Eu me lembro, começa o livro de Julian Barnes, O sentido de um fim - e depois dessa frase, uma lista de elementos (objetos mas também situações, percepções, sensações) que o leitor não entende a função de imediato, mas que pouco a pouco aparecerão na narrativa.
A primeira coisa que me ocorreu quando li a primeira frase do livro de Barnes - depois de ler a lista das coisas lembradas e iniciar o conjunto de associações típicas de toda leitura - foi outro livro, o livro de Georges Perec lançado em 1978, Je me souviens, ou seja, Eu me lembro (o título em inglês do livro de Perec é exatamente o mesmo usado por Barnes na frase, I remember).
Esse começo de narrativa compartilhado por Barnes e Perec é intrigante. Ainda que Barnes não repita mais a fórmula I remember no início de uma frase, todo o romance é guiado e organizado a partir da rememoração dos elementos listados na primeira página. Perec, por sua vez, vai repetir a fórmula 480 vezes, sem, contudo, desenvolver narrativamente o mistério da memória (algo que faz, por outro lado, em W ou le souvenir d'enfance, de 1975).
Existe um contraponto interessante com relação ao uso da fórmula recorrente: se Perec usa o Je me souviens para posicionar de forma fixa um narrador que faz o leitor se mover pelo passado a cada fragmento (uma oscilação em direção ao passado que se dá a partir de uma posição fixa no presente), Antonio Tabucchi, por outro lado, usa também uma fórmula recorrente com a intenção inversa - me refiro ao romance Afirma Pereira, de 1994, que ao apresentar a narrativa no presente faz o futuro oscilar (cada novo capítulo é uma continuação da progressão de Pereira, que não se sabe onde vai dar - um tipo de indecisão narrativa que é usada também por Coetzee em Waiting for the Barbarians, de 1980).
O que é mais interessante no romance de Barnes - no que diz respeito à relação entre escrita e memória e, especialmente, essa memória que é posta em questão desde o início com a fórmula Eu me lembro - é o uso muito bem feito de escritas externas, alheias, que aparecem abruptamente e desviam a rota da rememoração do narrador tal como nos é apresentada. Em primeiro lugar, o diário de um amigo, que se suicidou 40 anos antes. Em segundo lugar, uma carta rancorosa e violenta escrita pelo próprio narrador de Barnes, 40 anos antes, mas que ele não se lembra de ter escrito. "Tudo o que eu podia alegar", escreve ele sobre a carta, "era que eu fora seu autor na época, mas que não era seu autor agora" (Julian Barnes, O sentido de um fim, trad. Léa Castro, Rocco, 2012, p. 105).
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