"Não cabe a mim criticar meus juízes, quando menos porque sempre achei que eu estava recebendo mais do que justiça em suas mãos. Mas guardo a impressão de que seu interesse, infalivelmente simpático, atribuiu a influências raciais e históricas muito do que, a meu ver, concerne simplesmente ao indivíduo. Nada é mais estranho ao temperamento polonês, com sua tradição de autonomia governamental, sua visão cavalheiresca dos condicionamentos morais e um exagerado respeito aos direitos individuais, do que aquilo que se chama, no mundo literário, de eslavismo: para não falar do importante fato de que a mentalidade polonesa como um todo, por natureza, Ocidental, foi instruída por Itália e França e sempre se manteve historicamente simpática às correntes mais liberais do pensamento europeu, mesmo em questões religiosas. Uma visão imparcial da humanidade em todos seus graus de esplendor e mistério, juntamente com uma consideração especial em relação aos direitos dos desprivilegiados desta terra, não em qualquer base mística mas com base na simples camaradagem e na honrosa reciprocidade de serviços, foram a característica dominante da atmosfera mental e moral dos lares que abrigaram minha atribulada infância"
(Joseph Conrad, "Nota do autor", Um registro pessoal, trad. Celso M. Paciornik, Iluminuras, 1999, p. 163-164).
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1) Em primeiro lugar, é preciso atentar para a estratégia de filiação proposta por Conrad para si próprio. A "nota do autor" aos seus escritos memorialísticos, além do mais, é de 1919, cinco anos antes de sua morte e vinte e quatro anos depois da publicação de seu primeiro romance. Dada a relação historicamente difícil entre Rússia e Polônia (entre outros fatores, sobretudo psicológicos, temperamentais), Conrad recusa a etiqueta "eslavismo".
2) É curioso que, apesar de escrever em inglês, Conrad coloque nesse trecho a Itália e a França como nações "instrutoras" da Polônia - no caso da literatura, provavelmente com Flaubert no topo da lista, autor que inclusive é citado já na primeira página - no primeiro parágrafo - das memórias Um registro pessoal. Mais adiante no registro memorialístico, Conrad torna mais precisa a filiação e fala de Dickens e de sua intensa leituras dos romances, tanto em polonês quanto em inglês.
3) A menção aos "desprivilegiados da terra" é quase profética, tendo em vista toda uma parcela da fortuna crítica de Conrad, especialmente aquele em torno do Coração das trevas (as críticas de Chinua Achebe, por exemplo, ou mesmo o eco com Les Damnés de la Terre, o livro que Fanon publica em 1961). Essa fórmula faz pensar em Walter Benjamin e sua história dos vencidos (mas também pelo fato de Benjamin viver entre duas línguas, entre o alemão e o francês, no limiar da tradução assim como Conrad) mas também no uso que Sebald faz de Conrad em Os anéis de Saturno, aproximando sua obra e postura daquela de Roger Casement.
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