sexta-feira, 29 de maio de 2020

Worstward Ho!


1)
Em algum momento da virada do século XIX para o XX - talvez como um efeito de superfície da morte de Deus de Nietzsche? - a literatura passou a considerar o messianismo com uma ênfase diversa, modificada. A espera já não é mais recompensada, embora não seja jamais encerrada - como no caçador Graco de Kafka, ou na anotação do próprio: há esperança, mas não para nós.

2) O sebastianismo de Fernando Pessoa, por exemplo, já é declinado em uma língua estrangeira, já é observado do lado de fora - o mito da grandeza futura é da ordem da espera kafkiana, elástica e amorfa, fingindo esperar (ansiar) aquilo que de fato espera. Em 1934, mesmo ano de Mensagem, Walter Benjamin não só publica seu ensaio incontornável sobre Kafka ("o portal para a justiça é o estudo"), como também troca uma intensa correspondência com Gershom Scholem sobre o autor de O castelo: em Kafka, a projeção do Julgamento Final sobre a história humana é o relato de um fracasso, escreve Benjamin.

3) É no fracasso que se dobra a aposta: Fail again. Fail better, escreve Beckett em Worstward Ho!, de 1983, mas que retoma um tema constante, desde o Godot, de 1953: tudo conflui em direção à fábula de Beckett, a desistência impossível mesclada com a esperança irônica (o double bind que Bateson anuncia na mesma década). Algo disso está no relato de Del Giudice de sua busca (impossível, irônica) dos rastros da figura enigmática e elusiva de Bobi Bazlen em O estádio de Wimbledon; algo disso está na busca por Walser em I beati anni del castigo (1989), de Fleur Jaeggy, um gesto no qual a espera se transforma em busca infrutífera, que ela retoma vinte anos depois com Vite congetturali, proliferando em direção às vidas de De Quincey, Keats e Schwob.       

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Musaeum Clausum

Cornell, Nymphlight, 1957
Outro ponto fundamental de contato entre Sebald e Cornell é o uso da imagem da borboleta (da mariposa, da ninfa) como imagem da memória e da nostalgia (nesse sentido, é um elemento que serve para aproximar ambos também de Nabokov, a quem Sebald declaradamente admira - tendo dedicado um ensaio a ele em Campo Santo e utilizado o autor de Fogo pálido como personagem fundamental de Os emigrantes - e a quem Cornell está ligado por um esforço compartilhado de resgate da infância através de uma poética que mescla elementos de realismo e de fantástico). A borboleta dá a ilusão de leveza a um fardo da memória que não só é pesado, como pode frequentemente tocar o obsessivo - como certamente é o caso em Sebald e Cornell (o peso desse fardo ganha representação visual no ambiente de trabalho de Jacques Austerlitz, por exemplo).

Em 1940, Cornell dedica uma obra à bailarina Lucille Grahn, ligando-a à figura da sílfide, ser mítico do ar. Ao longo de toda sua carreira, Cornell realizou uma série de breves filmes caseiros - em 1957 ele produz um sugestivamente intitulado Nymphlight, que usa o Bryant Park e a New York Public Library como cenários (e que de maneira bem nabokoviana usa como atriz uma menina de 12 anos, a bailarina Gwen Thomas).  

Cornell e Sebald compartilham esse espaço aéreo que mescla temporalidades, que dá acesso a uma sorte de registro intermediário da realidade - borboletas, estrelas, pássaros em geral. No começo de Os anéis de Saturno, durante a visita a Somerleyton, o narrador de Sebald encontra uma codorna chinesa trancada, que não voa e que só pode se mover lateralmente; no final do romance, falando da fabricação da seda em Norwich, Dublin e Berlim, Sebald posiciona uma belíssima imagem de mariposas (o quadro 29 do Musaeum Clausum de Thomas Browne, publicado postumamente em 1684). 

domingo, 24 de maio de 2020

Sebald, Cornell


Se nas obras de Sebald fica claro o esforço da caminhada (tanto literal quanto metafórica), nas obras de Cornell a forma da caixa por vezes dá a impressão de fixidez; da mesma forma, se as obras de Cornell dão a forte ideia de precisão, cuidado, detalhismo, aquelas de Sebald muitas vezes oferecem a ilusão de certo improviso ou mesmo aleatoriedade. Corolário: a comparação favorece a ambos, ressaltando o que há de movimento em Cornell (a coleta de materiais) e o que há de precisão em Sebald (o diálogo complexo entre texto e imagem, a oscilação meticulosa entre temporalidades).

