sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Transatlânticos


1) Onde termina uma coisa e começa outra? Um problema de fronteiras, limiares, pertencimentos, etc. É disso que trata Ricardo Piglia quando propõe a inclusão de Gombrowicz no cânone da literatura argentina do século XX - ao falar "sobre o romance argentino", em 1986, Piglia fala do "romance polonês", de Transatlântico, "um dos melhores romances escritos neste país" (está em Formas breves): "Arl, Macedonio, Gombrowicz. O romance argentino se constrói nesses cruzamentos. O romance argentino seria um romance polonês: quero dizer, um romance polonês traduzido para um espanhol futuro, num café de Buenos Aires, por um bando de conspiradores liderados por um conde apócrifo" (p. 69).

2) O romance de Gombrowicz, escrito em Buenos Aires, foi publicado em 1953 em Paris, pelo Instytut literacki. A trama é muito próxima aos eventos da vida de WG: durante e logo após a II Guerra Mundial, Witold, um escritor polonês, conta de sua vida perdido na Argentina, sem dinheiro, sem perspectivas. O ano de 1953 acaba marcando outro ponto de convergência, paralelo ao romance de Gombrowicz: é o ano da viagem de Wilcock à Inglaterra, iniciando o percurso que leva ao seu estabelecimento definitivo na Itália a partir de 1957 (em seu Wilcock - os trechos de seus diários dedicados a ele -, Bioy Casares informa que Rodolfo viajou em 24 de maio de 1957).

3) Gombrowicz nasce em 1904, morre em 1969; Wilcock nasce em 1919, morre em 1978; aquilo que o primeiro escreveu em polonês faz parte da literatura argentina tanto quanto aquilo que o segundo escreveu em italiano (com eles, nessa década de 1950, se encerra também a preponderância dos navios nas viagens, algo que aparece também no relato de Thomas Mann sobre sua "travessia com Quixote", por exemplo - alguns relatos marcam 1958 como o ponto de transformação, com as operações da BOAC – British Overseas Airways Corporation entre Londres e Nova York).

domingo, 26 de dezembro de 2021

A grande abóbora



1) A frase de abertura de Entre los indios, de César Aira (história que leva a data 4 de maio de 2012 no final), registra a aparição do demoníaco entre os índios: La cabeza de Pillán (el diablo) asomaba lentamente de la tierra, como un gran zapallo, apartando piedras y pasto con un rumor de derrumbe. O efeito em cascata das referências que nos levaram até este ponto: estamos em plena evocação daquilo que é soterrado e ressurge, dos "frutos terrestres" (o poema em prosa que André Gide escreve em 1895, publica em revista em 1896 e em livro em 1897, espécie de "contracanto" alegre ao De Profundis de Oscar Wilde, escrito na prisão em 1897).

2) O diabo surge da terra como un gran zapallo, como uma abóbora, um fruto a ser colhido, repartido, compartilhado e consumido - como na cena da gravura do século XIII, presente em uma Bíblia judaica conservada na Biblioteca Ambrosiana de Milão, citada por Agamben no primeiro capítulo de O aberto, mostrando o banquete depois do Juízo Final, quando será servido o Leviatã aos convidados, cada um com uma coroa na cabeça, cabeças de animais por baixo das coroas. A irrupção do demoníaco - como em Grünewald ou Bulgakóv - serve também de ensejo para a criação de uma fábula sobre a irrealidade da realidade, com ênfase na capacidade de um determinado indivíduo de perceber tanto o fantástico quanto a capacidade desse fantástico de passar ignorado pelo restante do mundo (é o inframince duchampiano que Aira faz circular na ficção). 

3) A aparição de Pillán, anjo caído, como abóbora, como "fruto da terra", faz parte daquela conexão alto/baixo, serpente/raio, de que fala Warburg no Ritual da serpente (a "aparição" deve necessariamente tomar as feições dos frutos da estação, daí a importância da conjunção astronômica e da crítica pós-colonial: onde e quando, exatamente, aparece esse demônio?). O dispositivo do demônio que sai da terra é também aquele que garante o inesperado da ficção: é impossível saber com certeza os desdobramentos desse "fruto", desse "dom" - como acontece com as pedras preciosas que vem das entranhas da terra em Leskov ("Alexandrita"), ou os corais das profundezas do oceano em Joseph Roth (O Leviatã, 1938).

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

O salto


Durante seu longo comentário sobre Hegel em Meta-História, Hayden White interrompe o fluxo homogêneo da argumentação para estabelecer um paralelo com Paul Valéry (um salto de 100 anos), reiterando sua filiação intelectual com a cena modernista: a história "ensina precisamente nada", afirma Valéry "num tom muito mais amargo quase um século depois" de Hegel, escreve White. Hegel teria dado ênfase ao "precisamente" e não, como fez Valéry, ao "nada", continua White. O ensinamento da história, portanto, não está naquilo que é "preciso" em cada relato, mas nas "transformações da consciência" geradas pelas tentativas de construir os relatos (p. 113).

Valéry retorna rapidamente na argumentação de White algumas páginas depois, já no capítulo dedicado a Michelet. White traz o exemplo de Heine, que, "no exílio em Paris", inicia "uma ofensiva contra o saber acadêmico" engessado que seria seguida por Marx e Nietzsche, culminando na última década do século "numa revolta generalizada de artistas e cientistas sociais contra o fardo da consciência histórica em geral" (p. 150). Heine precede Nietzsche em sua defesa dos "direitos da vida" no presente diante das "pretensões do passado morto", um "ataque que correu o risco de se tornar um clichê na literatura dos anos de 1880 (Ibsen), 1890 (Gide, Mann) e no início da década de 1900 (Valéry, Proust, Joyce, D. H. Lawrence)" (p. 151).

domingo, 19 de dezembro de 2021

A ilha dos filósofos

"Eu me pergunto se se poderia conseguir criar um contato num caso simulado onde, digamos, quatro filósofos ingleses de primeira linha e quatro filósofos franceses de primeira ordem [quem define a "primeira linha", a "primeira ordem"?] fossem enviados para uma ilha deserta durante pelo menos três anos e fossem obrigados a falar entre si sobre questões filosóficas (não tenho nenhuma dúvida de que começariam a fazê-lo, mas seria preciso convencê-los a persistir a despeito de todos os obstáculos). Então, caso um deles não compreendesse o outro, se queixasse e não quisesse mais fazer concessões, poder-se-ia simplesmente pedir-lhes, como uma proeza, que tentassem falar na língua do outro. 

Não é possível provocar uma comunicação a não ser por uma crítica sistemática inteligível para pessoas que falam línguas diferentes. A tarefa mais difícil para os filósofos dos diversos campos é a da tradução. Talvez seja um caso sem esperança. Mas recuso-me a ser pessimista [uma afirmação que se desfaz em contradição naquilo que diz no final, ao comentar seu "condicionamento", como se fosse o cachorro de Pavlov]

Eu realmente compreendi o significado do que Kojève dizia a respeito de seu Hegel marxificado, e a propósito de Marcuse também. Muito embora nos tornássemos amigos e falássemos de música e de uma porção de outros assuntos, não consegui compreender uma palavra dos escritos filosóficos de um Theodor Adorno, que se admira muito na França, pelo que me disseram; nem, eu o confesso, de alguém próximo de meu amigo Alan Montefiore, Jacques Derrida [sempre o alvo preferido quando se trata de "incompreensão", o que não deixa de ser irônico tendo em vista que a filosofia de Derrida é a da "escuta" e a da "abertura ao outro" (e da tradução) por excelência]. Deve-se isto, provavelmente, ao meu condicionamento filosófico, do qual não posso me desfazer devido à minha idade avançada. No que me concerne, temo que não haja esperança" (Isaiah Berlin: com toda liberdade - entrevistas com R. Jahanbegloo, trad. Fany Kon, Perspectiva, 1996, p. 77-78).

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A incerteza


1) Ao comentar, em seu livro Meta-História, a obra dos "quatro mestres" da "escrita histórica" do século XIX (Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt), Hayden White enfatiza como se trata de uma questão de "autoconsciência" por parte de quem escreve: poucos estavam "sensíveis ao elemento poético presente em todos os esforços de descrição narrativa", escreve ele, Droysen, Hegel e Nietzsche, "mas por poucos outros". É preciso deixar de lado - recalcar - qualquer "resíduo conceptual significativo" ou qualquer "preformação ideológica dos materiais", deixando a a história falar por si própria (p. 153). 

