Em um texto de Theodor Adorno, "Educação após Auschwitz", fruto de uma conferência em 1965 e publicado em livro em 1969:
Milhões de inocentes – especificar os números ou regatear com eles já é indigno do homem – foram sistematicamente assassinados. Isso não deve ser tratado por ninguém como um fenômeno superficial, como aberração no curso da história, irrelevante em relação à grande tendência ao progresso, do esclarecimento da humanidade, presumidamente evoluída. Que tenha ocorrido é por si só expressão de uma tendência social extraordinariamente poderosa. Gostaria de referir-me a um fato relacionado a isto que, muito caracteristicamente, mal parece ser conhecido na Alemanha, embora tenha constituído o tema de um best-seller, Os quarenta dias de Musa Dagh de Werfel. Já na Primeira Guerra Mundial, os turcos – o assim chamado Movimento dos Jovens Turcos, dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha – promoveram o assassinato de bem mais de um milhão de armênios. Altas autoridades militares alemãs, e mesmo governamentais, sabiam-no obviamente, mas mantiveram estrito sigilo. O genocídio tem suas raízes nessa ressurreição do nacionalismo agressivo, ocorrida em muitos países, desde fins do século XIX. (Theodor W. Adorno, Palavras e sinais: modelos críticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis-RJ: Vozes, 1995, p. 105 (104-123)).
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Adorno afirma que, já na I Guerra Mundial, a Alemanha recebia uma sugestão de como agir, e essa sugestão vinha da Turquia. Obviamente, e isto está claro na frase final do trecho citado, a Turquia também desenvolvia uma prática, o genocídio, baseada no que captava no ar desde fins do século XIX. Estamos no mesmo terreno do “contra-sonho” de que fala George Steiner em No castelo do Barba Azul: a civilização colocando em prática seus sonhos de aniquilação:
É precisamente a partir da década de 1830 que se pode observar a emergência de um “contra-sonho” - a visão da cidade arrasada, a fantasia da invasão dos citas e dos vândalos, dos corcéis mongóis a matar a sede nas fontes dos jardins das Tulherias. Desenvolve-se uma estranha escola de pintura: quadros de Londres, Paris ou Berlim vistas como ruínas colossais, edifícios famosos queimados, saqueados ou localizados em uma desolação misteriosa entre restos esturricados e águas estagnadas. A fantasia romântica antecipa a promessa vingativa de Brecht, de que nada restará das grandes cidades exceto o vento que sopra através delas. Exatamente cem anos depois, essas colagens apocalípticas e esses desenhos imaginários do fim de Pompéia se transformariam em nossas fotografias de Varsóvia e Dresden. Não é necessário a psicanálise para sugerir o quanto havia de realização de desejos nessas sugestões do século XIX. (George Steiner. No castelo do Barba Azul: algumas notas para a redefinição da cultura. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 29-30).
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Ou seja, a primeira metade do século XX, com suas duas guerras mundiais, funcionou como uma grande celebração dos mais terríveis pesadelos produzidos por certa arte subterrânea do século anterior. A destruição que estava em forma de sonho despontou como realidade inapreensível. A segunda metade do século XX, a metade reservada para W. G. Sebald ou Orhan Pamuk (e para tantos outros: Primo Levi, Alexander Soljenitsin, Imre Kertész), funciona como um extenso período de elaboração e de trabalho sobre o trauma. A partir do colonialismo/imperialismo do século XIX (Edward Said, Cultura e imperialismo) e de suas leituras de Kafka ("Na Colônia Penal" mas também Amerika), Sebald chega aos escritos de Michel Foucault sobre o sistema penitenciário de controle e reúne todas essas referências na complexa argumentação de Austerlitz, e no trabalho da vida do protagonista: estabelecer as "relações de familiaridade" na arquitetura burguesa do séculos XIX e XX (nessa perspectiva, o projeto de Sebald em Austerlitz é semelhante àquele de Agamben em Homo Sacer, que é precisamente de averiguar a validade das premissas de Foucault no século XX).
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