1) boa parte do trabalho de ambos é perambular, caminhar, deambular - Sebald inclusive aparece como caminhante na capa da edição alemã de Os anéis de Saturno (além de utilizar intensamente Robert Walser em tal condição); Cornell o fazia buscando materiais nos sebos, brechós e lojas de antiguidade em Manhattan; 

2) ambos fazem uso constante das figuras dos animais, especialmente animais noturnos - concebidos como seres quase mágicos, que funcionam como intermediários entre o hoje e o amanhã, o dia e a noite, os vivos e os mortos (Cornell com a caixa da coruja de 1946; Sebald com a célebre abertura de Austerlitz no Nocturama, com os olhos de Wittgenstein e os olhos dos animais noturnos);


3)
ambos fazem referência à interferência dos astros e das estrelas na vida humana, na vida terrena - no caso de Sebald, a vida "sob o signo de Saturno" que anuncia já em Nach der Natur, e que expande nas reflexões sobre a selenografia, também em Austerlitz; em Cornell, o uso de uma "carta geográfica da lua" em uma caixa de 1936, Soap Bubble Set, ou uma colagem feita 30 anos depois, intitulada Cassiopeia.  

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Hotel Eden


1)
O pai de Joseph Cornell era um empresário bem-sucedido do ramo têxtil. Com sua morte, a família perde muitos dos recursos e Joseph eventualmente precisa começar a trabalhar - também ele, durante um período, trabalha com tecidos, vendendo de porta em porta (essa ruptura de um mundo paterno de tranquilidade e abundância liga Cornell a Nabokov, por exemplo, outro artista do detalhe que trabalhava na chave da nostalgia, da alegoria e do resgate de um passado inacessível).

2) A primeira colagem de Cornell, no início da década de 1930 (seu período de ligação mais clara com o surrealismo), mostra uma mulher atravessando uma máquina de costura e, ao fundo, uma fila de trabalhadoras, de costureiras (a costureira, a datilógrafa, a telefonista - a posição da mulher na disseminação da técnica, como fala Kittler - especialmente a partir do caso paradigmático de Kafka e Milena). É possível associar - especialmente tendo em conta o fascínio de Cornell com a França - a cena da colagem ao destino da filha de Bovary, sublinhado por Piglia: "Alguém deveria escrever uma biografia da filha de Madame Bovary. Na última página do livro começa outro romance (...) A vida de uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi, esse tema me interessa mais do que a história da amante de Walter Benjamin". 

3) A França e o francês aparecem ao longo de toda a obra de Cornell - desde referências visuais até pequenos recortes de propagandas. Em Hotel Eden, de 1945, Cornell não só incorpora dois recortes em francês como posiciona, em destaque, um papagaio (uma referência ao papagaio de Flaubert em Un Coeur Simple? Cornell, com seu papagaio reproduzível e não-único, antecipa inclusive a investigação irônica de Julian Barnes: seu O papagaio de Flaubert inicia com a situação de dois museus defenderem a posse do verdadeiro papagaio; no fim, são mais de 150 os possíveis candidatos). Cornell pode ser flaubertiano também por outro viés: também ele se interessava pela coleta das ideias feitas, das bêtises, daquilo considerado de menor valor, o refugo da sociedade de consumo (que emoldurava em um trabalho de extremo rigor e detalhismo).   

segunda-feira, 18 de maio de 2020

A obra invisível


1) Existe outro detalhe fundamental da dinâmica entre subjetividade e história (pessoal e coletivo, dentro e fora) que está em jogo nas reflexões de Leonardo Sciascia sobre o caso Moro: além de resgatar e reordenar toda a história do pensamento (da crítica, da filosofia, da linguagem), o envio epistolar, a troca de mensagens também expõe um vasto continente inexplorado compartilhado por todo sujeito exposto à curiosidade pública: a obra publicada geralmente é ínfima em comparação com a correspondência deixada para trás (Sciascia percebe que o caso Moro é o curto-circuito dessa regra geral, uma vez que a obra visível de Moro será para sempre a correspondência pública que ele envia do cativeiro).

2) Tal continente inexplorado é, por sua vez, um dos principais campo de atuação da investigação biográfica - são as cartas que muitas vezes permitem acompanhar os sujeitos dia a dia, semana a semana. A observação do contexto geral de uma poética certamente se transforma a partir dessa perspectiva da minúcia (em certo sentido, a dialética entre vasta correspondência e obra publicada ativa certos elementos daquilo que Carlo Ginzburg chamou de micro-história). É possível pensar, por exemplo, na correspondência de Goethe (estimada em aproximadamente vinte mil cartas escritas (a cerca de 1.700 destinatários) e 25 mil recebidas, aqui), Freud ou Benjamin, enormes conjuntos de escritos que transformam decisivamente a obra "visível", oficial e publicada. 