2) O apego à possibilidade de eliminar todo "resíduo conceptual" é tão insistente que alcança um autor como W. G. Sebald, que em sua entrevista com James Wood em julho de 1997 (publicada na revista Brick) afirma o seguinte: I think that fiction writing, which does not acknowledge the uncertainty of the narrator himself, is a form of imposture and which I find very, very difficult to take. Any form of authorial writing, where the narrator sets himself up as stagehand and director and judge and executor in a text, I find somehow unacceptable. I cannot bear to read books of this kind. Retorna, no discurso e na poética de Sebald, a preocupação com os "modos de consciência" ativados na escrita da história. 

3) Ao analisar os Cursos sobre Estética de Hegel, Hayden White aponta que seu estudo da poesia começa por um exame da linguagem como "instrumento de mediação do homem entre sua consciência e o mundo"; prosa e poesia se diferenciam pelos "modos" diversos de apreensão do mundo, com o drama surgindo como um terceiro termo, dedicado a conceber a "modalidade do movimento": nesse ponto, continua White, Hegel analisa a história "como a forma de prosa mais próxima, por sua imediatez, da poesia em geral e do drama em particular. De fato, Hegel não só historicizou a poesia e o drama como também poetizou e dramatizou a própria história" (p. 102). Em suma, para Hegel, a história é uma "forma de arte literária" (p. 154), pois é só ao acessar a consciência de sua ficção/fabricação que a história se torna um "tipo particular" de proposição acerca do mundo.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Beckett, 1961


Um volume publicado em 1998 reúne parte dos vários escritos esparsos de Harold Pinter, Nobel de Literatura em 2005: intitulado Various Voices. Prose, Poetry, Politics, cobre o período de 1948 a 1998. Dois dos textos são dedicados a Samuel Beckett, o primeiro de 1954, intitulado "Samuel Beckett", e o segundo de 1990, intitulado "A Wake for Sam", um tributo televisionado pela BBC. "Quanto mais ele esfrega meu nariz na merda, mais grato sou a ele", escreve Pinter sobre Beckett em 1954 (lembrando que Esperando Godot foi publicada em setembro de 1952 e apresentada pela primeira vez em janeiro de 1953). He leaves no stone unturned (p. 55).

No tributo de 1990, Pinter diz que só conheceu Beckett em 1961, em Paris: "ele foi extremamente amigável". Eu não imaginava que ele dirigisse tão rápido, escreve Pinter: "com seu pequeno Citroën ele me levou de bar em bar ao longo da noite, sempre muito veloz". Pararam finalmente às quatro da madrugada em um lugar em Les Halles onde tomaram sopa de cebolas. "Eu estava de tal forma sobrecarregado", escreve Pinter, "que deitei minha cabeça na mesa". Quando levantou, Beckett não estava mais lá - "talvez tenha sido tudo um sonho", pensa Pinter. Quase uma hora depois ele vê Beckett retornando com uma sacola: "Percorri toda a cidade atrás disso, finalmente encontrei", diz Sam. Dentro havia uma latinha de aspirinas, escreve Pinter, which indeed worked wonders (p. 56). 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Benjamin, Valéry


1) Ao comentar Baudelaire e o século XIX (a lírica, o capitalismo, a vida nas grandes cidades), Walter Benjamin estabelece um elo entre o autor das Flores do mal e o autor do Cemitério marinho, ou seja, Paul Valéry. Para Benjamin, Valéry retoma a tarefa de descrever a discrepância entre "vida natural" e "arte", salientada exponencialmente pela transformação nas "técnicas" de captura do real e produção das artes (parte dessa ruptura está sendo descrita também por Heidegger, mais ou menos na mesma época, até culminar em Ser e tempo, de 1927 - Le Cimetière marin é de 1920).

2) Em Benjamin, Valéry aparece como um atualizador das intuições de Baudelaire: tanto sua poesia quanto suas reflexões sobre as "crises" do "espírito" indicam uma insuficiência do humano diante da proliferação de dispositivos, técnicas e tecnologias - como a arte pode operar como uma sorte de estação de gravação de estímulos? Como uma sorte de arquivo de inscrições que já não passam pela subjetividade criadora para existir, mas pela pura troca de emissões organizada entre os dispositivos e a partir dos dispositivos? A essa primeira triangulação - Baudelaire/Valéry/Benjamin - corresponde uma segunda, posterior, Foucault/Deleuze/Agamben, que organizam algumas das relações entre dispositivo e criação.

3) Algo na experiência de leitura da obra de David Markson passa por esses elementos. Seus "romances" não são apenas feitos de fragmentos que desafiam o gesto automático do leitor de "fazer sentido" (de articular em um todo provisório a manifestação dos fragmentos); em paralelo a isso, Markson também torna o sujeito do fragmento "fantasmático" ou "espectral", sem fundo ou substância (cuja materialidade é a bobina da máquina de escrever ou a caixa de sapatos onde guardava as fichas antes da montagem-transformação em "romance"). Antes de remeter a uma voz autoral centralizada, os fragmentos de Markson remetem à própria disposição do fragmento na página, ao movimento de arquivamento desses fragmentos em um todo nunca realizável ou atualizável, sempre em devir, em processo.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Monsieur Wilde

"Em 1891, quando Oscar Wilde era o que Paris chamava 'le great event', ele conheceu Proust, que o convidou para jantar. Na noite em questão, Proust chegou em casa com alguns minutos de atraso. 'O cavalheiro inglês está aqui?', ele perguntou ao criado. 'Sim, senhor, ele chegou cinco minutos atrás; ele mal tinha entrado na sala quando perguntou onde ficava o banheiro, e ainda não saiu de lá'.

Proust correu para o final do corredor. 'Monsieur Wilde, o senhor está passando mal?', o anfitrião ansioso perguntou da porta. 'Ah, aí está o senhor, Monsieur Proust', Wilde respondeu, aparecendo majestosamente. 'Não, eu não estou nem um pouco doente. Achei que ia ter o prazer de jantar sozinho com o senhor, mas me levaram para a sala de visitas. Eu olhei para a sala e no fundo estavam os seus pais, e me faltou coragem. Até logo, meu caro Monsieur Proust, até logo...' Depois, os pais de Marcel disseram a ele que, examinando a sala de visitas, Wilde tinha exclamado: 'Como a sua casa é feia!'"

(Julian Barnes, O homem do casaco vermelho, trad. Léa Viveiros de Castro, Rocco, 2021, p. 155)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Jogos


Em suas Philosophical Investigations - livro póstumo publicado em 1953 -, Ludwig Wittgenstein defende a ideia de que não é possível (ou recomendável) pensar isoladamente o significado das palavras: as palavras atuam dentro de jogos linguísticos, colocando em movimento certas formas de vida; são esses "jogos" e essas "formas de vida" que devem ser investigados. O que faz a linguagem quando é usada em determinada situação, para além do estrito significado de cada palavra e frase? A combinação dos termos e o posicionamento desses termos dentro de um "jogo" (um contexto, uma situação de troca, diálogo, exposição) extrapola o significado dicionarizado de cada termo capturado individualmente (the meaning of a word is its use in the language, seção 43).

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Todo uso da linguagem está inserido em um jogo, que repercute por sua vez na organização de uma forma de vida - o uso da linguagem está ligado ao modo como se vê o mundo e como se descreve seus processos e elementos. Duchamp, por exemplo, a partir de 1914, define "objetos cotidianos" (pá de tirar neve, escorredor de garrafas) como "obras de arte", agindo tanto sobre os termos como sobre os objetos, mas deixando claro desde o início que tal operação não funciona em qualquer momento, em qualquer contexto, diante de qualquer comunidade (o procedimento de Duchamp não pode ser simplesmente "repetido": é preciso que palavras, objetos, jogos linguísticos e formas de vida estejam na conjunção precisa para que a "mágica" aconteça).

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Trovão

No Finnegans Wake, James Joyce inventa uma palavra de cem letras que aparece de quando em quando, em intervalos regulares: ela "representa" os trovões, o início do mundo, a recorrência dos ciclos naturais e também o som que faz a cabeça do protagonista ao ser fraturada por conta de uma queda da escada. "Nos livros de Joyce, o trovão é sempre a voz do Deus colérico. Em Ulysses, ele troa quando os estudantes na maternidade zombam das forças da vida. A linguagem usada é repleta de terror primitivo (...) Joyce mesmo sempre tremeu com o troar do trovão e, a quem lhe perguntava por quê, respondia: Você não foi criado na Irlanda católica" (Burgess, Homem comum enfim, trad. José Antonio Arantes, Cia das Letras, p. 29).

