o belo pode ser criado por um indivíduo que nasce no crime e no horror? Um belo que só pode nascer fictício, mascarado, paródico. A linguagem em Baudelaire é um rebuscado exercício de troça metafísica: que deuses e profetas são esses que podem ensinar o que quer que seja à "humanidade animalizada", essa mesma humanidade que os criou? Daí a valorização do satanismo e da demonologia por Baudelaire, signos de uma realização poética que toma o "horror" da condição humana como ponto de partida (assim como Oscar Wilde, Baudelaire era um admirador de Charles Maturin).
3) Um ano depois, em 1864, Dostoiévski publica Memórias do subsolo - obra-prima da natureza humana como horror: Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. É também por conta desse tipo de filiação subterrânea que Baudelaire encontrará os textos de Poe - que Baudelaire afirma ter reconhecido, eram pensamentos seus que ainda não haviam tomado corpo. Quando Cortázar escreveu que Poe e Baudelaire eram a mesma pessoa, talvez tivesse em mente não apenas a semelhança física, mas essa típica figura do horror que é o duplo, ou ainda, o abrupto estranhamento de si diante do espelho.   

sábado, 1 de junho de 2013

Errantes

1) Pinturas sobrenaturais estavam presentes na literatura inglesa desde o romance de Horace Walpole O castelo de Otranto, de 1764. Mas na década de 1880 ocorreu uma inundação de contos e romances nos quais retratos mágicos tinham papel de relevo. Oscar Wilde não se baseou em nenhuma dessas histórias exclusivamente, porém incorporou em O retrato de Dorian Gray uma verdadeira coletânea de temas associados com a ficção de retratos mágicos. O romance de Wilde é o coroamento de uma tradição que inclui trabalhos consagrados, como "Prophetic Pictures", de Nathaniel Hawthorne (1837); "O retrato oval", de Edgar Allan Poe (1842); e "O retrato", de Gógol (1835) (texto retirado de uma das notas da "edição anotada e sem censura" do livro de Oscar Wilde). 
2) Wilde foi, sem dúvida, fortemente influenciado pelo livro Melmoth the Wanderer (1820), escrito por seu tio-avô materno, Charles Maturin, no qual um retrato do malevolente Melmoth (que negociou com o demônio uma vida mais longa e uma aparência não modificada) fica escondido num armário e tem olhos que se movem. A pele de onagro (1831), de Balzac, também afetou Wilde - no romance, uma imagem de Cristo exerce sinistra influência e uma pele de asno se torna um registro objetivo e visível da degeneração de seu dono. Curiosamente, Balzac publica em 1835 seu Melmoth apaziguado, uma espécie de continuação para o romance de Maturin.
3) É curioso também que Hawthorne tenha publicado em 1828 um romance chamado Fanshawe, seu primeiro trabalho, e que o protagonista se chame justamente Dr. Melmoth - e "Fanshawe" é também o nome de um dos personagens da Trilogia de Nova York de Paul Auster. E Melmoth retorna também em Nabokov, em Lolita - "Melmoth" é o apelido que Humbert Humbert dá ao seu carro (claro, o errante, o desvirtuado). Até certo ponto, são histórias nas quais a vida é transmitida - geralmente com a ajuda do demônio - a um objeto, um talismã, que vai aos poucos absorvendo a carga vital do tempo que se encadeia (um quadro, um pedaço de pele, um carro). E também pode ser "Melmoth" o nome de Rousseau, errante em seus Devaneios do caminhante solitário (1782).
*
Uma analogia possível está na história de Robert Walser e na história da escritura de seus microgramas - as longas tiras de papel recobertas, ao longo de anos e anos, por uma escritura minúscula e enigmática. Ali estava seu enigma para o futuro, na escritura que se desenvolvia em segredo (ele se recolhe ao sanatório para não escrever e é justamente isso tudo que ele faz). Além da materialidade dramática dos pedaços de papel improvisados (guardanapos, jornais, embalagens), está também a finitude inexorável do lápis - ele vai acabar, e acabará na exata proporção da velocidade de escritura de Walser. Talvez no dia em que percebeu que já não era mais possível escrever com o lápis, porque sua materialidade já era inacessível, talvez tenha sido esse o dia que Walser escolheu para sua última caminhada na neve (Walser the Wanderer, Walser, o errante). 

