segunda-feira, 25 de julho de 2016

Festa sob as bombas

H. G. Adler
1) O posfácio de Festa sob as bombas, memórias de Elias Canetti de sua temporada inglesa ao longo da II Guerra Mundial, é assinado por Jeremy Adler, filho de H. G. Adler (Hans Günther Adler, nascido em Praga em 1910, deportado em 1944 para Buchenwald, autor do enorme volume sobre Terezín citado em Austerlitz). Festa sob as bombas é um livro inacabado, às vezes esquemático, às vezes repetitivo. Segundo Adler escreve no posfácio, Canetti "entendia seu espólio como um meio para manter-se vivo: observou mais de uma vez que deixava muitas obras propositalmente inacabadas, para não as ter de publicar; seriam então descobertas e difundidas depois de sua morte, pelo que se salvaria do ocaso".
2) O livro é também bastante seletivo, mais uma reconstrução imaginativa do que uma reprodução factual. Focar no período inglês "leva Canetti a omitir vários amigos que se esperaria encontrar na biografia", e um exemplo mencionado por Adler é o de Michael Hamburger, poeta, ensaísta, amigo e tradutor de Sebald (Hamburger é personagem de Os anéis de Saturno, além de ter traduzido poemas de Sebald - e também Hamburger, assim como faz Adler com Canetti, conta que Sebald não era tão claro a respeito a própria vida como podia parecer). 
3) Adler também ressalta o modelo de Canetti para Festa sob as bombas, modelo referido pelo próprio Canetti em três momentos ao longo das memórias: John Aubrey e seu Brief Lives (as "vidas breves de homens eminentes", do século XVII, que Wilcock traduziu ao italiano em 1977 para a Adelphi de Roberto Calasso). Usando o modelo de Aubrey, entre a bricolagem e o desarranjo cubista, Canetti, escreve Adler, "constrói sua própria biografia como coletânea de biografias daquelas figuras verdadeiras que conheceu, verdadeiras mas ao mesmo tempo típicas para a época" - como se o artista narrasse a própria vida a partir das vidas que testemunha e observa. (Jeremy Adler, "Posfácio", in: Elias Canetti, Festa sob as bombas. trad. Markus Lasch. Estação Liberdade, 2009, p. 193-211).

sábado, 23 de julho de 2016

H. G. Adler

1) Sebald e Canetti se conheceram por acaso dentro de um avião, em 1970, num voo de Zurique a Londres, conta Uwe Schütte. "Encontros como esse são destino, não coincidência", teria dito Sebald. Em Austerlitz, já no final do romance, surge uma "obra volumosa", de "quase oitocentas páginas em letra miúda", que Jacques Austerlitz leu em sua época de jardineiro-assistente em Romford, o livro de H. G. Adler sobre Theresienstadt, Theresienstadt 1941–1945: The Face of a Coerced Community (que oferece a Austerlitz a história do destino de sua família depois da separação e de sua troca de identidade). 
2) Sabemos que a infância de Austerlitz em Praga é o grande momento de revelação do livro, mas a cidade também oferece um ponto de ligação com esse autor, Adler, tão fundamental para Austerlitz num nível bibliográfico. No terceiro volume de suas memórias, O jogo dos olhos, Canetti chega ao ano de 1937. Auto-de-fé, seu romance, "fora recentemente traduzido e publicado em tcheco". Por conta disso, ele é convidado para fazer uma leitura em Praga. Canetti escreve: "Um jovem escritor, hoje conhecido pelo nome de H. G. Adler, trabalhava então numa instituição pública e havia me convidado para uma leitura". 
3) Foi Adler quem acompanhou Canetti pela cidade em sua visita: "foi meu guia", escreve Canetti, "conduzindo-me pela cidade, preocupado em não permitir que nenhuma das belezas de Praga me escapasse". Canetti via em Adler "um grande idealismo". Ele, Adler, "que logo depois se tornaria em tão grande medida uma vítima daqueles tempos malditos, parecia absolutamente deslocado em relação à sua época". Difícil pensar em alguém "mais marcado pela tradição literária alemã" do que Adler, escreve Canetti, e continua: "mas Adler estava em Praga, lia e falava tcheco com facilidade, respeitava a literatura e a música tchecas" (O jogo dos olhos, trad. Sérgio Tellaroli, Cia das Letras, 2001, p. 296-297). Adler surge em Canetti como uma figura sebaldiana: alguém fora de sincronia com seu tempo (ou com qualquer tempo); alguém que meticulosamente traça um percurso pela cidade, ao mesmo tempo que narra tal percurso a outro (em nota relacionada, é o filho de H. G. Adler, Jeremy Adler, quem assina o posfácio das memórias de Canetti sobre seus "anos ingleses", Festa sob as bombas). 

