quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Dante e a burguesia


Dolf Oehler comenta, em seu livro O velho mundo desce aos infernos, a curiosa relação estabelecida por Flaubert com Dante, especialmente no que diz respeito a uma reflexão artística sobre uma classe dirigente decadente (que "desce aos infernos"). Da mesma forma, existe uma idealização do espaço urbano francês em Flaubert que passa por um registro duplo, simultâneo e dissociativo, tanto "realista" quanto "fantástico" (não é à toa que Foucault se refere à imaginação de Flaubert como um "fantástico de biblioteca"). A cidade francesa em Flaubert é tanto símbolo quanto "realismo".

Escreve Oehler: "Farner fala do Dante de Doré como de um 'Baedeker para a complicada viagem do inferno rumo ao céu', e acrescenta: 'Fugir para Dante e com Dante é o sonho dos burgueses', do mesmo modo que o é, pode-se completar, fugir para a natureza e com a natureza, para a Renascença e com ela, como faz o herói de Flaubert", e nesse ponto Oehler está fazendo referência a Educação sentimental. E ele continua: "o herói da Éducation não dispõe de uma memória fértil, mas dissociativa" (dissociação que é inerente ao método de Flaubert, eu acrescentaria). 

(Dolf Oehler, O velho mundo desce aos infernos, trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 1999, p. 401, notas 458 e 461)

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Cronotopo, século XIX



1) O ensaio de Benjamin sobre Proust ("A imagem de Proust", 1929) termina com uma sobreposição de visões: Benjamin aproxima a visão de Proust deitado em sua cama, escrevendo freneticamente, à visão de Michelangelo deitado nos andaimes enquanto pintava o teto da Capela Sistina. Ele parece reservar para o final, estrategicamente, "a imagem de Proust", uma imagem impura, dialética, na medida em que faz pensar em diferentes associações (o tempo do trabalho, a solidão, a grandiosidade) e leva a múltiplas direções simultaneamente (a sobreposição é um corolário da fórmula expressa por Benjamin um pouco antes, "ver e desejar imitar eram a mesma coisa").

2) Se Michelangelo está para Proust, a Recherche está para a Capela Sistina. Eis a doutrina das semelhanças, das correspondências que não se dão de imediato, que não se oferecem pacificamente (devem ser forçadas manualmente). É o trabalho que Proust faz a partir de Baudelaire e para além dele, escreve Benjamin - é Proust quem torna o século XIX visível, possível, inteligível, justamente quando ele não existe mais (especialmente porque ele não existe mais). É só a partir de Proust e da reconfiguração de espaço-tempo feita por ele que o século XIX pode ser "partilhado" (e disso decorre a possibilidade de Paris ser a "capital do século XIX"). Benjamin escreve que Proust transforma o século XIX em um "campo de forças" (já não é mais uma "simples época").

3) Essa ideia de Benjamin repercute em um ensaio de Hayden White de 1987 intitulado "O século XIX como cronotopo", no qual ele tenta o mesmo gesto: pensar a passagem do século XIX de uma "simples época" para um "campo de forças" (fazendo uso da categoria de Bakhtin). Aquilo que Benjamin faz de forma por vezes intuitiva (e com o foco restrito a um único autor), White tenta fazer de forma ampla, estrutural (aproveitando o trabalho já feito por Fredric Jameson em O inconsciente político, que cita, especialmente quando Jameson fala do cronotopo de Bakhtin como uma condensação das dimensões espaciais, temporais e socio-culturais, manejando tanto a persistência do antigo hegemônico quanto a ressurgência de conteúdos políticos latentes, subterrâneos, soterrados).

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sontag, 1964


1) No célebre ensaio de 1964, "Contra a interpretação", Susan Sontag posiciona em tensão duas possibilidades da arte: "dizer" e "realizar", ou seja, aquilo que solicita a explicação e aquilo que solicita a experiência, a vivência, a fruição. O viés do "dizer", que é o viés da interpretação, argumenta Sontag, tem sido historicamente privilegiado há séculos (e nisso o argumento de Sontag antecipa algumas das posições de Derrida - o ensaio sobre a estrutura, o signo e o jogo é de 1966), desde os gregos, passando pela reconfiguração do Antigo Testamento pelos primeiros cristãos, até chegar na articulação entre conteúdo manifesto e conteúdo latente em Marx e Freud. 