3) A correspondência ajuda a observar como um trabalho deve ser julgado pela acumulação progressiva de suas etapas, e não tanto pelo produto final, isolado e desconectado de suas versões prévias. A questão surge com força também na poética de Joseph Cornell, que não só documenta em sua correspondência as etapas de seu trabalho (onde conseguiu material, para quem pediu, para quem presenteou, interesses do momento, técnicas utilizadas, publicações e assim por diante) mas também transforma a própria correspondência em parte do trabalho: muitas das suas cartas (e são milhares, para dezenas de destinatários) são decoradas com desenhos, recortes e montagens, e muitas das cartas recebem materiais muito semelhantes àqueles encontrados nas caixas de Cornell, ou seja, em sua obra pública, visível (como a carta de janeiro de 1963 que reitera o tema do pássaro, tão utilizado por Cornell - que se dedica ao projeto dos "aviários" por toda a década de 1940).


sexta-feira, 15 de maio de 2020

Cornell, 1966


Com o surgimento midiático de Susan Sontag no início da década de 1960, um leitor ilustre buscou - pouco a pouco - uma aproximação: Joseph Cornell começa a enviar à escritora uma série de pequenos presentes, objetos, fotografias, montagens, além de incorporar a imagem de Sontag ao seu próprio universo criativo, como a colagem The Ellipsian, de 1966 (a fotografia foi retirada da quarta capa de O benfeitor, o primeiro romance de Susan Sontag, lançado em 1963):

Em um documentário de 1991, Joseph Cornell: Worlds in a Box, Sontag comenta sua relação com Cornell (trinta anos mais velho e que faleceria em 1972), que ela chama de "um dos grandes artistas deste século", e a relação deste com a fotografia e com a aura romântica dos artistas retratados (o que teria chamado de imediato a atenção de Cornell, relata Sontag, é o fato dela compartilhar o sobrenome com uma soprano muito famosa no século XIX, Henriette Sontag, que morreu vítima do cólera no México, durante uma turnê mundial, em 1854). Henriette aparece em The Uncertainty Principle (Portrait of Henrietta Sontag):

Diante da quantidade de presentes enviados, Susan Sontag escreve a Cornell; ele responde com um convite para uma visita a sua casa - no mesmo documentário citado acima, Sontag diz que decide levar seu filho David junto na visita, por não ter certeza das intenções de Cornell (medo infundado, ela diz, porque Cornell guardava em si "algo de criança", "assexual", "ingênuo"). A biógrafa de Cornell, Deborah Solomon (Utopia Parkway: The Life and Work of Joseph Cornell), escreve que, "além de tomar chá na cozinha", Sontag recebeu privilégios de acesso: ela é levada por Cornell ao porão de sua casa, onde ele guarda sua coleção de livros antigos e gravuras, além de receber duas de suas caixas (resgatadas por um assistente algum tempo depois, para espanto de Sontag).


quinta-feira, 14 de maio de 2020

Sciascia, 1978


1) O caso Moro funciona para Sciascia como uma incontornável mescla entre o individual e o coletivo, o subjetivo e o histórico: agora Sciascia reconhece sua poética e seus temas preferidos na própria realidade, tendo sido ele desde sempre um escritor particularmente atento à história italiana, siciliana, europeia. Mas o livro de Sciascia sobre o caso Moro é cindido, dividido, ambivalente: conta com uma primeira parte mais narrativa, associativa (é onde ele cita Poe e Borges) e uma segunda parte mais contida, uma vez que se trata do relatório escrito por ele na condição de parlamentar.

2) Pode-se constatar, portanto, na própria dinâmica estrutural do livro de Sciascia sobre o caso Moro essa ambivalência entre individual e coletivo, subjetivo e histórico: a primeira parte do livro mostra o Sciascia escritor buscando dar conta - narrativamente - dessa abrupta invasão dos fatos sobre sua poética e seus temas; a segunda parte mostra Sciascia atuando sobre o caso Moro não do interior de sua poética e de seus temas, mas do exterior, de uma exterioridade social, histórica (o que apenas intensifica a carga dramática da investigação da primeira parte, uma vez que é essa exterioridade política que Moro reivindica em suas cartas, e é também o contato entre subjetivo e coletivo que está em jogo nas cartas de Moro, que faz uso do potencial destino de sua família para convencer o Estado a negociar com os terroristas e, com isso, salvar sua vida).

