segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Apagamento


1) No início do último capítulo de Footsteps, Richard Holmes volta à ideia da possessão: depois de seu período na Itália, Holmes volta a Londres e começa a escrever a biografia de Shelley, eight hundred pages of it, todos os dias sem parar durante quatorze meses, I was possessed by it, and in the end it became something like an act of exorcism (p. 201). Como já escreveu Roberto Calasso em A literatura e os deuses, a cultura ocidental - justamente pela figura de Sócrates - é marcada desde os primórdios pela ideia da possessão; por outro lado, também já foi dito, a partir de Jacques Derrida, que "o mal de arquivo é uma doença da possessão, da mescla entre o ser e algo que está para além dele". 

2) O livro de Holmes está, evidentemente, repleto de visitas aos arquivos. Uma das mais interessantes diz respeito a uma carta de Shelley, que Holmes só pôde ver muito tempo depois dos eventos narrados em Footsteps (de certa forma, portanto, a evocação da visita ao arquivo é também a evocação de um desencaixe da narrativa, uma dimensão out of joint da ficção da biografia tal como montada por Holmes; é precisamente o que faz o arquivo: desestrutura o presente com as energias latentes do passado). Uma das cartas de Shelley para Claire Clairmont, nota Holmes, conta com reticências em um trecho e uma nota editorial que avisa: one line is here erased (p. 159).

3) Pois é justamente esse apagamento que Holmes deve investigar no arquivo - o manuscrito, contudo, estava "na América", escreve ele, na Pforzheimer Library de Nova York; uma vez analisada, a carta de Shelley enviada de Veneza read very differently: as reticências estavam no lugar de uma frase reveladora: Meanwhile forget me & relive not the other thing. A frase está riscada - não se sabe se pela mão de Shelley ou de Claire - e Holmes comenta que The very deletion carries its own implication (uma frase que não só é eliminada no original, mas também na edição - no primeiro registro com um traço e no segundo com reticências -; dentro de uma ausência se esconde outra, de segundo grau, que só o arquivo pode revelar até que ponto estão ligadas e até que ponto conferem um sentido suplementar à carta de Shelley).   

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Notebook



1) Todo o livro de Richard Holmes - Footsteps - é assombrado pela dinâmica da possessão - o biógrafo como alguém que transforma a própria vida em um recipiente a ser preenchido pelas energias do passado, pela presença fantasmática de um morto ou morta (como Mary Wollstonecraft, a quem Holmes dedica um capítulo). Como escrevi anteriormente, ele chega à Itália em 1972 depois de três anos enchendo cadernetas com anotações sobre Shelley, "possuído" por sua voz e de seus amigos e familiares ("vozes" que são projeções acústicas de algo que Holmes só tem acesso em forma escrita, pelas cartas). Em seguida no capítulo sobre Shelley, Holmes apresenta uma imagem ilustrativa da possessão: sua caderneta é dividida, nas páginas da esquerda a sua vida (suas viagens, suas impressões), nas páginas da direita a vida de Shelley (On the left-hand pages of my notebook I put fragments of my own travels, on the right-hand pages I put Shelley's, p. 137).

2) Se a dinâmica caligráfica entre Mary e o morto fazia pensar no Derrida de O cartão-postal (com Sócrates e Platão), a dinâmica de cisão entre Holmes e seu biografado faz pensar em um livro como Glas, que Derrida publica em 1974: no corpo de um texto, uma caderneta de trabalho que, de certa forma, é também um diário (já que acompanha o biógrafo em seu trabalho cotidiano), Holmes apresenta lado a lado a sua vida e a vida de Shelley; Derrida, por sua vez, apresenta no corpo do texto uma tensão de dois blocos biográficos, conceituais - Hegel de um lado, Jean Genet de outro (Derrida trabalha com duas colunas de texto com fontes de tamanhos diferentes; existe, contudo, uma triangulação inexistente em Holmes, já que Derrida rompe o binarismo Hegel-Genet com comentários próprios, "autobiográficos" em certo sentido).  

3) Holmes conta que carrega consigo, na carteira, fotos não de sua família, mas da família de Shelley e do próprio; quando visita as cidades nas quais viveu o poeta, não circula pelos caminhos dos turistas, e sim pelos caminhos feitos décadas antes pelo poeta (passa a noite trabalhando, vai dormir com o amanhecer e acorda quando a cidade toda dorme após o almoço; aproveita a cidade vazia para caminhar); My own social life was very odd in Rome, escreve Holmes (p. 166); as leituras que faz são as leituras feitas por Shelley, apresentadas por Mary Shelley em uma entrada de seu diário: Read Montaigne, the Bible, and Livy. Walk to the Coliseum. Shelley reads Winckelmann (p. 164). 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Caligrafia e fantasma



1) Em seu livro Footsteps, Richard Holmes fala da morte e dos dias que antecedem a morte de Percy Shelley em 1822, na Itália: ele tinha visões à noite e acordava a todos gritando, correndo pela casa (via rios de sangue e corpos despedaçados); é a esposa Mary Shelley quem dá detalhes em suas cartas - citadas por Holmes -, escrevendo sobre as nervous sensations and visions, gritos que inspired me with such a panic that I jumped out of bed (as visões envolviam também a violência da água do mar e o afogamento de pessoas próximas, espécie de antecipação da própria morte, já que Shelley naufraga e morre afogado em 8 de julho de 1822).