domingo, 28 de abril de 2013

Valéry, marinheiro

1) Não é possível dizer que foi por ter segurado o crânio de Descartes que Paul Valéry pôde escrever Monsieur Teste - história e personagem já pertenciam ao imaginário de Valéry muito antes da literal emergência do crânio das águas, em 1910. Na primeira linha de seu ensaio sobre Valéry (1931, em homenagem ao seu sexagésimo aniversário), Walter Benjamin afirma que o poeta "outrora desejava ser um comandante naval", um marinheiro. "Elementos desse sonho juvenil ainda podem ser rastreados em sua poesia", escreve Benjamin. Não é curioso que esse poeta que desejava ser marinheiro pegue nas mãos o crânio de Descartes depois de devolvido pelas águas? Não é curioso que no mesmo livro em que Sebald fala do crânio de Thomas Browne e da presença deste e de Descartes no quadro de Rembrandt, ou seja, em Anéis de Saturno, também aí Sebald comente a vida de Joseph Conrad e seu juvenil desejo de também ele se tornar marinheiro? (não esqueça do encontro de Conrad com Valéry em 1922).
2) Para Benjamin, o marinheiro-Valéry permanece no poeta-Valéry não apenas pelas razões mais óbvias de temas e nomeações (O cemitério marinho), mas pela verticalidade do mergulho, pela pressão, pela condensação, pelo rigor (Valéry como o caçador dos detalhes - curioso que Georges Didi-Huberman fala de Warburg como "detetive do mar", "pêcheur de perles", pescador de pérolas; e mais: parte de sua inspiração vem de um ensaio de Hannah Arendt sobre Benjamin). E ainda para Benjamin o monsieur Teste é o exemplo perfeito para essa visão de Valéry: o puro pensamento, a pura cabeça, o puro raciocínio, a depuração da linguagem em um sistema de equivalências rigorosas (mas que, curiosamente, só ganham vida na associação livre da digressão).
3) E Benjamin, evidentemente, é preciso ao demarcar o exercício de Valéry como uma prospecção radical do legado de Descartes. Larvatus prodeo - mascarado também avança Valéry e Teste: no fragmento "Para um retrato de Monsieur Teste", Valéry escreve que ele é "o Demônio dos possíveis ordenados" (relembrando a vocação demoníaca do larvatus), que "entra e impressiona todos os presentes com sua 'simplicidade'", "alma oculta" de um "teatro mental" (Monsieur Teste, tradução de Cristina Murachco, Ática, 1997, p. 110-113). A consciência como teatro, a identidade como representação, multiplicação, tarefa sem fim. Já não foi dito que o cenário de Fim de partida, de Beckett, se assemelha muito com o interior de um crânio, com suas duas janelas altas servindo como olhos?

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Terceira lição de língua morta

