domingo, 26 de agosto de 2018

De que amanhã...

Elisabeth Roudinesco: Gostaria de saber o que pensa sobre a famosa injunção lançada por Adorno, e retomada de múltiplas maneiras, segundo a qual não se poderia "mais escrever poesia depois de Auschwitz"*?

Jacques Derrida: Ela me parece impossível e inaceitável. Não apenas pode-se escrever, isto é um fato, mas talvez seja preciso escrever. Não para "integrar" a Shoah, para fazer ou ter êxito em "luto", para protegê-la ou cultivar sua memória, mas para atribuir um pensamento justo ao que aconteceu lá, e que permanece sem nome e sem conceito, único como outras tragédias únicas (e para as quais, como estava sugerindo há pouco, o nome grego de tragédia corre o risco de ser ainda inadequado - é ainda grego demais e nomeia também uma arte do teatro).

Chamo um pensamento justo um pensamento que se testa, a partir daí, a partir dessa singularidade sem norma e sem conceito para algo como uma justiça. Uma justiça a ser inventada. Como proteger algo que não se pode nem proteger, nem assimilar, nem interiorizar, nem classificar? Paradoxo da fidelidade ao outro: tomar consigo, guardar, recolher o todo outro sem que esse todo outro não se dissolva e não se identifique a si no si. Depois de Auschwitz, re-começar a pensar, começar a escrever de outra maneira em vez de não mais escrever, o que seria absurdo e passível da pior traição. De todo modo, em ambos os casos, isso é impossível, o Impossível. Afetados pelo que lá aconteceu, afetados sem nem mesmo ter que decidir nos deixar afetar, testemunhamos aquilo que não podemos nem esquecer nem lembrar. Por que a literatura, a ficção, a poesia, a filosofia deveriam desaparecer? Vê-se ainda menos por que esse testemunho teria força de veredito ou de condenação à morte: fim da história, fim da arte, fim da literatura ou da filosofia, silêncio. Uma "voz de fino silêncio", se ouço bem, parece nos instar, ao contrário, a re-começar de uma maneira toda outra. 

* Theodor Adorno lançou essa injunção em 1949: "Escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro, e esse fato afeta inclusive o conhecimento que explica por que se tornou impossível atualmente escrever poemas", in Prismes. Critique de la culture et de la société, Paris, Payot, 1986. Maurice Blanchot retomou a injunção de outra maneira: "Não pode haver relato-ficção de Auschwitz" e "Em qualquer data que possa ser escrito, todo relato será doravante anterior a Auschwitz", in Après-coup, Paris, Minuit, 1983.


(Derrida & Roudinesco, De que amanhã: diálogo, trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 164-165).

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O maratonista, um sonho

1) Em um dos contos da coletânea de Danilo Kis, Alaúde e cicatrizes (uma reunião póstuma de contos, com um aparato de notas e de contextualização que é, por si só, ficcional, imaginativo e digno de outro conto de Danilo Kis), intitulado "O maratonista e o juiz", um homem sonha. O homem sonha que corre uma maratona e que está à frente de todos, surpreendentemente não cansado - até que surge o juiz e ordena que ele pare; em seguida surge sua esposa e faz o mesmo pedido; ele acorda. O conto faz parte da ampla literatura já escrita em torno das relações entre o inconsciente e a violência ou, mais especificamente, o inconsciente e o totalitarismo (o maratonista acorda e descobrimos que ele está em um gulag soviético).
2) O primeiro ponto de contato possível é o romance Correr, de Jean Echenoz, sobre a história do maratonista Emil Zatopek, vigiado pelo mesmo regime do corredor de Danilo Kis. Um contato temático, contudo, que pode ser ampliado em direção à questão mais ampla acerca da relação do inconsciente com o totalitarismo - uma relação entre o fora e o dentro, entre o indevassável do indivíduo e um regime que busca pôr a nu todas as facetas da vida do indivíduo (e mais: como diante do totalitarismo o inconsciente também encontra o limite de seu paradoxo - sendo organizado por certas leis - as leis da linguagem, segundo Lacan -, ele ainda assim consegue dar conta de toda uma série, virtualmente infinita, de associações erráticas, libertárias, contraditórias, na contramão do totalitarismo, portanto).
3) Cito uma passagem de Slavoj Zizek na qual ele comenta o tema através de Adorno (assim como poderia também remeter ao livro Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt): "Adorno disse que o conhecido lema nazista Deutschland, erwache! [Alemanha, desperta!] significava seu exato oposto, na verdade: a promessa de que, se obedecermos a esse chamado, poderemos continuar dormindo e sonhando (isto é, evitando o encontro com o Real do antagonismo social). De certo modo, portanto, o trauma que encontramos no sonho é mais real do que a própria realidade (social externa)" (Alguém disse totalitarismo?, tradução: Rogério Bettoni, Boitempo).     

