1) O Livro dos seres imaginários de Borges é um livro sobre livros, um livro que se refrata em múltiplas posições simultâneas, descontínuo - elementos heterogêneos postos em contato (Lewis, Homero, Hsao H'sie, Confúcio, Martínez Estrada) como num experimento que não chega a lugar algum, que gira em falso (algo que Borges fez também em suas antologias).
2) Nesse Livro, Borges faz do contágio tanto uma imagem, uma ilustração (naquilo que diz respeito à combinação de elementos que torna possíveis os seres imaginários), quanto um procedimento literário, um método de questionamento da tradição. Em breves frases, Borges tenta dar conta do processo que leva de uma imagem arcaica a uma imagem mais recente de um mesmo mito ou ser - "poucos mitos serão tão difundidos quanto o da fênix", escreve ele, por exemplo, falando de Heródoto, Tácito, Plínio, Ovídio, Dante, Shakespeare, Pellicer, Quevedo e Milton. Mas esse é um contágio superficial, referencial, que é, no entanto, aprofundado em certos verbetes, e aprofundado a partir dos próprios elementos imaginários postos em ação: a Hidra teve seu tempo e seu terror, mas sobrevive nas "flechas que Hércules molhou" em seu fel (p. 120); um caranguejo, amigo da Hidra, é esmagado por Hércules, mas Juno o faz subir aos céus, "onde hoje é a constelação e o signo de Câncer" (p. 121); a visão de Ezequiel ("quatro animais ou anjos") será decomposta nos emblemas dos quatro evangelistas (p. 114-115); o mito da salamandra "o desse animal esquecido", a pyrausta, "que vive dentro do fogo das fundições de Chipre", relatado no livro XI da História de Plínio.
3) O contágio é também uma transformação consciente, um deliberado enfrentamento com a tradição - como no verbete sobre os "monóculos", aqueles que possuem apenas um olho. "Num soneto redigido no início do século XVII", escreve Borges, "Góngora se referiu ao 'monóculo galanteador da Galatéia'", referindo-se a Polifemo e nesse ponto Borges cita os versos de Góngora. "Esses versos", comenta Borges, "exageram e debilitam outros, do livro III da Eneida (louvados por Quintiliano), que por sua vez exageram e debilitam outros do livro IX da Odisséia. Esse declínio literário corresponde a um declínio da fé poética; Virgílio quer impressionar com seu Polifemo, mas quase não acredita nele, e Góngora só acredita no que é verbal ou nos artifícios verbais" (p. 149-150).
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Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, O livro dos seres imaginários. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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