terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Markson, Rafael


O problema da filiação em Markson é tanto uma forma de reforçar seu questionamento da autoridade do autor (o autorretrato que pertence a qualquer um que se olhar no espelho, os nomes próprios intercambiáveis, as atribuições errôneas) quanto uma forma de reforçar seu legítimo assombro diante daquilo que a arte fez e pode fazer (as várias anedotas que procuram dar conta do espaço que leva das condições técnicas às realizações - Markson se movimenta naquele momento que Barthes chamou de a preparação do romance).
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A filiação pode ser vista como um mapa no qual as coordenadas indicam níveis de contato e afastamento. Alguns gestos são compartilhados e neles é possível observar a convivência de indivíduos e manifestações artísticas separadas no tempo e no espaço, como faz Markson em Wittgenstein's Mistress com Sócrates e Jesus ou com Shakespeare e Eurípides a partir da anedota da tradução ao grego. Ou como faz Sebald em Austerlitz com o próprio Wittgenstein:
Ou como faz Rafael, mencionado exaustivamente por Markson em WM, quando na Stanza della Segnatura pinta Platão com as feições de Leonardo da Vinci e Aristóteles com as de Bastiano da Sangallo (que era conhecido como Aristotile da San Gallo, escreve Vasari nas Vidas), por volta de 1509:
Ou como nessa digressão de Lukács em um dos ensaio de A alma e as formas:
O paradoxo de Chesterton, segundo o qual "o cristianismo é a única moldura na qual o hedonismo pagão se preservou", mostra-se aqui ainda mais paradoxal, embora completamente natural e simples. Pois nos romances de Charles-Louis Philippe o cristianismo não é apenas uma moldura que absorve o paganismo, mas um paganismo ele próprio, um hedonismo da renúncia e do sofrimento. O que buscam esses novos cristãos não é a salvação da alma, mas a si mesmos ou a felicidade, ou a ambos; apenas seus caminhos e métodos estão profundamente de acordo com a essência do cristianismo. O paganismo tardio e o cristianismo moderno convergem e se misturam já desde a época em que eram meros fatos históricos; hoje são formas de sentir atemporais e jamais dissociáveis. (Georg Lukács, "Nostalgia e forma: Charles-Louis Philippe", A alma e as formas, trad. Rainer Patriota, Autêntica, 2015, p. 155-156).
O ensaio de Lukács foi escrito em 1910. Precisamente nessa época, Warburg começa a esboçar um texto que será apresentado em 1918 e que ganhará forma final em 1920, "A profecia da Antiguidade pagã em texto e imagem nos tempos de Lutero", no qual ele escreve:
A beleza formal das figuras divinas e o equilíbrio saboroso entre a crença cristã e a pagã não deve nos distrair do fato de que, mesmo na Itália por volta de 1520 - no período, portanto, da atividade artística mais livre e mais criativa -, a Antiguidade era venerada como que em uma herma dupla, que trazia uma face sinistra e demoníaca, como mandava o culto supersticioso, e outra olímpica e serena, como exigia a veneração estética (Histórias de fantasma para gente grande, trad. Lenin Bicudo Bárbara, Cia das Letras, 2015, p. 163).