Paul Richer, 1913
1) A linguagem é um tema fundamental para Coetzee - mas no sentido de uma operatividade e de uma consciência da linguagem como mediação, como problematização da vida. Está em seus ensaios (sempre citando no original, sempre cotejando as traduções), está em sua ficção e em suas intervenções (daí sua proximidade com Beckett, sua leitura técnica e acadêmica de Beckett na década de 1960). Na primeira metade do Diário de um ano ruim, há um capítulo que se chama "Do uso do inglês". Na segunda metade do mesmo livro, um capítulo nomeado "Da língua-mãe", no qual escreve: "às vezes tenho a inquietante sensação de que aquele que eu escuto não é aquele que eu chamo de eu; é mais como se alguma outra pessoa (mas quem?) estivesse sendo imitada, acompanhada, até arremedada. Larvatus prodeo". E mais adiante: "talvez todas as línguas sejam línguas estrangeiras, estranhas ao nosso ser animal". 
2) De novo o latim de Age of Iron - "larvatus prodeo", eu caminho mascarado, "título de uma obra breve de René Descartes, de 1618", afirma o tradutor José Rubens Siqueira em nota (curioso que a edição original não apresenta qualquer tipo de esclarecimento - Coetzee a pensou assim, uma interpolação inexplicada). Quanta História, densidade e erudição em duas palavras, como que jogadas no fim de um parágrafo. Porque essa máscara textual, essa citação, é já em si uma máscara, é um encobrimento já na ocasião de sua emergência - uma revelação que se dá coberta, escondida pela língua estrangeira, pela dificuldade de compreensão e leitura, que é justamente o que está em questão no comentário de Coetzee ("Da língua-mãe").
3) Larvata - "mascarada", do latim larva, larvae, máscara teatral, boneco, espantalho, espectro, demônio que se apodera das pessoas (Agamben, Infância e história). A interpolação de Coetzee em seu texto não só exemplifica a discussão (sou um estranho no uso da língua), como a presentifica, fazendo circular um fantasma, um espectro de anacronismo (o latim, a mensagem cifrada). O uso da língua como uma possessão - as línguas "estranhas ao nosso ser animal" -, como um boicote à natureza. A subversão parece já estar em Descartes, que transforma uma frase corriqueira (larvatus pro Deo, coberto, escondido diante de Deus) em uma frase de inquietude - larvatus prodeo, o eu dissimulado, capcioso (captio, pegar, armar, armadilha). Sutilezas profanatórias que eram muito apreciadas não apenas por Beckett, mas principalmente por James Joyce (os jesuítas, os rituais, as almas, os mortos, as línguas, as nações, Introibo ad altare Dei, etc).  

quarta-feira, 13 de março de 2013

Avenida Niévski, 3

1) Os corpos na avenida Niévski, indo e vindo. O corpo da linda moça que o pintor Piscariov deseja e que persegue. Os corpos no prostíbulo, "repugnante antro" de "depravação deplorável", demais para a sensibilidade do jovem Piscariov. Os corpos no sonho, dançando com cortesia e decoro: "ombros reluzentes das damas e os fraques pretos, os lustres, as lâmpadas, as gazes vaporosas que esvoaçavam, as fitas etéreas e o gordo contrabaixo que assomava por trás do parapeito do magnífico balcão, tudo era esplêndido para ele". Mas é o corpo de Piscariov que acorda, de repente, descobrindo a farsa - "pareceu-lhe que algum demônio esmigalhara o mundo inteiro em muitos pedaços diferentes e juntara todos esses pedaços sem nenhum sentido, sem nenhum tino".
2) No fim, o corpo morto de Piscariov no chão, a garganta aberta por sua própria navalha. "Ninguém chorou por ele", escreve Gógol, "ao lado do corpo sem vida, não se via nenhuma pessoa além da habitual figura do inspetor de polícia do quarteirão e da carranca indiferente do médico legista". A modernidade como cena do crime (que é o tema central de Kusniewicz, como visto aqui). Não é por acaso que os únicos que acompanham o cadáver sejam os representantes da medicina e da polícia - os responsáveis pelo manejo dos dispositivos de medição, análise e contenção dos corpos. 
3) Esse controle, que Gógol condensou na breve cena de um corpo morto na avenida Niévski, ganharia proporções imensas com o passar do tempo. Pouco mais de cem anos depois, em 1940, o assassinato de Issac Bábel coroaria essa progressão. Bábel, assim como Gógol, era um artista aberto ao mundo e aos fluxos heterogêneos de outras geografias. Aquilo que a Itália foi para Gógol, a França foi para Bábel - seus primeiros contos foram escritos em francês, língua que Bábel traduzia ao russo. Um de seus melhores contos é justamente sobre uma tradução de Guy de Maupassant (e o conto leva como título o nome do escritor francês). Do cadáver de Piscariov ao corpo fuzilado de Bábel, uma linha tortuosa que mostra o absurdo crescimento do controle e de seus procedimentos de nacionalização e purificação das artes.         