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O Vico da Ciência Nova afirma que o trovão marca a origem da linguagem e do pensamento: o abrupto ruído gera o temor e o temor gera a elaboração cultural (a linguagem, o pensamento), estratégia de sobrevivência, de familiarização do temor (pela via das metáforas, que aproximam o humano do "divino" - criado pelo próprio humano - pois dão vida ao inanimado (a própria ideia de "dar vida" já é uma metáfora, mostrando o inexorável ciclo dos corsi e ricorsi). 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O lado de cá da foto



1) Uma passagem interessante de The Lazarus Project, de Aleksandar Hemon, seu único romance, publicado originalmente em 2008 (mesmo ano de Man in the Dark, romance de Paul Auster que também comenta a relação entre imagem e violência, fazendo referência à gravação de uma decapitação no Iraque): o narrador, um refugiado de Sarajevo que mora há muitos anos em Chicago (exatamente como Hemon, embora não seja esse seu nome), ganha uma bolsa para escrever um livro e vai ao Leste Europeu com seu amigo fotógrafo, Rora (todo capítulo do romance de Hemon inicia com uma imagem, parte delas retirada dos arquivos da Chicago Historical Society, parte delas de autoria de Velibor Božović, que o leitor imagina ser o "modelo" para o personagem Rora).

2) No fim de um dos capítulos, quando o narrador e seu amigo fotógrafo já estão em viagem, o primeiro conta ainda mais detalhes acerca de sua dinâmica doméstico-familiar, suas brigas com a esposa e, nesse caso específico, uma discussão que tiveram sobre as imagens de tortura em Abu Ghraib (ele escandalizado, ela contemporizando de sua perspectiva de "estadunidense pura"). Depois de um longo parágrafo sobre as desavenças do casal, o narrador corta o fluxo abruptamente e inicia um novo parágrafo (o último do capítulo) da seguinte forma: "Rambo gostava principalmente que eu tirasse fotos dele com os mortos para depois ficar olhando para elas, Rora disse. Ele ficava excitado - aquilo era o pau duro dele, o seu poder absoluto: estar vivo em meio à morte. Tudo se reduzia a isso: os mortos estavam errados, os vivos estavam certos. Todo mundo que já foi fotografado ou está morto ou estará. É por isso que ninguém tira foto de mim. Quero ficar do lado de cá da foto" (na tradução brasileira, p. 197). 

3) Rambo é um dos "caudilhos" da Guerra da Bósnia, a quem Rora se refere continuamente ao longo do romance (contribuição à análise da "personalidade autoritária", de Sarmiento e Adorno). Apesar de breve, a reflexão de Rora é interessante em dois aspectos: o modo como, de forma condensada, liga a fotografia à morte, como fizeram Benjamin, Sontag e Barthes; o modo como relaciona o registro visual dos mortos ao "poder absoluto" e à "excitação", como "estar vivo em meio à morte" é central para a manutenção da autoridade, algo que está no cerne da argumentação de Elias Canetti em Massa e poder, por exemplo, quando fala do "detentor do poder como sobrevivente" e da "aversão dos poderosos pelos sobreviventes", ou ainda dos "mortos como aqueles aos quais se sobreviveu".  

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Revelações


1) Em seu breve livro sobre Vico, Peter Burke diz que é significativo não apenas o que Vico leu, mas também como leu: Burke afirma que Vico desenvolveu um método de leitura "nas entrelinhas", atentando não apenas para aquilo que era "intencionado" pelo texto mas também buscando as "revelações involuntárias" dos autores (entre parênteses, Burke afirma que a expressão "revelações involuntárias" vem de um ensaio de Alessandro Manzoni dedicado a Vico). A obra de Homero é integralmente revisada por Vico a partir desse método, aplicado de forma "integral, autoconsciente e sistemática": Vico busca em Homero o que é "incidental" e "inconsciente", tomado como fonte não da "história de eventos", mas "para a história dos costumes e das crenças" (p. 86).

2) Vico busca em Homero, continua Burke, a "massa de informação sobre a sociedade grega da idade heroica", como combatiam, festejavam, reuniam assembleias... "Os poemas homéricos também revelam um modo de pensar próprio da idade heroica, um modo de pensar de que o poeta não podia ter consciência - pois a falta de autoconsciência é uma das principais características desse modo de pensar". Em seu texto sobre o escritor argentino e a tradição, Borges fala que o autor do Corão, seguro de sua condição de árabe, não menciona a palavra camelo. A legitimidade do Corão está em sua feição enviesada, oblíqua: o camelo está ausente não por ser banal aos árabes, mas por ser esteticamente desnecessário, e mais: por ser esteticamente perigoso, podendo dar uma dimensão postiça a um texto que se pretende eterno. 

3) A leitura nas "entrelinhas" de Vico é um dos elementos de base para a leitura dos "sinais" reveladores de Carlo Ginzburg, sua reivindicação do "paradigma indiciário". Em outubro de 2020, Ginzburg dá o título de Rivelazioni involontarie. Leggere la storia contropelo para sua aula inaugural na Università di Padova, uma fórmula que não só retoma o dito de Manzoni sobre Vico ("revelações involuntárias") como o encaixa na reflexão de Benjamin (a "história a contrapelo" das teses). O livro mais recente de GinzburgLa lettera uccide, lançado pela Adelphi em outubro de 2021, além de incorporar a aula de Padova, deixa claro que se trata, mais uma vez, de estabelecer um método de leitura dos detalhes: na introdução do livro, Ginzburg afirma que ao longo do tempo se dedicou ao "close reading de casos anômalos, distantes de qualquer cânone".

domingo, 14 de novembro de 2021

Igual, diferente


1) Para Vico, a metáfora garante que o pensamento e a linguagem estejam inseridos na história: a possibilidade de transformação na referência da linguagem ao mundo é garantia de que o mundo se transforma tanto quanto a linguagem (um dos principais pontos de discordância com Descartes, que recusava o metafórico e o histórico em prol de uma unidade pretensamente neutra do ideal científico). A metáfora inscreve na experiência um permanente paradoxo temporal: a metáfora é sempre mobilizada no presente da performance linguística e, ao mesmo tempo, carrega consigo energias arcaicas que dizem respeito à origem do mundo, do pensamento e da linguagem (como no mote ao redor do qual Ben Lerner organiza o romance 10:04: "tudo igual, só um pouco diferente").  

2) As "margens da filosofia", comentadas por Derrida no texto “A mitologia branca”, estão contidas nas metáforas que fabricam os enunciados filosóficos e contêm as figuras que dão feições específicas ao pensamento. As metáforas cobrem todo o dizer filosófico, instantâneos do encontro do conceito com criação, e, segundo Derrida, configuram duplo registro: expandem vertiginosamente a trama da argumentação, encobrindo sua arbitrariedade mediante um jogo linguístico de naturalização. 

3) Escreve Derrida: "o sentido visado através destas figuras é uma essência rigorosamente independente do que a transporta, o que é já uma tese filosófica, poder-se-ia mesmo dizer a única tese da filosofia, aquela que constitui o conceito de metáfora, a oposição do próprio e do não próprio, da essência e do acidente, da intuição e do discurso, do pensamento e da linguagem, do inteligível e do sensível, etc". (Jacques Derrida, Margens da Filosofia. (1972). Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991, p. 270).

terça-feira, 9 de novembro de 2021

O ímã ama o ferro


1) Isaiah Berlin insiste na importância de "separar o joio do trigo" na obra de Vico, separar os momentos de arroubo fantasista dos momentos de genialidade e originalidade. O trabalho é difícil muito por conta da ambivalência dos escritos de Vico, seu estilo barroco, a reiteração por vezes contraditória das ideias (uma auto-aplicação das noções de corsi e ricorsi, da evocação espiralada da história, talvez). Vico refuta a ideia da tradução sem resíduos e, ao mesmo tempo, defende o caráter incontornável das traduções, das passagens, das adaptações, reiterações, repetições (não tanto do conteúdo daquilo que está sendo traduzido, mas o imperativo do próprio gesto tradutório: a matéria se transforma (nem tudo que está no grego pode estar, ipsis litteris, no latim), mas o gesto de promoção da transformação é sempre o mesmo).

2) Existem similaridades, ecos e paralelos, mas não uma identidade central que permaneça através dos tempos e espaços (Vico rejeita o princípio "iluminista" das verdades eternas e inalteráveis, e também o idealismo "neoplatônico" de parte dos renascentistas; embora reconheça, de forma ambivalente, a atuação de uma força divina superior). É o que permite que, para Vico, Dante seja uma espécie de novo Homero, sem que sua obra seja, de fato (sem resíduos ou sem diferença), uma repetição da épica grega: são duas épocas dominadas pelos "sacerdotes"; os deuses do Olimpo são substituídos pelos santos cristãos; a linguagem poética é mobilizada como instrumento de coesão comunitária, para além da centralidade institucional (a passagem do latim para o vulgar em Dante; a aglutinação de diversas experiências "regionalistas" visando um todo "grego" em Homero).

