terça-feira, 29 de setembro de 2009

Perseguindo um significante

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1a) Em 1934, Samuel Beckett publica o conto Dante e a Lagosta. Está incluído na coletânea More Pricks than Kicks. Os contos desse livro são os melhores momentos do primeiro romance de Beckett, longo e verborrágico, que ele desmembrou e silenciou. O protagonista do conto chama-se Belacqua, vive em Dublin e estuda no Trinity College, como o jovem Beckett da época (28 anos). Perde-se em digressões eruditas sobre filosofia, patrística e literatura - está especialmente interessado, como Wittgenstein na mesma época, nos diferentes usos de um mesmo significante quando migra de contexto.
1b) Belacqua é um leitor, a Divina Comédia inicia o conto. Prepara uma lagosta para o jantar: ela está aí como um proto-signo da agonia, da espera, do vazio, da impossibilidade, da angústia e do silêncio. Este é o primeiro Beckett, Beckett antes de ser Beckett, e aparece uma lagosta, que será morta lentamente na água fervente, For hours, in the midst of its enemies, it had breathed secretly, a lagosta lutou na água, é o que ele diz no fim do conto, para morrer em agonia, em outra água: um familiar que é monstruoso.
1c) O pior está no fim (respiro fundo, essa é forte): Well, thought Belacqua, it's a quick death, God help us all. Uma morte rápida, esse é o consolo possível, se não pensamos muito na questão. As últimas palavras do conto aparecem, em seguida: It is not. Não, nada disso, você está enganado, a lagosta morre, você morre, não há nada, não há ninguém. Implosão de toda uma ontologia enganosa através de uma lagosta. Uma lagosta!
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2) O capítulo 10 de Alice no país das maravilhas é dedicado a uma dança da lagosta.
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3) David Foster Wallace retira a sutileza da alegoria de Beckett e transforma a lagosta em debate ético, quando questiona a naturalidade de se ferver um animal vivo: como foi possível socializar um gesto tão brutal? A pergunta é feita por conta do Festival da Lagosta do Maine, e integra um artigo que Wallace publica em agosto de 2004 na revista Gourmet. Mais tarde, o artigo nomeia seu livro de ensaios, Consider the Lobster. Sobrevive de Beckett esse embate contra a ignorância na qual chafurda a sociedade: é sempre mais fácil evitar pensar em certas coisas. It is not.
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4) Está tudo lá, em J.M. Coetzee, A vida dos animais, e também em toda argumentação e exemplo e ficção da velha ranzinza Elizabeth Costello. Lembrando que Coetzee ocupa um lugar central na apreciação crítica que acompanha as obras completas de Beckett (Paul Auster também está lá).
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5) Há uma cena do filme Simplesmente Amor na qual a mãe, Emma Thompson, dá os retoques finais na fantasia que a filha vai usar em uma apresentação de teatro na escola. É uma fantasia de lagosta. Pouco depois ela vai descobrir que o marido comprou uma jóia para a secretária, etc. Uma imagem terna e eficiente do cotidiano, como acontece nas últimas palavras daquele conto de Cortázar, Deshoras, que o narrador relembra um amor da infância, revive e repensa até que é atropelado pelo pato Donald: oía la voz de Felisa que entraba con los chicos y venía a decirme que la cena estaba pronta, que fuéramos enseguida a comer porque ya era tarde y los chicos querían ver al pato Donald en la televisión de las diez y veinte.
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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Minima Moralia




1) Roberto Calasso observa (49 degraus), sobre a situação de Adorno quando escreve Minima Moralia, que "seu momento de máxima força criativa coincide com a situação de máxima vulnerabilidade" - pois Adorno recém havia chegado aos Estados Unidos, como milhares de outros, fugindo da Guerra. Sem dinheiro, e sem ter onde cair morto, teve que assimilar uma quantidade brutal de novidades sem poder pensar muito em suas limitações, sofrimentos ou preferências.
2) O método escolhido foi o aforístico - breve, conciso, de um só fôlego (quase como um blog que se escreve durante o trabalho), que já contava com larga tradição na língua alemã. Movimentos de dissecação muito precisos, que Adorno ensaia para abarcar a cultura em sua face monstruosa, midiática, multisensível, atabalhoada, que ainda nascia.
3) Isso foi em 1944. Ao longo de 1940, Walter Benjamin experimentou algo semelhante, porque fugia do nazismo, havia sido preso, e também lutava cognitivamente para apreender um estado de coisas delirante. Também com o gênero aforístico, às pressas: as teses que formam o ensaio Sobre o conceito de história foram escritas em pedaços de papel encontrados ao acaso, escritas sobre a coxa, escritas na penumbra, dentro de um trem, até que se juntaram em uma sucessão de iluminações.
4) Essa é a costura indissolúvel entre contingência e expressão (como os microgramas de Walser), e tanto Minima Moralia quanto as teses sobre a história (e o contexto que possibilitou...) sobrevivem ainda hoje, subterraneamente, como um capítulo em potência de uma história abreviada do pensamento portátil, talvez.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Ronald Firbank

1) Me persegue uma frase de Bartleby & companhia, em que alguém comenta: “entre meus autores preferidos estão Robert Walser e Ronald Firbank, e todos os autores preferidos por Walser e por Firbank, e todos os autores que estes, por sua vez, preferiam” (p.28). Ronald Firbank nasceu em Londres, 17 de janeiro de 1886. Morreu em Roma, 21 de maio de 1926 (ano em que Marinetti passeava pelo Brasil) - com 40 anos, portanto. Filho de lorde, viveu de herança. Viajou muito: Espanha, Itália, Oriente Médio, Norte da África.
2) Resta saber se foi ao sujo, como Flaubert ou Sir Richard Francis Burton, ou se foi ao turístico típico, como, sei lá, Cees Nooteboom (ou se viajou sem sair da cabine, como fez outro milionário, Raymond Roussel). Escreveu um livro que talvez esteja relacionado a isso: Sorrow in Sunlight, de 1925, rebatizado pelo editor como Prancing Nigger, ou seja, Nêgo saltitante - a trama transcorre em um país semelhante a Cuba ou o Haiti. Estudou em Cambridge, que abandonou antes de se formar. Escreveu contos, romances e peças de teatro. Virou católico com pouco mais de 20 anos de idade.
3) E nesse ponto aparece um livro que me faz pensar muito mais em Rodolfo Wilcock do que em Robert Walser para acompanhar Firbank nas preferências de Bartleby & companhia. Trata-se de Concerning the eccentricities of Cardinal Pirelli, de 1926, o único título de Firbank traduzido ao espanhol: De las excentricidades del Cardenal Pirelli. O religioso do título inicia o livro batizando um cachorro e finaliza-o correndo nu atrás de um coroinha. Um humor irlandês, talvez, à maneira de Flann O'Brien e Joyce e Beckett (um humor delirante como o de Hrabal), mas com um toque homossexual (há um artigo sobre Firbank intitulado o escritor de unhas vermelhas (Alan Hollinghurst o compara a Proust, inclusive)). Enfim, ainda muito a descobrir de Firbank.