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Pérsia, Viena

1) O último romance de Joseph Roth, Die Geschichte von der 1002. Nacht, de 1939, é frívolo em sua superfície (bailes, prostíbulos, bebidas, oficiais do Exército, desfiles, cafés, etc) mas meticulosamente construído em sua duplicidade: o romance está continuamente fazendo referência a falsidades e disfarces, agentes secretos que observam pelos cantos, histórias que circulam pelas costas, figuras de cera que imitam personalidades reais, trocas de identidade e dinheiro falso. 
2) Nesse sentido, e mais uma vez, o romance de Roth é um comentário à frase de Marx sobre a repetição, a tragédia e a farsa (uma repetição e um comentário que vai de Hegel a Zizek e segue em movimento). Isso porque o Xá da Pérsia visita Viena duas vezes, no início e no fim do romance - e o colar de pérolas que dá de presente no início é recuperado no fim, e muitos personagens dizem que todo infortúnio começou com ele. Na leitura que faz Derrida da frase de Marx, por exemplo, a ênfase está no retorno dos espectros, dos fantasmas, que solicitam o olhar do presente em direção ao passado - algo recorrente também em Roth, em sua visão de mundo, pois para ele o Império Austro-Húngaro era um espectro sempre em dia, atualizável, tão exótico quanto a Pérsia parecia aos orientalistas do século XIX (ao levar o Xá à Viena do século XIX, Roth mescla esses dois ideias fictícios, o orientalismo e o monarquismo).
3) Roth publica o romance em 1939, já plenamente consciente da destruição que em breve começaria - que ele viveu de perto na Primeira Guerra Mundial e que colocou em tantos romances. Várias camadas de espectros rondam o romance de Roth, da Europa imediatamente pré-Hitler, até seus tempos de combatente na guerra, passando pelo Império que ele, Roth, conheceu na infância no extremo Leste do reino e, por fim, o auge do Império e de Viena durante a visita do Xá na segunda metade do século XIX. Técnica, reprodutibilidade e espetáculo também surgem no romance, primeiro com o carrossel no parque e, logo em seguida, com o museu de cera e o teatro de rua no qual se representa justamente a visita do Xá (a segunda visita é absorvida pela representação teatral da primeira visita - um jogo de espelhos).    