3) Com Vico também ganha destaque uma noção muito particular de "filologia", ou seja, a percepção de que a história da linguagem é a história dos indivíduos que usam a linguagem, que já não é mais pensada como algo estático e imutável, e sim cambiante, oscilante, feita de camadas heterogêneas de sentido. O modo de utilizar a linguagem tem repercussões sobre o modo de organização da religião, do direito, da vida social, da organização militar, dos laços familiares e assim por diante (quando encontra uma expressão como "o ímã ama o ferro", Vico reflete que não necessariamente isso indica um uso metafórico ou "poético" da linguagem - é preciso entender o contexto geral da língua dentro do qual se insere essa expressão específica, que pode ser corriqueira, banal).  

domingo, 7 de novembro de 2021

O pioneiro


"A Autobiografia [de Vico] é um registro interessante e dinâmico da vida de um homem completamente voltado para as questões filosóficas. (...) Ele viveu em uma pobreza amarga, teve pouco contato com a vida que o rodeava e, durante toda a sua existência, como resultado de uma queda sofrida na infância, foi um aleijado. Seu filho mais velho foi um criminoso; toda sua devoção foi dedicada a seu filho mais jovem, para o qual conseguiu assegurar a sucessão de sua cadeira de professor. Depois deste filho, o que mais amava era sua biblioteca. Da mesma forma que Maquiavel, ele escapava das suas misérias refugiando-se no mundo dos livros (...). Toda a sua vida careceu daquilo que é mais caro para um sábio, calma e tranquilidade. Era um sábio tímido, obsequioso e perseguido pela pobreza e ansiedade, que escreveu demais e depressa" (p. 25).

"A história, para Vico, era a progressão ordenada (guiada pela Providência atuante através das capacidades dos homens) de tipos sempre mais profundos de compreensão do mundo, de formas de sentir, atuar e expressar-se, cada uma das quais se desenvolve a partir da anterior, à qual substitui. A cada tipo ou cultura pertencem, necessariamente, algumas características que não é possível encontrar em qualquer outra. Assim começa a concepção da 'fenomenologia' da experiência e atividade humana, da história dos homens e da vida, conforme determinada pela sua própria moldagem, no início inconsciente e, a seguir, progressivamente mais consciente, ou seja, pelo domínio da natureza tanto morta como viva. Na forma que lhe deram Marx, Hegel e os seus seguidores, esta ideia domina o mundo moderno, e é por isso que Marx elogiava Vico. Para melhor ou para pior, ele foi o pioneiro desta visão dos homens e da história" (p. 45).

(Isaiah Berlin, Vico e Herder, trad. Juan Sobrinho, Ed. UnB, 1982)

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Uma encomenda


Em conversa recente dedicada exclusivamente a Ricardo Piglia, Alan Pauls relembra a época em que primeiro entrou em contato com o escritor, através de Josefina Ludmer e de seus cursos de teoria literária dados em casa. Uma das coisas interessantes que fala Pauls diz respeito a uma viagem que faz à Europa por volta de 1978 ("aquelas viagens de dois meses que se fazia na época", diz ele). Um de seus principais objetivos na viagem era comprar para Piglia uma cópia do livro de "Jurij Tynjanov", naquele momento só encontrável na Itália, intitulado Avanguardia e tradizione, provavelmente nessa edição de 1968 aqui reproduzida (e ainda disponível para compra, por incrível que pareça): parte da graça da viagem estava em "poder voltar a Buenos Aires e dar o livro a Piglia", diz Pauls.

A ideia de que uma viagem possa ser resumida à busca por um livro, um livro para um amigo (um amigo mais velho, uma espécie de modelo, alguém que lê os contos de Pauls quando ele ainda não é Alan Pauls), o livro de um "formalista russo" que, de resto, era e continuará sendo importante para a poética de Piglia, um autor que aparece tanto em seus ensaios quanto em sua ficção: Tinianov dedica um ensaio inteiro ao problema da "evolução literária" e Ricardo Piglia dá a ele os créditos da filiação "tio-sobrinho", em Respiração artificial: Alguien, un crítico ruso, el crítico ruso Iuri Tinianov, afirma que la literatura evoluciona de tío a sobrino (y no de padres a hijos) (p. 21 da edição Seix Barral). (A ideia, contudo, vem de Chklóvski, como mostrei aqui).

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Norte


Ainda nas conversas com Volkov, Brodsky comenta extensamente as agruras de sua vida e das vidas dos outros - exílio, prisão, doenças, mortes de familiares, perseguição política e assim por diante. Marina Tsvetaeva, por exemplo, sofreu muito por conta do marido Sergei Efron, "espião durante os anos de opressão de Stálin", e que descobriu "que há muito a aprender na catástrofe" (p. 45). Uma vez Susan Sontag disse, diz Brodsky, "que primeira reação diante da catástrofe é perguntar: Qual foi o erro? O que deve ser feito diferente?". Mas Sontag ainda diz que há outra alternativa, outro comportamento possível: "deixar a tragédia atropelar você"; "se você conseguir retornar depois disso, será uma pessoa diferente. O princípio da fênix, poderíamos dizer; eu frequentemente lembro dessas palavras de Sontag" (p. 45).

Ainda na Rússia, depois de condenado como elemento indesejado, Brodsky é enviado para o norte em um "vagão de transporte" que era "um inferno sobre rodas", "algo saído diretamente de Dostoiévski ou Dante", homens amontoados com merda e mijo por toda parte (p. 75). Observando o norte, "o frio, a cidadezinha, a terra", Brodsky entra em contato com as "noites brancas": "elas introduziram para mim um elemento de absurdo total, pois iluminavam muito algo que definitivamente não merecia ser iluminado"; "eu sempre digo que se você imaginasse a cor do tempo, provavelmente seria cinza. Essa é a principal impressão visual e sensação que você adquire no Norte" (p. 77). 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Toca o telefone


Um ponto decisivo nas conversas de Joseph Brodsky com Solomon Volkov diz respeito à troca de idiomas: a passagem que Brodsky faz do russo para o inglês, a atuação dessa passagem sobre a diferença entre prosa e poesia etc (Brodsky faz do inglês a língua na qual escreve seus ensaios, vide a coletânea Less than one). Quando Volkov pergunta a Brodsky como é viver em um país estrangeiro e continuar escrevendo na língua materna, ele responde que "não sente nada de diferente", citando a frase de Thomas Mann (a quem Susan Sontag visita em 28 de dezembro de 1949, depois escrevendo um ensaio a respeito, Pilgrimage. Tea with Thomas Mann), que teria dito, quando se mudou para os Estados Unidos, "A literatura alemã está onde quer que eu esteja" (p. 156).

Para escrever versos, diz Brodsky, é preciso "ensopar-se" continuamente na linguagem, "escutar o tempo todo", no mercado, no ônibus, no bar, "ou não escutá-la de forma alguma" (a típica construção oito ou oitenta de Brodsky). A questão de viver em Nova York, continua Brodsky, "é que você fica em uma situação meio-a-meio", às vezes o telefone toca e é como "tudo ainda estivesse acontecendo", mas, ao mesmo tempo, "nada está acontecendo" (falando de suas visitas ao apartamento de Brodsky na introdução do livro, Volkov diz que o telefone tocava "incessantly" (Brodsky dizia: "as if it had been invented yesterday"), com gente pedindo "all kinds of favors"). Aparecem pessoas falando russo em Nova York, diz Brodsky, mas com algumas delas "eu sequer falaria caso estivesse ainda na Rússia": "essencialmente, o que importa é aquilo que a pessoa diz, não tanto o idioma que ela usa" (p. 157).

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"Vladimir Nabokov encontrou em Cambridge uma edição de segunda mão dos quatro volumes da obra Explanatory Dictionary of the Living Great Russian Language, de Vladimir Dahl, e decidiu ler dez páginas por dia, uma vez que, longe do país natal, 'tornou-se positivamente mórbido meu medo de perder ou corromper por influência estrangeira a única coisa que consegui trazer da Rússia - sua língua'" (Alberto Manguel, Encaixotando minha biblioteca, trad. Jorio Dauster, Cia das Letras, 2021, p. 125-126).


segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Veneza, 1977

Ainda nas conversas com Volkov, Joseph Brodsky evoca sua visita à Bienal de Veneza de 1977, para a qual ele foi convidado, junto com Susan Sontag e muitos outros. É sobre Sontag que ele fala: de como ela encontra na cidade a companheira de Pound, Olga Rudge, que a convida para visitar sua casa. Sontag diz a Brodsky que não quer ir sozinha e pergunta se ele não quer acompanhá-la. "Ela começa a nos contar que Pound não era de forma alguma fascista", diz Brodsky sobre o encontro com Olga Rudge, "e que eles tinham muito medo que Ezra fosse condado à cadeira elétrica, como punição pela colaboração" (p. 194).