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Markson, filiação

1) Por conta de uma equação alegórica complexa que leva medidas variáveis de Jesus, Sócrates e Wittgenstein, David Markson apresenta a narradora de Wittgenstein's Mistress como alguém propensa a gestos - gestos que criam uma sorte de corrente associativa através do tempo e do espaço. Gestos como o de desenhar seu autorretrato em espelhos, riscar a areia da praia com um bastão, ou simplesmente apontar com o dedo (o céu, o horizonte). 
2) Uma questão fundamental para Markson é aquela da filiação, da relação mestre x discípulo. Sua narradora se identifica como pintora e frequentemente faz comentários sobre mestres e discípulos no contexto da história da arte, especialmente no Renascimento italiano:
Na verdade, espero não ter perguntado a ele [William Gaddis] se ele sabia que Taddeo Gaddi foi pupilo de Giotto.
Talvez eu não tenha mencionado que Rafael foi pupilo de Perugino. Ou que Perugino por sua vez foi pupilo daquele Piero que não se escondia sob as mesas, o que leva as conexões ainda mais longe. 
Tudo isso sendo o resgate de algo que havia escrito algumas páginas antes, sobre Sócrates:
De novo, nem sempre aquilo que escrevo sobre pupilos se aplica a todos os casos.
Somente entre aqueles que já mencionei, o pupilo de Sócrates, Platão, e o pupilo de Platão, Aristóteles, e o pupilo de Aristóteles, Alexandre o Grande, são três que certamente ficaram famosos.
3) A ficção de Markson trata, em grande medida, da habilidade necessária para a leitura dos gestos, esses gestos que remetem a filiações, a pertencimentos. O que está em jogo é sempre uma reflexão sobre o que vem antes ou depois e como isso se relaciona (criativamente, criticamente) com aquilo que está sendo enunciado diretamente - aquilo que Helena estava fazendo antes ou depois do rapto, da filha que deixou para trás; aquilo que Wittgenstein disse/fez antes e depois do encontro com Russell (vide a epígrafe); os vários mestres e discípulos mencionados e suas estratégias mútuas de aproximação/distanciamento. Talvez a subtrama mais interessante da narradora de WM no que diz respeito ao jogo das filiações seja aquela que envolve dois tradutores - o grego que traduz Shakespeare e o anglófono que traduz Eurípides. Lendo Eurípides na tradução para o inglês, a narradora identifica Shakespeare (levantando a hipótese do tradutor ter, anacronicamente, repassado o estilo de Eurípides através de um prisma shakespeareano). Quando encontra um exemplar em grego de Shakespeare, a narradora se faz a mesma pergunta: será esse tradutor grego de Shakespeare não fez o mesmo, repassando o Bardo através de um prisma euripideano?. Como escreve Borges no verbete "Epidauro" de seu Atlas:
Minha ignorância do grego é tão perfeita quanto a de Shakespeare.  

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Markson, Sócrates

Markson começa Wittgenstein's Mistress com três epígrafes: a primeira de Kierkegaard, a segunda de Bertrand Russell e a última do próprio Wittgenstein (a única delas que não é técnica, é quase já uma anedota, um biografema, dizendo: Entendo muito bem a razão das crianças adorarem areia). A frase de Russell, no entanto, também não chega a ser técnica, embora envolva certo juízo e prepare o caminho para o enigma da frase seguinte de Wittgenstein - Russell relata que pediu referências de Wittgenstein a G. E. Moore, que teve uma impressão positiva porque Wittgenstein se mostrava puzzled durante suas aulas (perplexo? reflexivo? incrédulo? impressionado?). Wittgenstein é introduzido como portador de uma qualidade de fazer-se ver, de uma espécie de ligação entre semblante e pensamento (o que é importante em um romance que faz contínuas referências ao "autorretrato"; a narradora de WM inclusive retorna algumas vezes à declaração biográfica de que era possível ver Wittgenstein pensando, seu esforço, suas feições transtornadas).
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Kierkegaard é mencionado por Lukács em seu ensaio sobre o ensaio - sobre a essência e a forma do ensaio -, posto lado a lado com Montaigne e Platão como um dos três maiores realizadores do gênero. Markson propõe a ligação entre Kierkegaard e Wittgenstein, sublinhando a eloquência gestual deste último. Lukács aproxima Kierkegaard e Platão por conta do estilo e da vastidão de seus imaginações, o que me faz recordar mais uma vez o ensaio de George Steiner:
Com uma arte perfeitamente comparável à de Shakespeare ou Dickens, os diálogos de Platão realizam a mediação corporal de todo discurso articulado. A bem conhecida feiura de Sócrates, sua incrível resistência física nas batalhas ou bebedeiras, sua retórica gestual e sua gestão dos tempos de repouso, a alternância dos passeios e das pausas, encarnam o advento do argumento e do sentido. A brusca mudança de atitude de Sócrates, de repente absorto em profunda reflexão, num momento despropositado e num local inapropriado, é tão essencial à aplicação de seu ensinamento quanto as palavras efetivamente pronunciadas (p. 78-79).
Em outras palavras, era possível ver Sócrates pensando. O Wittgenstein de Markson é bastante semelhante a esse Sócrates que Steiner vê em Platão, ensinando de forma gestual, com atitudes e posturas por vezes absurdas, relembrado por sua intransigência, por sua autenticidade de comportamento (como Italo Calvino escreve no ensaio "Por que ler os clássicos?", citando Cioran e sua anedota sobre Sócrates, que decidiu aprender uma ária na flauta antes de morrer - por quê?, perguntam; ora, para aprender uma ária na flauta antes de morrer). Essa carga gestual de Sócrates, tão enfatizada por Steiner, também foi enfatizada no neoplatonismo do Renascimento italiano, tão profundamente atento à sobrevivência dessas formas que permitem a ligação entre semblante e pensamento (as fórmulas de pathos de Warburg).