sexta-feira, 31 de maio de 2019

Gide, Joyce

Ainda a célebre frase de Stephen Dedalus: History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake. A frase está no começo do romance, no segundo capítulo - no esquema dos episódios, o segundo capítulo está dedicado ao Nestor de Homero (a quem Telêmaco busca para saber mais de seu pai), a cena se passa na Escola, a cor é o Castanho, o símbolo é o Cavalo, a técnica é o Catecismo e a arte trabalhada é justamente a História. Dedalus é professor, e a primeira metade do capítulo se passa na sala de aula, ele diante dos alunos (a segunda metade no escritório do supervisor, diante do qual Dedalus emite a frase). A sala de aula é a clausura que mantém e torna possível o pesadelo. 
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Esse pesadelo é compartilhado por outro jovem envolvido com o ensino da história, o Michel de André Gide, protagonista de O imoralista - lançado em 1902, dois anos antes do ano no qual se passa Ulisses. Michel é um retrato feito por Gide do processo do desencanto: sua tuberculose é uma espécie de manifestação externa de algo profundamente arraigado - sua fixação doentia em tudo que é antigo, passado, morto (nesse sentido, uma espécie de aplicação ficcional daquilo que Nietzsche critica na Segunda intempestiva).
Gide no Congo
Assim que Michel começa a tratar a tuberculose, perde o interesse obsessivo com o passado e suas formas mortas. Com vinte anos Michel já é fluente em grego, latim, árabe, persa, hebraico e, fundamental, francês - a língua do Império imaterial que Michel muitas vezes representa, em suas viagens pelo "Oriente" e pela "África" e em sua relação com os "árabes". Glosando de modo um pouco selvagem o comentário que Edward Said faz do livro de Gide em Cultura e imperialismo, é possível dizer que, em O imoralista, parte dessa história-pesadelo da qual se quer acordar certamente é o colonialismo, seus tiques, gestos e pontos-cegos.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Dois sonhos e um inconsciente

"Um pesadelo me persegue desde a infância: tenho, diante dos olhos, um texto que não posso ler, ou do qual apenas consigo decifrar uma ínfima parte. Eu finjo que o leio, sei que invento; de repente, o texto se embaralha totalmente e não posso ler mais nada, nem mesmo inventar, minha garganta se fecha e desperto" (Michel Foucault, "Sobre as maneiras de escrever a história", entrevista, junho de 1967, Ditos e escritos, vol. II, trad. Elisa Monteiro, Forense, 2008, p. 72).
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"Puig disse algo maravilhoso, que o inconsciente tem a estrutura de um folhetim. E tem razão. Porque o inconsciente é o mundo das paixões arrebatadoras, dos desejos que não tem registro nem sanção social. Sempre se deseja o que não convém" (Piglia, Las tres vanguardias, Eterna Cadencia, 2016, p. 139-140).
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"O verão declinava, e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me adiantou considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que ele era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade" (Borges, "O livro de areia", O livro de areia, trad. Davi Arrigucci Jr, Cia das Letras, 2009, p. 104-105).

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Vico, Joyce, Foucault

1) A relação entre Joyce e a história, ou entre Dedalus e a história como pesadelo (uma ideia apresentada no capítulo dedicado à História no Ulisses e que se passa dentro de uma sala de aula), deve levar em consideração o contato entre Joyce e Vico.  Uma relação que leva em consideração um desejo de pensar as continuidades tensas dentro da história e não uma teleologia compulsória, que organiza de forma naturalizada o devir histórico.
2) A ficção de Joyce - confusa, caótica, desafiante - busca dar conta da irracionalidade que segue reverberando em toda racionalidade: os resíduos do passado ainda vivos e operantes no presente não devem ser eliminados, como quer o positivismo (ou a história dos vencedores tal como a apresenta Walter Benjamin, por exemplo), mas apresentados em toda sua potência e impureza (Homero na Dublin de 1904).
3) Para usar a terminologia do Foucault de A ordem do discurso (1970-71), é possível dizer que Vico não estava no verdadeiro do seu contexto imediato, sua obra não se inseria no verdadeiro instaurado pelo Iluminismo, pois Vico pregava uma continuidade, um isomorfismo entre irracional e racional, passado e presente (um pouco como Lévi-Strauss fará com o par "selvagem" x "civilizado" em O pensamento selvagem, de 1962), enquanto as Luzes buscavam a ruptura, a cisão, o make it new radical. 

terça-feira, 14 de maio de 2019

História-pesadelo

1) O comentário de Jameson, que articula Tolstói, Stendhal e Joyce em torno da questão do romance histórico (e como a recusa da "razão histórica" e de suas lições é o primeiro movimento em direção a uma definição da impossibilidade do romance histórico no modernismo do início do século XX), passa por uma retomada do Ulisses sem, contudo, fazer referência à célebre frase de Stephen Dedalus: History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake (o "fardo da História", como diz Hayden White, seguindo Nietzsche).
2) A frase está no começo do romance, no segundo capítulo - no esquema dos episódios, o segundo capítulo está dedicado ao Nestor de Homero (a quem Telêmaco busca para saber mais de seu pai), a cena se passa na Escola, a cor é o Castanho, o símbolo é o Cavalo, a técnica é o Catecismo e a arte trabalhada é justamente a História. Dedalus é professor, e a primeira metade do capítulo se passa na sala de aula, ele diante dos alunos (a segunda metade no escritório do supervisor, diante do qual Dedalus emite a frase). 
3) No segundo capítulo do romance de Joyce a História como pesadelo pode ter, ao menos, duas roupagens bem específicas e circunscritas - antes de ser uma reivindicação mais ampla acerca da relação entre o modernismo e a historiografia, por exemplo. Em primeiro lugar, pode ser o próprio cotidiano da sala de aula, Dedalus diante de alunos maldosos e desinteressados, um "pesadelo" que afasta o professor da vida que realmente importa, que está além, do lado de fora; em segundo lugar, pode ser a concepção de história do supervisor, Garrett Deasy, a quem Dedalus é obrigado a escutar porque é quem o paga (algo que de fato acontece no capítulo e que motiva, de início, o contato entre os dois personagens). O "pesadelo" pode ser também a visão tacanha e limitada da história que demonstra o supervisor, que mostra eloquentemente seu antissemitismo e sua mentalidade pró-imperalista (a favor da Inglaterra).  