Tudo vai se encaminhando de forma um pouco morna até Sontag tomar a palavra de forma repentina, conta Brodsky. "Tenho que dizer que essa é uma incrível qualidade de Susan. Quando a conversa está encerrando e tudo está bem, todos estão calmos - de repente! Tudo começa de novo!". Então Sontag diz a Olga, conta Brodsky: "Não acredite que ficamos chocados com Pound somente por seus pronunciamentos radiofônicos"; "Então, o que os americanos acham tão repugnante em Ezra?", pergunta Olga; e Sontag responde: "Bem, é muito simples: o antissemitismo de Ezra". Brodsky ainda comenta que foi uma "experiência extremamente interessante": "pela primeira vez na minha vida tinha visto uma fascista de verdade" (p. 196). 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Freudismos

Durante as conversas de Brodsky com Volkov o nome de Auden surge com bastante frequência, como era de se esperar, dada sua importância na vida e na poética de Brodsky (embora tenham se encontrado, se visto e conversado poucas vezes: se conheceram em junho de 1972, Auden morre em setembro de 1973). Além disso, Brodsky diz que mais escutava, especialmente porque seu inglês ainda era incipiente na época (mas ele diz que evitou falar sobre Freud, "teria sido um escândalo", pois Auden "era muito entusiasmado no que dizia respeito a Freud", o "freudismo era para ele uma das linguagens possíveis", um modo de ver a "atividade humana" como um "tipo de linguagem" (p. 146)).

Mais de cem páginas depois entendemos que a resistência de Brodsky a Freud vem de outro modelo, de outra figura-forte, definidora para sua poética: Anna Akhmatova. Ela era "uma inimiga do freudismo" que, ainda assim, se ligava estreitamente à cultura modernista, tendo lido "Joyce, Kafka, Valéry, Proust e Eliot bem de perto". Ela tinha uma "visão trágica de mundo", moldada tecnicamente na poesia: ela usava uma "máscara", feita de "especificações estéticas específicas" (p. 256). Lições absorvidas por Brodsky ainda na Rússia, ao longo da década de 1960 (repare que Youth, de Coetzee (que nasceu em 1940, como Brodsky), lida com o mesmo período e estabelece o mesmo diagrama de influências: Eliot, modernismo, ética rigorosa do fazer literário, regras, ambição, visão trágica de mundo, atenção permanente à dimensão literária da experiência e à experiência da vida como literatura).


sábado, 9 de outubro de 2021

Hampstead


Brodsky ainda diz a Volkov que acredita que boa parte da cultura russa é feita fora da Rússia, mesmo quando os artistas em questão ainda vivem na Rússia, como se existisse uma "exterioridade" inerente à arte que se faz na Rússia, na medida em que o país é (era?) avesso à dimensão libertária da atividade artística. Muitos russos "tiveram papel ativo na vida cultural do Ocidente", diz Brodsky, com ênfase para o período alemão de Dostoiévski (1867-1871 - Brodsky inclusive acrescenta, pouco adiante, que quase toda história de Dostoiévski é desencadeada por um fato ocorrido no exterior, fora da Rússia) e para o fato de Gógol ter escrito Almas mortas quando morava em Roma (p. 161).

É interessante notar que, quando recebe a notícia do recebimento do Nobel de Literatura (1987), também Brodsky estava no "exterior" (nem na Rússia, nem em Nova York, digamos): estava almoçando em um restaurante chinês com John le Carré (pseudônimo de David Cornwell), em Hampstead, onde ele estava hospedado na casa de Alfred Brendel, "o pianista"; "de repente, a esposa de Alfred entra correndo no restaurante e diz: Venha para casa imediatamente". Quando chega no prédio, os repórteres já estão presentes: "Lembro que tudo isso causou uma forte impressão em David", diz Brodsky, que brinca: "Eu teria dado o prêmio para Naipaul" (profético de sua parte: Naipaul receberá o Nobel em 2001), e John le Carré responde, indignado: "Stop playing the fool! It's all about winning!" (p. 203).


sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Abismo cronológico

Em determinado ponto da conversa, Brodsky e Volkov discordam acerca da relevância do hiato temporal no que diz respeito ao acesso, na Rússia, a certos artefatos culturais "ocidentais". Aquilo que na década de 1980 era considerado como típico da "cultura russa da emigração", afirma Brodsky, já fazia parte de "nossa consciência", "no mais alto grau": "Você não imagina o que li nos anos 1960, especialmente no final, em tradução"; "eu li as notas de Eliot sobre a definição de cultura e também Retrato do artista, de Joyce, em 1965". Ao que Volkov responde: "mas veja o abismo cronológico! Você estava lendo coisas de cinquenta anos antes, no caso de Joyce, coisas que já haviam sido reconhecidas em todo o mundo. Isso não é normal!" (p. 179).

Brodsky afirma que não é assim que vê a situação, que para ele essa seria uma "perspectiva ocidental, moderna", pois as culturas se desenvolvem "ao longo de milênios", e não a partir "de um processo temporal unificado" (mais ou menos nessa época, no livro que publica em 1975, O livro de areia, Borges escreve (no conto "Utopía de un hombre que está cansado"): Pero no hablemos de hechos. Ya a nadie le importan los hechos. Son meros puntos de partida para la invención y el razonamiento. En las escuelas nos enseñan la duda y el arte del olvido. Ante todo el olvido de lo personal y local. Vivimos en el tiempo, que es sucesivo, pero tratamos de vivir sub specie aeternitatis. Del pasado nos quedan algunos nombres, que el lenguaje tiende a olvidar. Eludimos las inútiles precisiones. No hay cronología ni historia. No hay tampoco estadísticas).

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Nomes impossíveis


Ainda durante suas conversas com Volkov, Joseph Brodsky fala muitas vezes de Dostoiévski, o romancista que capturou e registrou um mundo que já não existe mais, "uma sociedade que deixou de existir na Rússia depois da revolução de 1917" (p. 52). No Ocidente, por outro lado, a sociedade ainda é a mesma, ou seja, "capitalismo". Por isso a importância, a relevância e a vitalidade de Dostoiévski no contexto ocidental, continua Brodsky - o homem ocidental, porque vive sob o capitalismo, reconhece "suas próprias situações e dilemas" em Dostoiévski.

Disso decorre a impossibilidade de tradução de boa parte da prosa russa do século XX, afirma Brodsky. A realidade russa descrita nessa prosa do século XX deve ser imaginada, já que não pode ser vivida (ou conhecida) fora da Rússia, ou mesmo fora do russo. "Nem todo leitor está disposto a esse esforço da imaginação", escreve Brodsky. O leitor de Dostoiévski e Tolstói, por outro lado, continua ele, não precisa se esforçar nesse sentido - sua única luta será com os "impossíveis nomes e patronímicos russos" (mas quando o russo de hoje vai para a rua, diz Brodsky, ele não encontra nada do que foi descrito por Dostoiévski em seus romances).  

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Augusta


Nas conversas com Solomon Volkov, Joseph Brodsky demonstra um surpreendente distanciamento com relação aos próprios livros: "houve um tempo em que pensei que jamais conseguiria compilar um único livro em minha vida. Eu simplesmente não viveria o suficiente, porque quanto mais velho você fica, mais difícil é escolher, mas, mesmo assim, consegui organizar uma coletânea" (p. 292). O principal ponto de contraste é a Divina Comédia: "jamais escreverei algo assim", diz Brodsky, afirmando de modo tortuoso que sua poética é feita de fragmentos, de esforços oscilantes, de lampejos.

Ao contrário de Dante e Homero, que são os exemplos dados pelo próprio Brodsky, sua poética não é construída a partir das grandes estruturas, a partir do desejo de construir um monumento épico de amplas proporções (o mais próximo que chega desse ideal, afirma Brodsky, foi com New Stanzas to Augusta, uma poesia "com trama", plot, segundo ele, in principle more like prose than anything else). Mas isso não depende de mim, diz ainda Brodsky, depende do "ditado da linguagem", de uma espécie de energia, de força que atravessa as épocas (Montale também não escreveu nada de épico, diz Brodsky, nem Eliot, nem Yeats).

