domingo, 11 de junho de 2017

Espectro e tradução

1) Também Marx resgata Shakespeare para falar da estranheza da língua, da língua como algo que assombra, que nunca é incorporada de todo. Harald Weinrich liga Shakespeare e Goethe na analogia do francês como língua da mentira. Derrida, do interior dessa língua, vai comentar em Espectros de Marx o 18 de Brumário de Marx, especialmente a parte na qual é dito que Lutero "adotou a máscara do apóstolo Paulo", assim como a Revolução de 1789-1814 "vestiu-se alternadamente como a República romana e como o império romano".
2) É possível aqui recordar que no ensaio que dedica a Lutero, Warburg lida com essa figura histórica ressaltando sua dimensão de tradutor e mediador cultural (como Erasmo, Lutero era um dos poucos a dominar o grego no século XVI, traduzindo o Novo Testamento para o alemão a partir de 1921, quando foi preso). Lutero como um operador da diferença tanto linguística quanto ideológica, um operador das passagens, das contaminações. "Por meio da mediação fiel pelas vias migratórias que levam o helenismo à Arábia, à Espanha, à Itália e à Alemanha", escreve Warburg, "os deuses planetários subsistiram em palavras e imagens como deidades vivas", e mais adiante: "O astrólogo da época da Reforma percorre esses dois extremos opostos - a abstração matemática e a vinculação cultual -, irreconciliáveis para o cientista natural de hoje, como pontos de inversão de um estado de alma homogêneo, primordial e de ampla oscilação" (Aby Warburg, A renovação da Antiguidade pagã, trad. Markus Hediger, Contraponto, 2013, p. 517).
3) De Paulo a Lutero, de Roma à França de Napoleão - uma questão de tradução para Marx, segundo Derrida. Continua Marx no trecho citado por Derrida: um principiante que aprende um novo idioma traduz as palavras novas para sua língua natal, "mas não consegue apropriar-se do espírito dessa nova língua e nela produzir livremente senão quando puder manejá-la sem apelar para sua língua materna, e até mesmo esquecer esta última". Derrida comenta: "a apropriação de uma outra língua figura aqui a revolução". Mas aquilo que deve ser esquecido segue sendo "indispensável": "tem-se de esquecer o espectro e a paródia, parece dizer Marx, para que a história continue". É preciso a medida exata de esquecimento, que indique tanto a fluência na nova língua quanto a presença do espírito da língua anterior (Jacques Derrida, Espectros de Marx, trad. Anamaria Skinner, Relume Dumará, 1994, p. 151).

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