Van Gogh, Ressurreição de Lázaro, 1889-90 |
1) Para a imaginação medieval, atingir os olhos equivale a atingir a alma. Como no caso da visão de Túndalo, comentada por Borges no Livro dos seres imaginários, sua visita aos Infernos motivou sua transformação e seu desejo de registrar tal transformação. Dois eventos bíblicos vão aí condensados - e serão intensamente comentados, glosados e retrabalhados: a queda de Paulo no caminho de Damasco, cegado pelo brilho divino, e a volta de Lázaro do mundo dos mortos, ressuscitado por Jesus (João, 11; 1-46 - perceba como Jesus, deliberadamente, demora para visitar Lázaro, esperando sua morte para que possa realizar o milagre).
2) A relação entre alma e visão é bastante evidente no trovadorismo galego-português (influenciado pelo trovadorismo da Provença, que teria sido a região na qual Lázaro se estabeleceu depois da ressurreição). Aquele que não vê, não pode amar; a cegueira é um obstáculo para o amor, reza o Tratado do amor cortês. Porém, em certos casos, é precisamente essa distância, essa visão interrompida, que garante a manutenção do amor (um motivo que reverbera na Beatriz de Dante, na Dulcinéia de Cervantes).
A que tenh'eu por lume d'estes olhos meuse por que choran sempr', amostrade-mh-a, Deusse non dade-mh-a morte (Bernal de Bonaval, p. 11).Quando parti de onde parti,logo privei aquestes meusolhos de veer, e, par Deus,quanto ben avia perdí;ca meu ben tod'era en veer,e mays vos ar quero dizer:embora veja, nunca outra vez vi (João Garcia de Guilhade, p. 27, adaptado).
Fremosos cantares: antologia da lírica medieval galego-portuguesa. Lênia Mongelli (org.). WMF Martins Fontes, 2009.
3) O comentário de Mongelli segue assim: "A relação analógica entre mundo profano e mundo sagrado assoma quando a voz lírica reconhece a perda do bem como diretamente proporcional à perda do lume / luz, imagem religiosa de forte ascendência bíblica, comum, por exemplo, em textos hagiográficos - vale a pena lembrar o que diz Isidoro de Sevilha nas Etimologias: 'entre todos os sentidos, o da vista é o que está mais próximo da alma; nos olhos se evidencia a turvação ou a alegria do espírito. Por isso são denominados também lumina, porque deles emana a luz (lumen)" (p. 29). A ironia da cegueira de Borges certamente não passou desapercebida pelo próprio.
Muito interessante, Falcão. No entanto, fiquei curioso sobre a relação entre amor/visão/viagem que pode ser adquirida da lenda de Orfeu. Ao contrário da "Comédia" de Dante, aqui a figura da amada não é guia, mas objetivo de uma viagem vertical, cujo retorno depende do viajante não pôr os olhos na sua amada no caminho de volta. Paradoxalmente, ao contrário da função do olhar no amor cortês, foi a visão de Eurídice por Orfeu o que lhe fez perder definitivamente o seu amor. Curiosa essa comparação, não?
ResponderExcluirÉ verdade, George, muito boa a lembrança de Orfeu, os elementos estão todos aí, mas invertidos. Obrigado pela visita e pelo comentário.
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