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Riso no escuro


Em suas conversas com Solomon Volkov, Joseph Brodsky comenta sobre suas primeiras experiências de leitura da obra de Nabokov, dizendo que leu Riso no escuro quando tinha 22 ou 23 anos (p. 268). Em poucos anos, afirma Brodsky, já havia lido tudo de Nabokov a que tinha acesso na União Soviética da época (início dos anos 1960; Brodsky nasceu em 1940). O título original no russo do romance de Nabokov foi Camera obscura, cuja primeira edição é de 1932 (a primeira tradução ao inglês é de 1936, e o autor aparece creditado como Vladimir Nabokoff-Sirin - essa tradução, feita por Winifred Roy, revoltou Nabokov pela má qualidade; ele então resolve traduzir a si próprio e essa nova tradução sai em 1938, agora com o título Laughter in the Dark).

Brodsky ainda diz que tem a impressão que Nabokov é muito ligado ao "mundo material", o que o faz muito "moderno" para seu gosto ("o apetite de Nabokov pela realidade me assusta", é o que diz Brodsky). Além disso, afirma que Fala, memória não o atingiu da mesma forma que atingiu vários outros leitores (é possível pensar em Sebald, por exemplo, que tem Fala, memória como um de seus livros favoritos - no ensaio dedicado a Nabokov em Campo santo é justamente esse o livro comentado, e Sebald fala de "texturas oníricas" em Nabokov, bem distante dessa insistência no mundo material que Brodsky identifica).

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Três textos


1) O primeiro deles (publicado na revista Remate de Males), intitulado "Dissolução do estético e resistência: da parataxe ao terceiro continente", experimenta um longo panorama de textos e autores ao longo do século XX. A ênfase está, de início, em Auerbach e no uso peculiar que ele faz da ideia de "parataxe" (com a Bíblia, com Homero e assim por diante); mas a discussão continua em direção a figuras como Hayden White e Ivan Jablonka (o responsável pela ideia de "terceiro continente", espaço de mescla de gêneros e discursos).

2) O segundo, intitulado "O estilo tardio em Giorgio Agamben" (publicado na revista Topoi), é mais restrito e circunscrito - lida basicamente com Agamben e com um recorte da sua obra mais recente, com ênfase no livro Studiolo, de 2019. O texto se dedica a um resgate da noção de "estilo tardio", especialmente a partir de Adorno e Edward Said, especulando acerca da produtividade dessa ideia para ler certos textos mais "autobiográficos" de Agamben (e o modo como lidam com a morte, a herança, a passagem, a dissolução e a relação vida x obra).

3) O terceiro, "Literatura, Arquivo e Documento em Leonardo Sciascia e Juan Rodolfo Wilcock" (publicado na revista Fênix), faz uma leitura comparativa entre os dois autores, com ênfase para o período dos anos 1970 (especificamente o livro de Sciascia sobre Majorana e a Sinagoga dos iconoclastas de Wilcock, publicado em 1972). O artigo postula que o arquivo, quando surge no texto literário, apresenta uma carga de ambivalência: oferece a dimensão daquilo que permanece (daquilo que é registrado e mantido ao longo do tempo) e a dimensão emancipadora daquilo que pode ser descoberto, de elementos que estão registrados mas que permanecem invisíveis ou recalcados. O arquivo oscila nessa dupla inscrição cultural – é tanto esfera do encobrimento quanto possibilidade de emergência do inesperado. 

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Proust aos sábados


1) Em 1980, o curso de Roland Barthes foi transferido da quarta-feira para o sábado. A abertura intelectual da instituição - sem diplomas, sem inscrições - é compensada por um descuido das instalações: iluminação, projetores, microfones frequentemente dão problema. Aos sábados isso fica ainda mais pronunciado, já que o bedel nunca está nesse dia.

2) Na segunda-feira 25 de fevereiro de 1980, depois de almoçar com François Mitterrand, Barthes se encaminha ao Collège de France para fiscalizar as instalações técnicas para a próxima aula, que será sobre Proust e a fotografia: ele quer projetar as fotos de Nadar e, como todo o curso se baseia sobre o comentário a respeito delas, acha melhor se precaver (vindo da ponte Notre-Dame, Barthes sobe a rua Montaigne-Sainte-Geneviève e pega a rua des Écoles, não longe da esquina com a rua Monge, avançando na calçada da direita; um carro em fila dupla prejudica a visibilidade e, ao atravessar a rua, é atingido por uma caminhonete).

3) Barthes precisa do dispositivo, sem o dispositivo não há aula, não há discurso (que ficará "manco" sem o suplemento da projeção). Até certo ponto, é possível pensar que a morte de Barthes seja decorrência, em grande medida, da dependência de seu ensino do dispositivo, da imagem, do projetor, do microfone, da prótese midiática (ele modifica sua rotina e a circulação de seu corpo pela cidade em prol de uma tutela do dispositivo, que diz respeito também ao sonho de trazer os mortos de volta à vida - não só Proust via Nadar (ou mesmo o Valdemar de Poe, do qual Barthes se ocupa desde os anos 1940), mas também a mãe, falecida em 1977). 

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Barthes / Foucault


"Ler os cursos ou escutar suas gravações também permite perceber diferenças de estilo. Foucault fala num tom vivo, às vezes descontínuo; Barthes fala lentamente, com uma voz clara e profunda. Foucault baseia seu discurso no gesto retrospectivo, no método arqueológico, voltando para proposições anteriores, corrigindo ou enfatizando seu pensamento sob o efeito de novas leituras e de novos diálogos.

O ensino de Barthes, ao contrário, é inteiramente prospectivo, apoiado numa ficção ou num fantasma. A inquietação com a retomada e a inquietação com o desejo não são da mesma natureza. A primeira é aprofundamento, está ligada à produção do saber; a segunda é ultrapassagem e se dispõe a deslocar o saber através do 'para mim'. Essas duas inquietações distintas se traduzem na escritura de seus livros por uma maneira bem diferente de recusar os sistemas.

Enquanto Foucault os desfaz, desconstruindo-os, Barthes renuncia a eles, espalhando-os no fragmento. O que os aproxima é a análise explícita em Foucault, implícita em Barthes, da importância dos processos de subjetivação" 

(Tiphaine Samoyault, Roland Barthes: biografia, trad. Sandra Nitrini e Regina Salgado Campos, Ed. 34, 2021, p. 537)

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Orwell / Catalunha

1) Gosto do modo como George Orwell usa os detalhes, calibrando o ficcional e o documental a partir de lampejos de especificidade. Em Homenagem à Catalunha, por exemplo, os corneteiros da milícia eram "todos amadores": "a primeira vez que ouvi os toques de clarim espanhóis foi vindo do outro lado das linhas fascistas" (p. 15).

2) Quando o trem está de partida, a mulher de um deles aparece com "dois palmos" de uma salsicha "cor vermelho-vivo, que tinha gosto de sabão e provocava diarreia". Em seguida, o trem segue viagem "em sua velocidade normal de tempo de guerra", ou seja, "um pouco menos que vinte quilômetros por hora" (p. 23). Na viagem de volta, ele vê companheiros, "com os cantis de pele de bode espanhóis", "espirrar um jato de vinho até a outra ponta do vagão, bem na boca do amigo" (p. 104).

3) Diante da frente de batalha, os morros aparecem "cinzentos e enrugados como a pele de elefantes" (p. 35) (um detalhe que faz pensar no célebre ensaio de Orwell, "Shooting an Elephant", publicado na revista New Writing em 1936). Em "oitenta dias" de atividade da frente de batalha, Orwell escreve que se despiu em "apenas três ocasiões" ("fazia frio demais até para os piolhos") (p. 43). A munição utilizada era tão precária que "dizia-se que um velho obus tinha apelido próprio e era lançado todos os dias de um lado para outro, sem jamais explodir" (p. 62).

(George Orwell, Homenagem à Catalunha, Trad. Claudio Alves Marcondes, Cia das Letras, 2021)


domingo, 12 de setembro de 2021

Pedra / água


"A liberdade grega era comunicada na indiferença, na inexpressividade do deus de pedra. Já a liberdade holandesa é comunicada na indiferença do tratamento das aparências em relação à vulgaridade dos temas. Mas esse tratamento 'indiferente' permite ver o conteúdo não vulgar, o conteúdo espiritual desses temas: a liberdade de um povo que deu a si próprio seu meio de vida e sua prosperidade e que pode, portanto, gozar com 'despreocupação' a paisagem que criou para si ao preço de muitas penas e se regozijar de modo desinteressado com a imagem desse universo produzido com engenho, assim como o menino se regozija com a pedra habilmente lançada ricocheteando na superfície da água. 