2) A admiração de toda uma vida que Sontag nutria por Barthes não é por acaso: ela percebe nele uma constante atenção à arte do presente e percebe nisso um motor para a crítica (o contato de Barthes com Brecht é o primeiro exemplo forte de reconfiguração de sua crítica a partir da arte). "Contra a interpretação" é o primeiro esforço consciente, público e consolidado de Sontag de transformar o próprio pensamento crítico a partir da arte do presente: os filmes de Elia Kazan, Bergman e Resnais, os romances de Robbe-Grillet e "o ensaio de Randall Jarrel sobre Walt Whitman", entre outros. A arte do presente não pede o cancelamento da interpretação, até porque Sontag sabe que isso é impossível; pede uma reconfiguração e uma expansão da possibilidade de interpretação e mesmo uma desnaturalização da imposição da interpretação (nesse aspecto, mais uma vez faz pensar em Derrida e na ideia de que sempre falamos do interior da metafísica).

3) Em certos momentos a linguagem metafísica em Sontag é flagrante - quando fala da "coisa em si", por exemplo, ou quando fala da obra de arte com aparência "unificada e limpa". Ao mesmo tempo, há um conflito claro entre as referências que ela escolhe elencar: ao mesmo tempo em que elogia o trabalho de Benjamin sobre Leskov (sem, contudo, apontar exatamente o que Benjamin "faz ver" em Leskov que seja pertinente para um paradigma "contra a interpretação"), elogia também o trabalho de Erwin Panofsky, a quem Georges Didi-Huberman, por exemplo, critica em termos semelhantes aos usados por Sontag em seu ensaio de forma geral (em Diante da imagem, de 1990, Didi-Huberman ressalta as articulações "claras, limpas e racionais" de Panofsky diante dos objetos artísticos, "sobredeterminados" por um "neokantismo" disciplinatório).   

domingo, 18 de outubro de 2020

Logos & Bios

Além de soldado e bebedor inveterado, Sócrates foi um instaurador de discursividade, para usar a terminologia do Foucault da Ordem do discurso. O Fedro mostra a performance de uma posição que era tanto simbólica quanto prática: Sócrates caminhando e conversando nas margens da cidade, ocupando uma espécie de limite (valorizando a vida na cidade e, ao mesmo tempo, gozando das benesses da natureza). Outro traço fundamental de Sócrates é sua insistência em andar de pés descalços: indicação de sua forte e íntima ligação com o lado mundano da experiência, com o mundo fenomênico (em consonância com seu gosto pela comida e pela bebida).

Assim como Nietzsche antes dele, Foucault abertamente seleciona Sócrates como um modelo (de vida e de trabalho, simultaneamente). No seminário intitulado A coragem da verdade, Foucault retoma Sócrates, reconta parte de sua biografia, a cena de sua morte, a consistência de sua posição desconfortável diante do poder estabelecido. Para Foucault, a trajetória de Sócrates mostra um peculiar equilíbrio entre logos e bios, ideia e existência, pensamento e experiência (é curioso e irônico que as últimas aulas dadas por Foucault em sua vida tenham sido justamente sobre Sócrates, sobre a trajetória de Sócrates, sua relação com a verdade e sobre a cena de sua morte como um corolário de uma longa batalha contra a falsidade). 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Beginnings

Em seu ensaio "Foucault Decodificado", Hayden White (além das críticas e reservas) busca em Foucault certos traços de uma reconstrução potente da "imaginação humana" (na esteira de Nietzsche), ou seja, pistas que indiquem um espécie de cenário pós-erradicação do humano/humanismo. Nessa perspectiva, Foucault é considerado insuficiente, e White retorna a Vico, capaz de oferecer um instrumental de renovação da imaginação humana (pois Vico é, para White, o teórico do eterno retorno dos modos retóricos de representação da realidade). 