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Ulisses não-histórico

"E quando somos perguntados por que Ulisses, ambientado em uma data bastante precisa do passado, por que Ulisses, em virtude de sua distância temporal, não deve ser considerado um romance histórico tão plenamente quanto Guerra e paz, a resposta é a ausência de um grande evento histórico que faça a mediação entre seus tempos individuais simultâneos e o tempo histórico do mundo público. Estamos em uma cidade sob ocupação colonial (chegamos a ver a carruagem do governador-geral inglês passar diante de nossos olhos), mas o único candidato a evento histórico público, a ação guerrilheira dos Invencíveis [grupo nacionalista irlandês] cerca de vinte anos antes, é mediado tão-somente por mexericos e pela memória coletiva.

O romance histórico não deve mostrar nem existências individuais nem acontecimentos históricos, mas a interseção de ambos: o evento precisa trespassar e transfixar de um só golpe o tempo existencial dos indivíduos e seus destinos. A esse respeito, gosto de citar o grande poema de Brecht: 'Ó vicissitudes do tempo, vós, esperança do povo!' etc.

O romance histórico, portanto, não será a descrição dos costumes e valores de um povo em um determinado momento de sua história; não será a representação de eventos históricos grandiosos; tampouco será a história das vidas de indivíduos comuns em situações de crises extremas; e seguramente não será a história privada das grandes figuras históricas (que Tolstói discutia com veemência e contra o que argumentava com muita propriedade).

A arte do romance histórico não consiste na vívida representação de nenhum desses aspectos em um ou em outro plano, mas antes na habilidade e engenhosidade com que a sua interseção é configurada e exprimida; e isso não é uma técnica nem uma forma, mas uma invenção singular, que precisa ser produzida de modo novo e inesperado em cada caso e que no mais das vezes não é passível de ser repetida.

O arquétipo dessa interseção ainda é, sem dúvida, A cartuxa de Parma, em que o ingênuo e entusiasmado Fabrice parte para juntar-se a Napoleão e chega a Waterloo a tempo de presenciar um quadro de caos alarmante e inexplicável, vindo a compreender só mais tarde que provavelmente vislumbrara o próprio imperador no momento de sua debandada. Stendhal tinha uma razoável experiência histórica pessoal, tendo presenciado na Rússia as mesmas batalhas que Tolstói representaria cerca de 25 anos mais tarde. No entanto, o que ele pretendeu mostrar em A cartuxa não foi uma batalha, mas a impossibilidade de representar tal evento e mesmo a insensatez de lhe atribuir um nome genérico ou abstrato como 'batalha'."


(Fredric Jameson, O romance histórico ainda é possível?, conferência apresentada no simpósio "Reconsiderando o Romance Histórico", realizado na Universidade da Califórnia em 26 de maio de 2004, disponível aqui)

domingo, 5 de maio de 2019

Uma frase de Borges

1) Lendo Los casos del comisario Croce, um dos últimos livros preparados por Piglia antes de morrer (ele avisa na nota ao leitor que encerra o volume: "escrevi este livro usando um programa de escrita pelo olhar, o Tobii, uma espécie de máquina telepata"), relembro a alegria de conhecer o comissário Croce ainda em Blanco nocturno, em 2010. O modo como Los casos é construído já dá um amplo primeiro passo no prazer de lê-lo: os casos são razoavelmente independentes, saltando no tempo e no espaço, com breves mergulhos na biografia e no método de trabalho de Croce (com uma série de pistas que levam a outros momentos da obra de Piglia, também).
2) No caso-capítulo El tigre, Croce (narrado por Emilio Renzi, que aqui toma dianteira do relato) comenta as "relações familiares", comenta como frequentemente surpreendem por sua falta de lógica: "as relações de parentesco são as mais difíceis de classificar e de prever, tudo pode acontecer, suicídios por felicidade, assassinatos por amor, incêndios provocados por compaixão, assim é a vida, concluiu metafísico Croce" (Los casos, Anagrama, 2018, p. 144).
3) A ideia do "suicídio por felicidade" me pareceu familiar, talvez uma citação, sensação que se intensificou quando duas páginas depois Piglia/Renzi/Croce cita Kafka sem dar a fonte: "Já amanhece, há esperança, mas não para nós. Foi Croce que disse, ou o filho que velava o pai. Não importa, dá no mesmo, inclusive pode ter sido eu a terminar a história com essa frase" (p. 146). A frase anterior, de fato uma citação, vem do prólogo que Borges escreve para A invenção de Morel, de Bioy Casares. Borges elogia o rigor de "romance de peripécias" tal como praticado por Bioy; para isso, aponta os limites do "romance psicológico", "informe", dos russos e seus discípulos, nos quais nada é impossível: "suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade..." (Borges, "Prólogo" In: Bioy Casares, A invenção de Morel, trad. Samuel Titan Jr, Cosac, 2006, p. 8).