terça-feira, 7 de agosto de 2018

O colar de pérolas

1) Existe ainda certa dúvida sobre qual teria sido o último livro de Joseph Roth publicado em vida: ele morreu no dia 27 de maio de 1939, em Paris, e no mesmo ano é lançado seu romance Die Geschichte von der 1002. Nacht (que em espanhol recebeu o título La noche mil dos e que em inglês recebeu o título The String of Pearls). Exatamente um ano depois, em maio de 1940, com a invasão nazi da Holanda (onde havia sido publicado), toda a edição do livro foi destruída, tornando impossível precisar com exatidão em que momento de 1939 o livro surgiu (os detalhes de seu resgate posterior, mesmo com a destruição nazi, também é algo a ser investigado).
2) A questão do título é também fundamental, porque os dois disponíveis remetem a direções completamente diferentes: o título adotado pela edição em inglês faz referência ao colar de pérolas que é dado a uma prostituta que se faz passar por uma condessa para agradar o Xá da Pérsia durante sua visita a Viena em algum ponto no meio da segunda década do século XIX; o título original, contudo, leva em direção a uma reconfiguração irônica da tradição literária oriental, metonimicamente representada pela referência ao Livro das Mil e Uma Noites. Caberia uma leitura - na esteira tanto do pós-colonial de Said quanto da desconstrução de Derrida - atenta do modo como Roth tanto solicita o discurso do orientalismo como o desfaz e questiona a partir da própria base, como na cena em que dançarinos, em Viena, vestidos à moda "oriental" em uma exibição para agradar o Xá, lembram velhas fotografias vistas por ele na infância.
3) Em certo sentido, o título dado por Roth remete a esse orientalismo, sugerindo que o que está para além da história clássica, tradicional, é precisamente o atravessamento, a mistura entre oriente e ocidente - que no romance se dá com as visitas do Xá a Viena, uma no início, outra no fim do romance. O procedimento estrutural recorrente de Roth também está aqui: o Xá ocupa o primeiro plano nas 50 primeiras páginas do romance, e desaparece abruptamente - para dar lugar a dois personagens que gravitavam ao seu redor (o Barão que tem a ideia de transformar a prostituta em condessa e a própria mulher, inocente e desavisada, que recebe o colar de presente). 

sábado, 4 de agosto de 2018

Nikolai Brandeis

1) Muitos dos romances de Joseph Roth são semelhantes na forma: capítulos breves organizados dentro de seções mais amplas. Rebelião, por exemplo, de 1924, tem dezenove capítulos; Direita e esquerda (Rechts und Links), de 1929, um pouco maior, tem vinte capítulos, divididos em três seções. Os dois romances também repetem um procedimento recorrente em Roth: o aparecimento de um personagem, lá pelo meio da narrativa, que irrompe abruptamente e desvia a rota até então estabelecida para o protagonista ou protagonistas.
2) No caso de Rebelião, o corte acontece com o surgimento do burguês no bonde, que faz comentários raivosos acerca de Andreas Pum, o inválido de guerra sem uma perna que também está no bonde. No caso de Direita e esquerda, acompanhamos a história de Paul Bernheim, filho de um banqueiro que desde a infância está destinado ao sucesso - é bonito, refinado, agrada às mulheres e aos homens, vai estudar na Inglaterra, domina a conversação civilizada dos salões em uma variedade de assuntos, etc. Até o momento em que surge Nikolai Brandeis, um homem mais velho, de pele morena, muito alto e distinto, riquíssimo e vindo do Leste depois da Primeira Guerra Mundial. Ao contrário do burguês de Rebelião, que surge no meio da narrativa e some (deixando apenas os efeitos de sua intervenção sobre o destino de Andreas Pum), Brandeis surge e permanece, esquivo a princípio, mas aos poucos dando indícios de suas origens e passado.
3) "Eu ainda consigo lembrar o tempo em que Paul Bernheim prometia se tornar um gênio", é a primeira frase de Direita e esquerda, anunciada por um "eu" que não vai mais se manifestar (como se o romance tomasse lugar inteiramente na dimensão aberta por esse eu me lembro). Além disso, a narrativa se articula a partir dessa expectativa da genialidade de Paul Bernheim e sua manifestação duvidosa na vida futura. Eis outro tema forte em Joseph Roth: a articulação entre passado e futuro, entre expectativa e projeção (em outras palavras, o tema do messianismo, que vai ocupar, nos mesmo anos, Kafka, Walter Benjamin, Scholem e, mais adiante, Agamben, Sebald). Tal construção será utilizada novamente por Roth poucos anos depois em seu romance , de 1930 (um ano depois de Direita e esquerda, portanto), mas invertida: Paul Bernheim gera uma expectativa alta que é esvaziada com o passar da narrativa; Menuchim, por sua vez, o último filho de Mendel Singer, protagonista de , nasce deformado, epilético e retardado - mas carrega consigo a profecia de um rabino: tudo vai passar, "e como ele haverá poucos em Israel".