White encontra um espírito correlato em Edward Said, leitor não só de Foucault como de Vico. Em 1976, White publica uma resenha de Beginnings, livro de Said, intitulada "Criticism as Cultural Politics", resgatando parte dos atores de outrora: como é possível começar de novo, pergunta Said a partir de Nietzsche (escreve White), sugerindo que tal "possibilidade" não está nem na intensificação do uso da razão, nem em um método de veiculação irrestrita da emoção (ou do irracional), mas na criativa oscilação de um número restrito de métodos e modelos de explicação do mundo e da tradição (não por acaso o modelo para Metahistória, de White, é o Mimesis de Auerbach, entusiasticamente levado como modelo também por Said ao longo de toda sua produção). 

sábado, 10 de outubro de 2020

Apenas começando


1) Há tempos conhecemos as teses de Ricardo Piglia sobre o conto - a teoria do iceberg de Hemingway, a noção de que todo relato conta duas histórias, uma superficial, a outra subterrânea. Sabemos também que Piglia inicia sua argumentação com Tchékhov e a anedota breve (vinda de seu caderno de anotações) do homem que ganha um milhão em Montecarlo, volta para casa e se suicida (é interessante notar que um dos contos longos de Tchékhov, característicos da produção de fins da década de 1890, intitulado "Em serviço", circula ao redor de um cena incompreensível de suicídio). O relato moderno, escreve Piglia, deixa as justificativas e resoluções em aberto, em suspensão e assim por diante.

2) É digno de nota, contudo, que a noção do relato que conta duas histórias (uma delas latente) já está em Tchékhov, já está em "A dama do cachorrinho", talvez seu conto mais célebre, já está no início da quarta seção daquele que é talvez seu conto mais célebre. Em uma conversa com a filha, Gurov explica por que no inverno não há trovoadas e, no processo, reflete que "levava duas vidas", uma delas evidente, "vista e conhecida por todo mundo", e a outra transcorrendo em segredo. Tudo que importava para ele, continua Gurov (através do discurso indireto livre meticulosamente calibrado de Tchékhov), acontecia na segunda vida, naquela oculta, uma "existência privada" apoiada no segredo ("sob as trevas da noite").

3) Tchékhov, portanto, não só prefigura a teoria do iceberg de Hemingway e a elaboração em tese de Piglia (no sentido criativo da figura: sem as teses de Piglia, a reflexão de Gurov "diria" outra coisa, diversa) como elabora dentro do próprio relato uma crítica (um comentário) à noção da narrativa dúplice: o conto narra a trajetória de consolidação dessas duas camadas simultâneas de vida (vida de casados x vida de amantes), a convivência tensa desses dois registros (privado x público), e em alguns momentos insinua a junção dos dois registros, até que, por fim, na última frase, anuncia que o mais difícil estava "apenas começando" (ou seja, Tchékhov já incorpora ironicamente uma referência à noção de "final aberto", "relato em suspenso").

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Figurações


1) A interpretação "figural" de que fala Auerbach em Mimesis: a ideia de que um evento do passado possa prefigurar um evento do futuro (no contexto bíblico, a ideia de que Davi prefigura Cristo e que a arca de Noé prefigura a Igreja do futuro). É impossível entender Dante sem entender o método figural, defende Auerbach (o que me faz pensar em outro leitor de Dante, contemporâneo de Auerbach, Jorge Luis Borges: um dos fios que sustentam a argumentação de "Kafka e seus precursores", por exemplo, é justamente o da figuração/prefiguração: se não existisse Jesus, Davi não prefiguraria aquilo que não existe; da mesma forma, se Kafka não existisse, Bartleby seria prefiguração de qualquer outra coisa, mas não do sistema de adiamento angustiado de O Castelo).  

a) (o próprio procedimento da interpretação figural diz respeito a um gesto de adiamento - por mais que o próprio Auerbach, na condição de filólogo, não tenha avançado nesse tipo de especulação. Se a Comédia de Dante é, ao mesmo tempo, prefiguração da Comédia de Balzac, e refiguração da Eneida de Virgílio, isso quer dizer que a tradição é um work in progress, um efeito da acumulação de "leituras fortes" (nos termos de Harold Bloom) ao longo do tempo)