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Sacrifício

Roberto Calasso em 1960

INTERVIEWER 

Here is a photo of you and your late friend Brodsky. He wrote a wonderful essay on The Marriage where he talks about self-projection. He draws a parallel between mythology and television. The scales and parameters are different, but myth and TV are both ultimately about self-projection. The seat of both is one’s mind. The altar in both cases is a box. Sacrifice is the remote control. 

ROBERTO CALASSO 

That’s highly Brodskian. The point is, man has a surplus of energy which he has to dispose of. That surplus is simply life. There is no life without surplus. Whatever one does with that surplus, that decides the shape of a culture, of a life, of a mind. There were certain cultures that decided they had to offer it in some way. It is not clear to whom, why, and how, but that was the idea. There are other cultures, like ours, where all this is considered entirely useless and obsolete. In the secular world, sacrifice shouldn’t have any meaning at all. At the same time, you realize that it does, because the word has remained very much in use. In discussions of the economy, analysts speak all the time of sacrifices, without realizing what is inside the word. Even in psychological terms, sacrifice is a most usual word. It is considered illegal—for instance, if one celebrated a sacrificial ritual in the middle of London or New York, he would do something illegal, he would be put in jail. Sacrifice is connected to destruction—that is an important thing and the most mysterious one. Why, in order to offer something, you must destroy it. These are the themes of the last part of L’ardore

INTERVIEWER 

You have said that Lévi-Strauss was afraid of the notion. 

CALASSO 

He couldn’t deal with sacrifice, it destroyed his whole theory. I have much admiration for Lévi-Strauss, and I learned a lot from him. But there are certain things, like ritual and sacrifice, that made him nervous, because they disrupted the architecture of his thought. 

INTERVIEWER 

But Bataille tackled it. 

CALASSO 

Bataille is the opposite. Bataille wrote of sacrifice all his life. His best book on that was La part maudite, a very audacious work. But Bataille was not a rigorous thinker. He wrote too much and had a terrible habit—ressassement, endless repetitions. Yet in a way, he put the question at the center of everything. 

INTERVIEWER 

I think it is also central for you. Why is sacrifice so important? 

CALASSO 

Maybe it’s simply because sacrifice brings us into dealings with the unknown. In the act of sacrifice, you establish a relation with something that you recognize as enigmatic and powerful. Our collective psyche seems to have lost touch with it, although science is providing countless motives for being overwhelmed by the unknown. The unknown itself is in our own mind as well—our mind is in its largest part totally unknown to us. Therefore, it is not only a relation to the exterior world, it is a relation to ourselves. We establish a connection with the unknown through the act of giving something and, paradoxically, the act of destroying something. That is what is behind sacrifice. What you offer and what you destroy, it is that surplus which is life itself. (fonte)
Joseph Brodsky em 1967
*

Via a mim mesmo no declínio de uma vida inocente e desafortunada, a alma ainda repleta de sentimentos vivazes e o espírito ainda ornado de algumas flores, murchas pela tristeza e ressequidas pelos desgostos. Sozinho e abandonado, sentia chegar o frio das primeiras geadas, e minha imaginação esgotada não mais povoava minha solidão com seres criados por meu coração. Dizia a mim mesmo, suspirando: o que fiz neste mundo? Fui feito para viver, e morro sem ter vivido. Pelo menos não foi por culpa minha, e levarei ao criador de meu ser, se não a oferenda das boas obras que não me deixaram fazer, pelo menos um tributo de boas intenções frustradas, de sentimentos sadios tornados inócuos e de uma paciência à prova dos desprezos dos homens. (Rousseau, Os devaneios do caminhante solitário. Trad. Júlia da Rosa Simões. L&PM, 2011, p. 18-19).