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Quando os cemitérios bocejam

Tumba de Dante, Ravena
1) Os dois melhores textos de O fazedor - um dos livros tardios de Jorge Luis Borges - são reflexões sobre a sobrevivência de dois escritores: Shakespeare ("everything and nothing") e Dante ("inferno, I, 32"). Os dois Poetas Supremos encontram Deus e são com Ele identificados - Shakespeare é Deus, sem deixar de ser todos os homens e mulheres que criou em suas peças; Dante é Deus, sem deixar de ser também o todo infinito que abarca as camadas de seu Além (e todas as almas, beatas e atormentadas, que criou).
2) Para o Borges do conto "everything and nothing", Shakespeare é uma espécie de partícula de Deus que desce à terra e vive inúmeras vidas: "ninguém foi tantos homens quanto aquele homem, que à semelhança do egípcio Proteu pôde esgotar todas as aparências do ser", escreve Borges. Está armada a analogia com a katabasis de Dante em sua Comédia: a descida às profundezas e a retomada dos céus, em uma dialética que encena a própria proliferação da identidade no tempo e no espaço (Shakespeare é, simultaneamente, um homem comum que não sabe grego e Deus; Dante é, simultaneamente, um míope apaixonado que molda a linguagem segundo seu delírio e Deus).   
3) A katabasis de Dante é a viagem às profundezas - mas o ritual que invoca as profundezas é a nekyia (como ensina Homero no Livro 11 da Odisseia). É a viagem dentro da viagem: com o sangue de um sacrifício, Ulisses chama a alma do profeta Tirésias de dentro de um buraco. James Joyce, no sexto capítulo de Ulysses, reconstrói a cena em um cemitério: cita Hamlet ao falar das "sombras das tumbas quando os cemitérios bocejam" e usa uma técnica que batizou de "incubismo", que é precisamente a nekyia, ou seja, a invocação dos espectros e seus pesadelos. "Entre as formas de meu sonho estás tu", diz Deus a Shakespeare no conto de Borges, e completa: "que como eu és muitos e ninguém".    

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Nota sobre os tigres e as pedras

A poética insistência de Borges com os tigres: na infância pratiquei com fervor a adoração do tigre, escreve ele em um dos fragmentos do livro O fazedor. O tigre é apenas mais um avatar de sua supersticiosa ética da leitura - uma leitura mística do mundo, que procura as relações obscuras e demoníacas entre os nomes, objetos, épocas e textos (demoníaco porque é da ordem do segredo e da profanação). Leitura mística como a do velho Wenzel, o joalheiro de Leskov, que lê nas comissuras secretas das pedras preciosas a revelação de um mundo suplementar, feito de analogias e assinaturas. Um homem que lê seu passado, seu presente e seu futuro nas manchas do dorso de um tigre (ou nas linhas arcaicas que marcam o casco de uma tartaruga; ou no arranjo que organiza centenas de milhares de livros no interior de uma biblioteca imaginária). E aquele homem que Leskov conheceu em Praga em 1884, aquele velho judeu que lia o tempo sem memória da natureza no brilho de uma pedra, aquele homem poderia muito bem ser uma criação da mente de Borges - um precursor que se ilumina assim, retrospectivamente, anacronicamente.   

