quarta-feira, 9 de maio de 2018

Orarium, sudarium

Caderneta de Benveniste em campo de refugiados, Suíça, 1943
1) Erich Auerbach muito escreveu sobre o período de choque entre a doutrina cristã incipiente e o mundo antigo. Foi no "grande espírito" de Santo Agostinho, escreve ele, que esse choque melhor se evidenciou. "Talvez não seja exagerado dizer que foi ele quem deu à Europa o sermo humilis", escreve Auerbach, fazendo referência ao "discurso baixo", "popular", do cristianismo primitivo, "dessa maneira fundando, nesse domínio como em outros, a cultura medieval, lançando as bases desse realismo trágico, dessa mistura de estilos que, a bem dizer, só viria a se desenvolver muitos séculos mais tarde". O que está em questão é ensinar as profundezas da fé aos simples, usando para isso o próprio exemplo de Jesus, simultaneamente divino e humano, desprezado pelos poderosos, etc (Auerbach, "Sacrae scripturae sermo humilis", Ensaios de literatura ocidental, p. 27).
2) Agostinho se esforça em direção a uma confluência de seu passado como retórico e seu presente como Bispo, ou seja, tenta conciliar Cícero e os Evangelhos. O sermo humilis aperfeiçoado por Agostinho, escreve Auerbach, articula meticulosamente o sublime e o humilde, algo que alcançará seu ápice na Divina Comédia de Dante. As Confissões de Agostinho foram compostas por volta do ano 400; a Vulgata de São Jerônimo foi iniciada por volta de 382, com o intuito de aperfeiçoar a versão latina anterior da Bíblia, a Vetus Latina (uma coleção de fragmentos vários, de proveniências diversas e uma ampla variação no registro estilístico - como o próprio Agostinho comenta em De Doctrina Christiana).
3) No ensaio "Difusão de um termo de cultura: o latim orarium" (Problemas de linguística geral II), Émile Benveniste dá um exemplo preciso desse "choque" exemplificado por Agostinho de que fala Auerbach. Benveniste comenta as quatro passagens do Novo Testamento nas quais aparece a palavra grega soudarion, um empréstimo cujo original é o latim sudarium. A Vulgata, aponta Benveniste, usa a palavra latina sudarium nas quatro ocasiões. A Vetus Latina, contudo, tem uma solução distinta: em João 11, 44 (ressurreição de Lázaro), a Vetus Latina usa a palavra orarium, "que a Vulgata baniu para substituir pelo sudarium do texto atual". Continua Benveniste: "Entre os dois termos a diferença é de nível estilístico. Sudarium pertence à boa língua clássica (Catulo, Quintiliano); orarium devia ser mais comum, senão vulgar. (...) Pode-se ver na escolha de orarium pelos primeiros tradutores dos Evangelhos um reflexo do uso comum, e no sudarium pelo qual a Vulgata o substitui, a preocupação do bem falar" (trad. Ingedore Koch, p. 247-248).

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