2) Evocando a relação entre "possuído" e "possuidor" que Derrida coloca no início de O cartão-postal (a partir da relação entre Sócrates e Platão tal como vista em um cartão-postal), ou as ideias de Barthes sobre a relação entre grafia e subjetividade, traço e identidade (ou ainda a triangulação construída por Sebald entre corpo, escrita e memória em Os emigrantes, especialmente na imagem do menino Max Aurach curvado sobre a mesa escolar), Holmes fala de como notou uma mudança clara na caligrafia de Mary Shelley depois da morte de Percy Shelley, como se ela estivesse absorvendo, por via caligráfica, a presença espectral do morto (que segue, de certa forma, vivendo através da forma específica da escrita).

3) Holmes escreve que, visitando o Museu Keats-Shelley em Roma, analisando os originais das cartas de Mary Shelley escritas após 8 de julho de 1822, nota o disturbing fact da mudança da caligrafia: became virtually identical with his own, como uma "escrita automática" guiada pelo disembodied spirit de Shelley (é interessante notar que Holmes inicia o capítulo falando de sua própria escrita, da escrita do biógrafo que segue os passos do biografado, outra versão da dinâmica do possuído/possuidor: no outono de 1972 ele chega à Itália para seguir os passos do autor, filling notebooks about Shelley, se declarando possessed by him, and the voices of his family and friends).

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O sotaque de Char



1) Ainda na sétima seção de O monolinguismo do outro, quando Derrida fala de sua resistência com relação aos sotaques (e de como eles não tem a dignidade suficiente para acessar a palavra pública), ele acrescenta mais um elemento autobiográfico (depois de comentar sua vida escolar na Argélia dos anos 1930): quando escutou René Char ler seus próprios aforismos com um sotaque "ao mesmo tempo cômico e obsceno", Derrida experimentou "a traição de uma verdade" e o desmoronamento de uma "admiração de juventude" (o sotaque é incompatível com a dignidade da palavra pública e, acrescenta Derrida, com "a vocação da palavra poética").

2) O comentário é digno de nota porque Char é um indiscutível elo de ligação com Heidegger, fundamental para a formação de Derrida (é possível relembrar também a relação estreita de Héctor Ciocchini com Char e a tentativa de pensar um "humanismo contemporâneo" a partir de sua obra). Em uma entrevista publicada em novembro de 1985 (feita por Adriano Sofri), Giorgio Agamben conta como testemunhou um dos encontros entre Char e Heidegger - ocorrido em 1966, por conta do curso deste último na cidadezinha francesa de Le Thor (mesmo ano em que Derrida vai aos Estados Unidos, para o evento sobre o estruturalismo na Johns Hopkins, e apresenta o célebre texto "A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas").  

3) Conta Agamben: "Voltei para lá este ano, sabendo que encontraria um vilarejo já irreconhecível pelo turismo, mas, ao invés disso, encontrei o mesmo hotel, agora completamente abandonado, invadido pelo mato e com as janelas caídas, como se tivesse há vinte anos esperando por mim. Em 1968 aconteceu, no mesmo lugar, um seminário sobre Hegel. Dessa vez, éramos uns dez, entre poetas e filósofos. Era vida comum, o seminário aberto pela manhã, as refeições feitas em conjunto e as longas caminhadas pelo campo. O seminário não tinha absolutamente nenhuma formalidade e se baseava na leitura atenta dos textos. Heidegger lembrava no início que em um seminário não pode haver outra autoridade senão a coisa mesma".

domingo, 5 de fevereiro de 2023

A costa da Bretanha



1) Na sétima seção de seu relato-conferência O monolinguismo do outro, Jacques Derrida recupera uma espécie de Bildung colonial, ou seja, fragmentos de sua infância escolar na Argélia dos anos 1930 e 1940: nem uma palavra sobre a Argélia, sua história ou geografia, escreve Derrida; por outro lado, todas as crianças sabiam de memória os afluentes do Sena e aprendiam a traçar de olhos fechados a costa da Bretanha (o que me faz pensar em outro conjunto de cenas de aprendizado, aquelas que Sebald coloca na última parte de Os emigrantes, dedicada a Max Aurach/Max Ferber, na qual o personagem conta ao narrador sobre uma foto tirada por seu pai no seu segundo ano de escola, mostrando o menino com o lápis na mão, curvado sobre o caderno de escrita).

2) O único momento benigno nas cenas de aprendizado, continua Derrida, está reservado para a literatura: era a oportunidade de acesso a um mundo sem continuidade sensível com o mundo efetivo, cotidiano (suas paisagens culturais e naturais); mas essa descontinuidade termina por revelar uma segunda descontinuidade, embutida na primeira, escreve Derrida: para aprender a "literatura francesa" é preciso recalcar a "literatura argelina" (só se entra na literatura francesa perdendo o sotaque, escreve Derrida). Essa "neutralidade" do francês sem marca de origem é algo que Derrida recebe na infância e leva para o resto da vida; ele confessa: qualquer tipo de sotaque (sobretudo os meridionais) parece incompatível com a solenidade da palavra pública.

3) Ele chega, por fim, ao ponto extremo do ciclo: o aluno se transforma em professor e, nessa posição, deve usar a palavra, a voz, a presença (e vale a pena comentar neste ponto como a retrospectiva autobiográfica de O monolinguismo do outro é também uma retrospectiva, contagiada pela anamnese da autobiografia, dos principais conceitos mobilizados por Derrida em sua obra - palavra, voz, presença). Derrida diz que teve que se esforçar para falar baixo; uma vez professor, teve que reaprender o uso da voz e começar a falar baixo - algo difícil em sua família, aponta Derrida (a cada vez, portanto, que toma a palavra como professor, Derrida retoma a cena familiar da língua - as vozes altas em família - e a cena inaugural da coerção educacional: falar baixo, evitar o sotaque e assim por diante).