Com efeito, a criança que lança seixos para dar à paisagem natural a aparência de sua própria liberdade é, para Hegel, a figura originária do gesto artístico, ela própria uma figura herdada da liberdade que Winckelmann via expressa no movimento indiferente das ondas. 

Mas a liberdade da criança que atira seixos é também a liberdade que formou a si própria, deu-se um mundo próprio ao domar o mar e rechaçar o invasor. A liberdade holandesa exprime-se na arte moderna da pintura que pinta reflexos de luz e água sobre os trabalhos e os divertimentos populares, assim como a liberdade grega na arte clássica talhava a serenidade de seus deuses"

(Jacques Rancière, Aisthesis: cenas do regime estético da arte, trad. Dilson da Cruz, Ed. 34, 2021, p. 50)

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Copiar como outrora


1) Entre os papeis de Flaubert - encontrados depois de sua morte e ligados à confecção de Bouvard e Pécuchet - está uma folha de papel destacada contendo uma única citação, retirada do Emílio de Rousseau: "É de absoluta evidência que os grupos de sábios da Europa não passam de escolas públicas de falsidades", frase que poderia funcionar como uma espécie de epígrafe secreta ao romance. Encontra-se também uma folha "de grande formato", a última do manuscrito, na qual Flaubert havia elencado uma série de "ideias convencionais", entre elas: defesa da escravidão, defesa da Noite de São Bartolomeu, escarnecer dos estudos clássicos, "Rafael, nenhum talento", "Molière, tapeceiro das letras", "Homero nunca existiu", "Shakespeare nunca existiu; Bacon é o autor de suas peças".

2) Os protagonistas do romance de Flaubert iniciam a narrativa como copistas, escriturários, trabalhadores de escritório - é assim que se conhecem, assim que se identificam. Depois do recebimento de uma herança, podem ir, juntos, morar no campo - é lá que passam anos tentando aprofundar conhecimentos nas mais variadas áreas (educação, medicina, agricultura, mesmerismo), sempre com resultados insuficientes, quando não catastróficos. Nos rascunhos para o final do romance, Flaubert coloca uma frase que representa tanto a desistência quanto a retomada (como na Aufheben de Hegel, processo de simultâneo cancelamento e suspensão, soterramento e evidência, preservação e mudança) da relação dos dois - Copiar como outrora. Ou seja, o fim do romance foi pensado por Flaubert como um retorno a um estado prévio, aquela de copistas, mas agora com uma diferença crucial: sem ilusões acerca da possibilidade de acessar o "conhecimento". 

3) Uma das "tolices" encontradas em autores célebres (esse seria o cerne do segundo volume planejado por Flaubert para Bouvard e Pécuchet: um livro feito em grande parte de citações, trechos de tolices retiradas de grandes obras) diz respeito a Goethe e foi escrita por Dumas, filho: "quando os fanáticos da forma pela forma, da arte pela arte, do amor acima de tudo e do materialismo, vierem pedir-lhe que ajunte 'Grande homem', a posteridade responderá: 'Não!'". Sobre Napoleão, Flaubert destaca uma frase de Chateaubriand: "o general mais medíocre é mais hábil do que ele". Lamartine fala de Rabelais como "lodaçal da humanidade"; Marat fala de Descartes como "sonhador famoso pelos desvios da sua imaginação", cujo nome "foi feito para o país das quimeras" (essa dimensão de Descartes como "sonhador" é explorada por George Steiner em um dos ensaios de Nenhuma paixão desperdiçada). 

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Ideias feitas


1) Já em 1848 Flaubert começa a coletar material para Bouvard e Pécuchet, seu último romance, que fica inacabado com sua morte em 8 de maio de 1880 (no dia seguinte, o jornal Figaro dá detalhes da sua morte: se sente mal depois do banho, chama o criado e pede a ele que não se afaste; Flaubert deita no sofá do seu escritório, passa mal, a agonia "dura vinte minutos" e a "apoplexia" (derramamento de sangue ou de serosidade no interior de um órgão) "termina seu trabalho"; o médico chega logo depois, tarde demais). Na mesa de trabalho se encontram vários papeis relacionados à confecção do romance - notas "sobre a beleza e o casamento", um livro de Massillon, outro de Bossuet, e assim por diante.

2) Além dos 1.500 volumes que Flaubert declarou terem sido necessários para a elaboração do romance (para cobrir os conhecimentos especializados que os dois amigos dissecam ao longo dos anos), o arquivo Bouvard e Pécuchet é formado por centenas de recortes de jornais: é da imprensa e do acúmulo cotidiano de faits divers que Flaubert retira as "bobagens" que formaram o cerne da busca incessante dos dois protagonistas por "saber" (em certo sentido, Flaubert antecipa Aira e a ideia de uma literatura que se faz a partir da escolha de um dispositivo - a partir do momento em que a escolha é posta em movimento, seja a partir da coleta de notícias, seja a partir da justaposição de recortes ao longo do tempo, é quase como se o romance se escrevesse sozinho).

3) O romance como hoje o conhecemos é formado apenas pelo primeiro volume, cujo último capítulo Flaubert não consegue terminar. O segundo volume, contudo, também é - até certo ponto - conhecido, hoje denominado Dicionário das ideias feitas (também ele está inconcluso: Flaubert planejava passar seis meses em Paris para pesquisar e finalizar o Dicionário - "três quartas partes é feito quase que de citações", escreve ele em carta de 25 de janeiro de 1880 para Madame Roger des Genettes (que pode ser lida aqui)). Flaubert, portanto, antecipa Benjamin e sua ideia de fazer um livro de citações, aquele que conhecemos como o Livro das Passagens, também inconcluso (dois projetos impossíveis, intermináveis por definição?).  

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Fato, evento


1) Em seu livro Narrar a San Martín (Adriana Hidalgo, 2005), Martín Kohan declara que não está interessado nas perguntas que a história dirige ao passado, acerca do que passou e suas razões; também não está interessado nas perguntas que a historiografia dirige à história, "acerca de seus enfoques ou critérios metodológicos"; está interessado nas perguntas que a crítica literária pode fazer a "qualquer texto narrativo" (p. 40), independente de sua localização disciplinar (por isso a ênfase em "narrar" San Martín, em encontrar o personagem histórico nas narrativas e não na "realidade").

2) Acionando, sem mencioná-los (eles aparecerão nas notas, no fim do volume), as ideias tensionadas de Hayden White e Carlo Ginzburg, Kohan fala do heroísmo das figuras nacionais como uma construção feita a partir de representações - não é preciso reforçar "a difundida banalidade de que a história é uma ficção como qualquer outra, ou de que os fatos não existem além de suas representações" para advertir que "a significação dos acontecimentos históricos vem de seu ordenamento narrativo e não dos próprios acontecimentos"; os "fatos reais" existem "objetivamente", escreve Kohan, "concretos" como a "própria realidade", mas é "a narração que neles imprime um sentido", no modo como os seleciona e como os conecta: "os fatos da história existem na realidade, mas os fatos na história existem como narração" (p. 39).

3) Transformar a questão em uma "banalidade" não a resolve, especialmente porque o próprio Hayden White disseca o problema ao diferenciar "evento" e "fato": o "fato" é um fenômeno linguístico, uma decorrência discursiva do "evento" - o fato é um statement sobre o evento (como diz White em entrevista de 1995). O fato é a representação, uma vez que na "realidade" não há fatos, só "eventos" (cuja natureza é desconhecida em si; é preciso a intervenção discursiva para que ocorra a passagem do "evento" para o "fator", uma intervenção que é sempre uma "ficcionalização", na medida em que oferece uma descrição que transforma um evento em objeto possível de análise).   

