sexta-feira, 10 de maio de 2019

Ulisses não-histórico

"E quando somos perguntados por que Ulisses, ambientado em uma data bastante precisa do passado, por que Ulisses, em virtude de sua distância temporal, não deve ser considerado um romance histórico tão plenamente quanto Guerra e paz, a resposta é a ausência de um grande evento histórico que faça a mediação entre seus tempos individuais simultâneos e o tempo histórico do mundo público. Estamos em uma cidade sob ocupação colonial (chegamos a ver a carruagem do governador-geral inglês passar diante de nossos olhos), mas o único candidato a evento histórico público, a ação guerrilheira dos Invencíveis [grupo nacionalista irlandês] cerca de vinte anos antes, é mediado tão-somente por mexericos e pela memória coletiva.

O romance histórico não deve mostrar nem existências individuais nem acontecimentos históricos, mas a interseção de ambos: o evento precisa trespassar e transfixar de um só golpe o tempo existencial dos indivíduos e seus destinos. A esse respeito, gosto de citar o grande poema de Brecht: 'Ó vicissitudes do tempo, vós, esperança do povo!' etc.

O romance histórico, portanto, não será a descrição dos costumes e valores de um povo em um determinado momento de sua história; não será a representação de eventos históricos grandiosos; tampouco será a história das vidas de indivíduos comuns em situações de crises extremas; e seguramente não será a história privada das grandes figuras históricas (que Tolstói discutia com veemência e contra o que argumentava com muita propriedade).

A arte do romance histórico não consiste na vívida representação de nenhum desses aspectos em um ou em outro plano, mas antes na habilidade e engenhosidade com que a sua interseção é configurada e exprimida; e isso não é uma técnica nem uma forma, mas uma invenção singular, que precisa ser produzida de modo novo e inesperado em cada caso e que no mais das vezes não é passível de ser repetida.

O arquétipo dessa interseção ainda é, sem dúvida, A cartuxa de Parma, em que o ingênuo e entusiasmado Fabrice parte para juntar-se a Napoleão e chega a Waterloo a tempo de presenciar um quadro de caos alarmante e inexplicável, vindo a compreender só mais tarde que provavelmente vislumbrara o próprio imperador no momento de sua debandada. Stendhal tinha uma razoável experiência histórica pessoal, tendo presenciado na Rússia as mesmas batalhas que Tolstói representaria cerca de 25 anos mais tarde. No entanto, o que ele pretendeu mostrar em A cartuxa não foi uma batalha, mas a impossibilidade de representar tal evento e mesmo a insensatez de lhe atribuir um nome genérico ou abstrato como 'batalha'."


(Fredric Jameson, O romance histórico ainda é possível?, conferência apresentada no simpósio "Reconsiderando o Romance Histórico", realizado na Universidade da Califórnia em 26 de maio de 2004, disponível aqui)

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