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A geografia e o mal

1) Foi Borges (mais uma vez) quem recuperou, na História universal da infâmia, uma antiquíssima linha de força da história literária: as relações entre a geografia (a topografia, a paisagem) e o mal. Os personagens da História universal da infâmia caem diante da tentação não apenas de suas próprias naturezas, mas também do apelo insidioso do ambiente: a vastidão do mar, a vastidão do deserto. A vastidão é perniciosa, alimenta o ócio e a inquietude, que alimentam, por sua vez, o vício do mal.
2) É durante a peregrinação pelo deserto que os israelitas alcançam o clímax do pecado e, abraçando as subterrâneas sugestões do Demônio, constroem o Bezerro de Ouro; Jesus também vai ao deserto, para jejuar, e é lá que encontra o Demônio, à espreita, pleno de argumentos lógicos, carregado de linguagem impecável. Exatamente como o Juiz Holden do Meridiano Sangrento de Cormac McCarthy: não sofre a ação do tempo (ou do tempo como o conhecemos), vasto como a vastidão do deserto, que dá mostras de conhecer de forma fisiológica - como se o deserto fizesse parte de sua condição ontológica, participando, evidentemente, de sua implacável tendência ao mal (materializada no colecionismo de escalpos, línguas e orelhas).
3) Certamente não é por acaso que Carlos Wieder apareça justamente na reescritura que Bolaño faz da História universal da infâmia, ou seja, na Literatura nazi na América. Wieder, o aviador assassino de mulheres, tem apenas a vastidão do céu diante de si, o espaço sem fim do horizonte, e é ali que escreve seus poemas, feitos de fumaça. Literatura e guerra aérea, literatura e história universal da destruição, como nos apresentou Sebald. "O mal, uma forma aguda do mal, que só pode ser expressa pela literatura", escreve Bataille em A literatura e o mal, "possui para nós um valor soberano".

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Lukács e as abelhas

O velho Lukács tinha sua razão ao estranhar o jovem Lukács. Esse Lukács de vinte e nove anos, que está escrevendo a Teoria do romance, alcança com frequência um tom fortemente metafórico, por vezes quase delirante. Ele começa um parágrafo da seguinte forma:
A psicologia do heroi romanesco é o campo de ação do demoníaco.
Ainda não sabemos quem recebe essa influência demoníaca - se é o escritor, no momento de escritura do romance, se é o leitor comum, no momento em que se relaciona com o heroi, se é o crítico, diante da tarefa de destrinchar essa psicologia do heroi romancesco, ou se são todos esses, em camadas, e essa influência do demônio seria aquilo que chamamos de história da literatura. Lukács continua:
Os homens desejam meramente viver, e as estruturas, manter-se intactas; se os homens, por vezes acometidos pelo poder do demônio, não excedessem a si mesmos de modo infundado e injustificável e não revogassem todos os fundamentos psicológicos e sociológicos de sua existência, o distanciamento e a ausência do deus efetivo emprestaria primazia absoluta à indolência e à autossuficiência dessa vida que apodrece em siêncio.
O demoníaco é uma constante na história da literatura ocidental - desde as fundações bíblicas até Baudelaire, Dostoiévski, Herman Melville (Moby Dick é um tratado de metafísica, escreve Borges, a baleia sendo, simultaneamente, o mal absoluto e a redenção), Cormac McCarthy (segundo Harold Bloom, o Juiz Holden, de Blood Meridian, é uma figura do demoníaco). E Lukács, diante disso, encerra seu parágrafo:
Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus como falta de substância, como mistura irracional de densidade e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela como argila seca ao primeiro contato com quem está possuído pelo demônio, e uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar que ali não há passagem.
Mistura irracional de densidade e permeabilidade?
A alma esfarelada como argila seca?
Não há dúvida de que o jovem Lukács procura se aproximar, a partir de seu próprio texto, da concatenação de suas ideias e de sua sintaxe violenta - a sintaxe do jovem é uma espécie de apneia -, do poder demoníaco que tenta descrever. Em sua denúncia da insensatez inerente à alma do heroi romanesco há qualquer coisa da sabedoria de Salomão - que sente pena do homem que toma paredes por "atraentes paisagens". E sua imagem das abelhas contra a vidraça - o homem que não atina que não há passagem - ecoa na frase de Baudrillard: A própria impostura e a intoxicação não fazem parte do virtual? Não sabemos. Sempre a velha história da mosca que se choca contra a evidência incompreensível do vidro.