2) Em um ensaio chamado "The Rhetoric of Interpretation", Hayden White propõe uma peculiar aplicação da interpretação figural de Auerbach (que ele, de resto, utiliza em vários outros textos): lendo a Recherche de Proust, White separa uma série de cenas em jardins (que disparam o curto-circuito de uma série de oposições: palavra e silêncio; interioridade e exterioridade; campo e cidade; palavra e imagem) que encadeiam um complexo sistema de prefiguração, figuração e refiguração (o sentido oferecido pelo conjunto de cenas nunca é completo, na medida em que elas estabelecem um regime de figuração e contra-figuração virtualmente infinito: toda figura que se apresenta requisita uma atualização no futuro).

b) (a frase inicial de Tolstói em Anna Karienina, por exemplo, Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira, é um bom exemplo de uma figura que se refrata e atualiza inúmeras vezes ao longo da narrativa, sendo constantemente modulada e ressignificada)

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Usos do passado


1) No centro da crítica de Carlo Ginzburg a Hayden White (feita em 1990 no evento de Friedlander) estava, mais uma vez, o fantasma do fascismo. A reflexão de Ginzburg percorria um caminho já feito muitas vezes antes no que diz respeito a Nietzsche - será que as ideias de White sobre a possibilidade de intervenção imaginativa sobre o presente não podem ser usadas pelo totalitarismo? O cenário é construído por Ginzburg a partir de uma comparação meticulosa entre as ideias/posturas de White e aquelas de Giovanni Gentile (The self-styled "philosopher of Fascism", como diz a Wikipedia). 

2) Assim como Gentile (e Nietzsche, sem dúvida, digo eu), White (argumenta Ginzburg) defende o uso criativo, imaginativo e político do passado - o problema reside na instrumentalização que regimes totalitários podem realizar da ideia (uma questão, de resto, que White aponta desde seus primeiros textos, que respondem precisamente à ênfase totalitária do governo dos Estados Unidos nos anos 1960 - e, de forma ampla, a questão se articula com a proposição de White de que a escrita da história deve ser sempre present-oriented).

3) A tensão entre Ginzburg e White (ao redor do fascismo) é, de resto, a tensão que percorre o pensamento do século XX - desde a virada do século e suas primeiras décadas (a tríade Nietzsche-Hitler-Heidegger), por exemplo, até os seminários de Derrida sobre a pena de morte e os rogue states. Do lado de Ginzburg, estão duas referências centrais cujos trabalhos respondem diretamente aos projetos totalitários: Auerbach e Bakhtin. Do lado de White, o intenso corpo-a-corpo com o estruturalismo de Lévi-Strauss (e, em parte, de Michel Foucault) e a atraente ideia da história como efeito de superfície da estrutura (ou seja, o sujeito não como aquele que manipula a contingência, mas que é manipulado por ela). 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

O aniversário de Döblin


 14 de agosto de 1943

Helli organizou uma festa para comemorar os 65 anos de Döblin. Heinrich Mann dirigiu-lhe uma bela saudação, Kortner, Lorre, Granach leram trechos dos livros dele. Blandine Ebinger cantou chansons berlinenses, Steuermann executou um tema de Eisler ao piano, e no fim Döblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padrões fixos de natureza religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma sensação incômoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente horror experimentado quando um companheiro de prisão sucumbe à tortura e fala.

O fato é que Döblin recebeu alguns golpes duríssimos, a perda de dois filhos na França, uma epopeia de 2.400 páginas que nenhum editor publicará, angina pectoris (a grande curadora de almas) e a vida ao lado de uma mulher incrivelmente tola e vulgar. O declamador Hardt cometeu um lapso revelador. Estava recitando a "Oração de Zoroastro" de Kleist e, em vez de dizer "que eu tenha forças para relevar os erros e as tolices de minha espécie", trocou "espécie" por "esposa" no apelo solene: Döblin e a mulher tinham passado o fim de semana na casa de Hardt. 

Quando Döblin começou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, também ele era culpado da ascensão dos nazistas ("O senhor não disse, Sr. Thomas Mann, que ele é como um irmão, ainda que um mau irmão?", perguntou à primeira fila) e depois continuou obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convicção de que ele diria "porque acobertei os crimes da classe dirigente, desencorajei os oprimidos, iludi com canções os famintos" etc, mas tudo que fez foi anunciar com teimosia, sem arrependimento ou pesar, "porque não procurei Deus".

(Bertolt Brecht, Diário de trabalho, volume II, 1941-1947, trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo, Rocco, 2005, p. 194-195)