1) Derrida comenta, em Espectros de Marx, que o "espectro" é, antes de tudo, a captação de uma frequência, "frequência de uma certa visibilidade, mas a visibilidade do invisível" (p. 138). Como no caso do espectro do pai em Hamlet, o exemplo principal de Derrida (junto com o Marx de A ideologia alemã), essa frequência se dá tanto no visível quanto no audível. Relaciona-se, assim, mais uma vez com Lutero, a quem recorre Marx (e também Warburg): enquanto traduzia o grego do Novo Testamento para o alemão do século XVI, Lutero tinha o hábito de percorrer as ruas e as feiras das cidades próximas para captar precisamente a frequência do alemão popular, heterogêneo, oscilante.
2) É possível notar a aproximação desse projeto de captação (espectral) da frequência da língua popular por parte de Lutero (1483-1546) e aquele outro projeto, análogo, de seu contemporâneo François Rabelais (1494-1553). A heterogeneidade da linguagem de Rabelais é o motivo central na carnavalização tal como proposta por Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Já comentei extensamente a predisposição que tinha Elias Canetti ao ato de ouvir, mas foi esse encadeamento Lutero-Rabelais que me fez pensar em As vozes de Marrakech, livro no qual Canetti relata seu abandono à escuta daquilo que não entende nas ruas e feiras da cidade marroquina (além de trazer essa palavra-conceito rica e complexa, Stimmung, justamente a frequência, o tom, Die Stimmen von Marrakesch).
3) "O que há na linguagem? O que ela esconde? De que ela nos priva?", pergunta Canetti, e continua: "Durante as semanas que passei no Marrocos, não tentei aprender nem o árabe nem as línguas berberes. ão queria perder nada da força de seus gritos estranhos. Queria me expor aos sons em si mesmos, sem diluir nada por obra de um conhecimento insuficiente e artificioso. Não lera nada sobre o país. Seus costumes me eram tão desconhecidos quanto as suas gentes. O pouco que, ao longo da vida, se ouve dizer sobre um país e um povo caiu por terra logo nas primeiras horas" (As vozes de Marrakech - anotações sobre uma viagem, trad. Samuel Titan Jr, Cosac Naify, 2006, p. 25).
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