Georg Lukács. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 92.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Os subterrâneos

1) André Gide foi à União Soviética em 1934, para participar do I Congresso dos Escritores Socialistas, que aconteceu em Moscou. Foi o evento que marcou o início da queda de Isaac Babel - que já vinha sendo criticado nos círculos formalistas por sua falta de comprometimento. Babel, quando tomou a palavra no Congresso, disse que estava se tornando "o mestre de um novo gênero literário: o silêncio". Será que Gide encontrou Babel pelos corredores do evento? Será que prestou atenção àquele homem que simbolizava tão bem a transformação da esperança em terror? Babel falava daquele "silêncio das sereias" que falava Kafka - será que Gide chegou a perceber, mesmo que rapidamente, a enunciação dessa poética de Babel?
2) O canto das sereias penetrava tudo, escreve Kafka. Ulisses porém não pensou nisso. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos. Ainda que a "alegria inocente" não seja muito condizente com seu temperamento, imagino que Babel poderia encontrar-se em parte das palavras de Kafka - "ir de encontro"; "pequenos recursos" -, e encontrar-se também nesse estupor diante da aparição de formas subterrâneas, estranhas a tudo que já se imaginou mas, ao mesmo tempo, familiares.
3) Durante o Congresso, Gide certamente entrou em contato com aquilo que acontecia de novo na cena literária soviética - especialmente no que dizia respeito ao interminável trabalho de Mikhail Bulgákov, O Mestre e Margarida. Não escapou a Gide - mesmo que o pensamento completo tenha vindo só anos depois - a inquietante coincidência de tantos trabalhos lidando com a emergência do demoníaco do tecido das cidades e nas vidas dos homens: Mephisto, de Klaus Mann; Confissão de um assassino, de Joseph Roth; O cavaleiro sueco, de Leo Perutz - todos da década de 1930 (e, mais tarde, Satã em Gorai, de Isaac Bashevis Singer).

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Não há outro conselho

1) No sétimo capítulo de Mimesis, Auerbach discute um texto (uma "peça natalina") de fins do século XII: Mystère d'Adam, que se ocupa de uma retomada das primeiras imagens do Gênesis. Eva, seguindo o sussurro que o Demônio-Serpente deposita em seus ouvidos, arranca a maçã da Árvore e a come - um gesto impossível que surpreende Adão, desmontando toda sua argumentação e levando-o, finalmente, ao ato.
2) Já em desgraça, arrependido, Adão inicia uma espécie de solilóquio cheio de raiva e rancor - e o trecho selecionado por Auerbach se encerra com uma frase que poderia ser de Sófocles: Não há outro conselho, senão morrer. Qual a natureza dessa onda mnêmica que leva para lá e para cá, no tempo e na história, essa imagem da angústia? Auerbach sublinha outra frase, o momento no qual Adão exclama: Ninguém me ajudará, a não ser o filho que de Maria sairá. Adão conhece de antemão toda história universal cristã, porque, no Paraíso, compartilha com Deus o absoluto conhecimento do Tempo. Em Deus, escreve Auerbach, não há diferenças temporais: tudo é, para Ele, presente e simultâneo, de tal forma que Ele, como certa vez o exprimiu Agostinho, não tem o poder da previsão, não sabe com antecipação, mas simplesmente sabe.
3) Estamos diante da construção figural da História Universal, argumenta Auerbach. O todo é pensado concomitantemente e, na perspectiva de Mimesis, os tempos da ficção estão densamente sobrepostos em figuras - cristais de tempo, para dizê-lo com Warburg -, como um aleph que se replica em cada texto, dando acesso simultâneo a si e ao Universo.