Visio Tnugdali, edição alemã, xilogravura de 1514 |
1) Quando fala do Aqueronte, no Livro dos seres imaginários, Borges sublinha o tema da "viagem vertical", da viagem às profundezas, o esquema vertical de revelação, de contato entre sagrado e profano, que ganhou sua realização máxima com a Comédia de Dante. A associação não é fortuita, pois o texto citado por Borges em seu verbete, A visão de Túndalo, do século XII, relato de uma visita aos Infernos, teria sido um dos textos-base para Dante - "Túndalo era um jovem cavaleiro irlandês, educado e valente", escreve Borges, que "adoeceu e durante três dias e três noites foi dado por morto. Quando voltou a si, contou que o anjo da guarda lhe mostrara as regiões ultraterrenas" (p. 151).
2) Em seu livro sobre Rabelais, Bakhtin também comenta a Visão de Túndalo, ressaltando sua importância não apenas para Dante e Rabelais, mas para todo o contexto literário da Idade Média - a Visio Tnugdali, de Tnugdalus, ou Tundulus, ou ainda Tondolus, e também Tundale, e na versão francesa, Les Visions du chevalier Tondal. Bakhtin comenta que a verticalidade inerente ao tema da visita às profundezas é muito mais do que um artifício retórico, é uma visão de mundo. Essa concepção espacial do mundo é ainda bastante ambivalente em Túndalo, argumenta Bakhtin, mas aquilo que em Dante é resolvido como hierarquia e rigidez, em Rabelais transforma-se em anarquia celebratória.
3) Bakhtin escreve que isso ocorre porque Rabelais é o primeiro a mesclar a verticalidade da concepção de mundo da Idade Média com a horizontalidade da cultura popular. Mais do que isso, Rabelais utiliza a verticalidade não como um indício de hierarquia, mas como uma via de troca e contato entre o alto e o baixo (assim como a morte já não assusta, passa a ser celebrada como parte da vida). "Na época de Rabelais", escreve Bakhtin, "o mundo hierárquico da Idade Média ruía. O modelo do mundo unilateralmente vertical, extratemporal, com o seu alto e o seu baixo absolutos, estava em plena desorganização. Um novo modelo começa a reformar-se, no qual o papel dominante passava às linhas horizontais, ao movimento para frente no espaço real e no tempo histórico" (A cultura popular ... O contexto de Rabelais. Trad. Y. F. Vieira, Hucitec, 2010, p. 353).
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