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Nomes, delitos


1) "No Moreira de César Aira o popular 'mau', a violência, é o signo da vanguarda literária e da revolução, e a morte no prostíbulo, o momento socrático do texto: o momento da verdade literária, política e psicanalítica. Na contracapa, o livro tem esta inscrição: 'Volta neste romance o mais célebre dos sujeitos maus. Rodeado por seus discípulos, Juan Moreira aguarda a chegada da morte; enquanto isso, discutem sobre a imortalidade da produção (Moreira diz sempre a verdade). O romance desliza e se transfigura sobre cenas multiplicadas, mas os panos de fundo da Mãe Natureza impedem que se veja seu desenlace'. No texto, Moreira cita Freud e exorta: 'Sejam marxistas' (p. 61) e vence quatrocentos soldados, enquanto Felisa, a prostituta, fala do telefone em alemão: '- Wo es war, soll Ich werden (Se ela vai, eu não vou)' (p. 76). Os soldados dispersam-se, primeiro em 'bandos', depois em 'hordas'. E a história encerra-se sem narrar a morte" (p. 252)

2) "Boquitas pintadas não somente é 'o folhetim dos anos 60' pela ideologia da transgressão (a equivalência metafórica entre a violação dos tabus sexuais e a violação das normas discursivas que hoje associamos à teoria da textualidade), mas também, e sobretudo, porque exibe a passagem de uma 'cultura da biblioteca' a uma 'cultura dos meios' audiovisuais (essa passagem é o que Manuel Puig representa nitidamente na literatura argentina). Um texto sobre os signos e a circulação; sobre a circulação das cartas e dos corpos e seu fim na equivalência cremar/queimar: as cartas se queimam e os corpos mortos 'se queimam em contato com o muro'. E também é um texto fortemente marcado, que se auto-representa constantemente em seu interior. É também um folhetim dos anos 60 pelo questionamento da categoria de 'autor' e pela proliferação de narradores e cronistas que desmentem a existência de uma posição fixa de onde emanaria o discurso" (p. 366-367)

3) "Outros textos de Borges da década de 1940 com nomes no título, além de 'Pierre Menard', mostram delitos da verdade (delações, falsas identidades ou nomes, pactos fraudulentos ou juramentos falsos, e no campo da escritura, plágios e pseudoepigrafismos): 'La búsqueda de Averroes', 'Abenjacán el Bojarí, muerto en su laberinto', 'La forma de la espada' (que é a tradução do nome Moon como delator escrito em seu rosto), 'Funes el memorioso', 'Examen de la obra de Herbert Quain', 'Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)' e 'Emma Zunz'. Os contos de Borges com títulos de nomes giram ao redor dos delitos da verdade e da legitimidade, e são políticos ou incluem alguma referência política. E sua política é, também, ambivalente. Incluem outras línguas orais ou escritas, estrangeiras, e delitos verbais como nomes falsos, delações e pactos fraudulentos que sustentam e acompanham a ficção. Em todos eles se combinam crônica e confissão, discursos narrativos da verdade (como em Los locos-Los monstruos [de Roberto Arlt])" (p. 398)

(Josefina Ludmer, O corpo do delito: um manual, trad. Maria Antonieta Pereira, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002)

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Conspiração e discurso


1) Quando Roberto Arlt escreve e publica seus romances - fim da década de 1920, início da década de 1930 - cria para si um espaço dentro de uma rede complexa de textos e ficções que lidam com a simulação, os grupos clandestinos, a sabotagem, a falsificação de dinheiro, os gestos extremos do "terrorismo" e assim por diante (algo que reverbera e atinge seu clímax na frase célebre de Brecht, cunhada nessa mesma época: O que é roubar um banco comparado com fundá-lo?): os anarquistas de Dostoiévski (Os demônios, 1871) e de Conrad (O agente secreto, 1907), os conspiradores de André Gide (Os moedeiros falsos, 1925), as quadrilhas em Alfred Döblin (Berlin Alexanderplatz, 1929).

2) Expandindo um pouco a questão é possível aproximar Arlt também de Fernando Pessoa (morto em 1935) e Pirandello (morto em 1936), especialmente pelo viés da "simulação" e do "embuste identitário" (não por acaso os dois também se identificaram com elementos fascistas da época). Relembrando o ensaio de Jameson, comentado dias atrás, sobretudo sua discussão sobre os filmes de máfia (a redução do "perigo" a grupos específicos, impedindo a reflexão sobre o "perigo" maior, englobante, que é justamente - e novamente - o banco, o capitalismo), o insistente ressurgimento dos "anarquistas" e "conspiradores" nessas ficções indica a necessidade estrutural de um contra-discurso, de um conjunto de possibilidades ou vias de escape diante da aparente inexorabilidade do "progresso" ou mesmo da "cronologia" (a atenção se volta aos grupos atípicos para que não se pense na falha sistêmica que requisita sua emergência).

3) Não só pela via dos conspiradores é possível aproximar Arlt e Dostoiévski, mas também pela via da captura e do registro do discurso dos conspiradores na ficção (e o relacionamento conflitivo desse discurso com outros, numa espécie de estratificação ideológica). Quem possibilita a triangulação entre Arlt, Dostoiévski e mescla heterogênea de discursos na ficção é Bakhtin: no mesmo ano de lançamento de Los siete locos, 1929, Bakhtin publica seu primeiro trabalho de fôlego, "Problemas da obra de Dostoiévski" (posteriormente reformulado em 1963 como Problemas da poética de Dostoiévski), no qual introduz o conceito de "dialogismo" (cada personagem, e cada voz implícita no diálogo interno de um personagem, é uma outra consciência que nunca se torna meramente um objeto para o autor ou qualquer outro personagem ou voz).

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Jameson, Auerbach

Em ensaio de 1979 intitulado "Reificação e utopia na cultura de massa" (incluído no livro As marcas do visível), Fredric Jameson opera uma inusitada retomada de Auerbach, especificamente do primeiro capítulo de Mímesis, dedicado à leitura comparada de Homero e do Antigo Testamento. Jameson está interessado no comentário que faz Auerbach à construção da Odisseia no formato de cenas "imanentes", sem vínculos "necessários ou indispensáveis" com o que vem antes ou depois (o modo como a escrita de Homero se intensifica verticalmente e não horizontalmente; o poema é "vertical em relação a si mesmo", escreve Jameson, seguindo Auerbach). 

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De certa forma, Jameson retoma o gesto de Adorno e Horkheimer de retornar aos gregos (e a Ulisses e Homero) para discutir o capitalismo e a cultura do presente, acrescentando ao gesto, contudo, as intuições de Auerbach, que foi seu orientador em fins da década de 1950 (a reflexão de Auerbach sobre o caráter intensivo e "a-histórico" do poema homérico serve a Jameson para pensar o consumo superficializado de artefatos artísticos na cultura de massa, dentro da qual a lógica da mercadoria faz com que essas "cenas imanentes" sejam transformadas em procedimento de obsolescência programa, transformando a experiência de fruição estética em experiência de transposição desenfreada e a-crítica de um artefato a outro - Jameson fala das "histórias de detetives" e de como manipulam os "fins reificados" dentro de um processo de "consumo de si mesmo").

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Corpo e política


1) No epílogo de Los lanzallamas, o "cronista" responsável pela narração (ou seja, o jornalista que recebe Remo Erdosain em sua casa e ouve sua confissão ao longo de três dias) conta o que aconteceu com Erdosain depois de seu suicídio no trem. Chama a atenção a reivindicação do cadáver do "feroz assassino", como dizem as manchetes: "foi fotografado cento e cinquenta e três vezes no espaço de seis horas"; na delegacia, um "ancião respeitável", "pai do Chefe Político do distrito", cospe no rosto do cadáver e diz: Anarquista, hijo de puta. Tanto coraje mal empleado.

2) O destino dos cadáveres tem sido um tema recorrente na literatura argentina: em 1998, Paola Cortés Rocca e Martín Kohan publicam Imágenes de vida, relatos de muerte: Eva Perón: cuerpo y política, um livro sobre o mais famoso desses cadáveres, comentando uma série de textos que dele se ocuparam - os dois romances de Tomás Eloy Martínez; a peça de Copi de 1969, Eva Perón; o conto de Borges, "El simulacro", publicado originalmente em 1956 (hoje no livro El hacedor); "Esa mujer", conto de Rodolfo Walsh (do livro Los oficios terrestres, de 1965); "Eva Perón en la hoguera", poema de Leónidas Lamborghini; "El cadáver de la Nación", poema de Néstor Perlongher; "La señora muerta", conto de David Viñas publicado no livro Las malas costumbres, de 1963, e assim por diante.

3) "Uma tarde Juan C. Martini Real me mostrou uma série de fotos do velório de Roberto Arlt. A mais impressionante era uma tomada do caixão pendurado no ar por cabos e suspenso sobre a cidade. Haviam armado o caixão no quarto dele, mas tiveram de retirá-lo pela janela com aparelhos e roldanas porque Arlt era grande demais para passar pelo corredor. Aquele caixão suspenso sobre Buenos Aires é uma boa imagem do lugar de Arlt na literatura Argentina. Morreu aos quarenta e dois anos e sempre será jovem e sempre estaremos tirando seu cadáver pela janela" (Ricardo Piglia, Formas breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 33).