3) Levando em conta o que diz Peter Sloterdijk em suas Regras para o parque humano - ou seja, que a história do pensamento é a história do envio de mensagens, de cartas, e também a história da recepção sempre diferida dessas mensagens -, a dinâmica epistolar do caso Moro tal como analisa Sciascia é também uma reflexão sobre os limites da ética, da estética e da política (Moro faz uso das cartas para refletir sobre e questionar a própria noção do poder, como fez outrora Platão em Siracusa - uma situação que alimenta tanto O cartão-postal, de Derrida (lançado em 1980), quanto as aulas que Foucault apresenta de 1982 a 1984 em dois de seus seminários - Governo de si e dos outros - no Collège de France).

domingo, 10 de maio de 2020

O caso Moro


1) A obra de Sciascia se transforma com L'affaire Moro, de 1978. Ele é de certo modo surpreendido pela história (História? pelos fatos, acontecimentos?), pelo fait divers (para dizer com Barthes e para resgatar uma leitura que já fiz de Sciascia a partir de 1912+1), que agora lhe apresenta vários daqueles elementos que ele já usava em sua ficção: a irrupção violenta de um poder paralelo; as cartas que são enviadas; a morte de uma autoridade (Aldo Moro foi sequestrado em 16 de março de 1978 pelo grupo Brigadas Vermelhas e assassinado depois de 55 dias de cativeiro).

2) No calor da hora, ainda em 1978, Sciascia escreve seu relato - uma mescla de resumo dos fatos, crônica política e meticulosa análise de discurso (que toma como objeto as cartas que Moro envia do cativeiro). Em 1982, na condição de deputado, Sciascia participa de uma comissão de investigação do "caso Moro" e elabora um documento que atualiza em parte sua narrativa (os dois textos agora fazem parte da edição mais recente da Adelphi). Assim como acontece no romance A cada um o seu, de 1966, uma carta prepara o crime: não mais a carta anônima que ameaça um farmacêutico de uma pequena cidade da Sicília, e sim um conjunto de cartas que anunciam o julgamento/condenação de Moro na "prisão do povo" das Brigadas Vermelhas.

3) A ineficácia policial que Sciascia observa no caso Moro é muito próxima daquela que Sciascia já havia retratado em outro romance, de 1971, Il contesto (e mesmo em O dia da coruja, de 1961, já encontramos essa instituição que parece se esforçar para cancelar suas próprias chances de sucesso). Sciascia usa uma série de referências literárias no esforço de esclarecer o enigma das cartas de Moro, mas as mais proeminentes são Borges e Poe: o primeiro por conta do dispositivo Pierre Menard; o segundo por conta do dispositivo Dupin. O primeiro diz respeito à capacidade de transformação de um mesmo texto diante da passagem do tempo (Sciascia repete a notícia do sequestro como se fosse "antes" e "depois" morte de Moro); o segundo diz respeito à possibilidade de resolução de um crime unicamente através dos rastros escritos que deixa nos jornais (Sciascia decifra as cartas conhecidas de Moro, ou seja, aquelas que foram publicadas pelos jornais durante o cativeiro).   

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Piazza Colonna


Quando Freud escreve sobre o romance de Jensen, Gradiva (ficção sobre um arqueólogo que fica fascinado por um baixo relevo visto em um museu e que, trabalhando a partir desse fascínio, produz um enigmático sonho no qual é transportado para Pompeia, logo antes da destruição provocada pelo Vesúvio), enfatiza a distância temporal que separa o sonho da cidade, ou seja, do homem que sonha no fim do século XIX e a cidade soterrada em 79 d. C. 

1) É perceptível em Freud certa ambivalência diante da cidade contemporânea, urbana, repleta de mensagens e estímulos técnicos. Em 22 de setembro de 1907, Freud escreve uma carta para sua família de Roma, na qual aparece como uma sorte de flâneur na capital italiana, mesclando registros acerca da arquitetura tradicional (a Piazza Colonna) e dos novos artifícios de entretenimento para as massas (anúncios, o bonde elétrico, vendedores de jornais, o cinematógrafo). 

2) “Uma das características notáveis dessa carta”, escreve Jonathan Crary (em seu livro Suspensões da percepção), “é como ela revela a transformação do status do observador, embora transmita um sentimento de modernização parcial e eternamente incompleta da experiência”; Freud “apresenta-nos uma cena urbana em que uma subjetividade individual e uma coletiva tomam forma em múltiplas imagens, sons, multidões, vetores, caminhos e informações, e sua carta registra uma tentativa particular de gerir e organizar cognitivamente esse campo sobrecarregado” (p. 358).

3) Parte da ficção do século XX circula ao redor dessa ambivalência diante das múltiplas mensagens da cidade - uma heterogeneidade de registros que não é mais apenas vertical e material (a metáfora arqueológica das camadas subterrâneas de Freud), mas também disseminada e fantasmática. É assim que surge a Londres de Sebald em Austerlitz (a caminhada do narrador e do protagonista pela cidade é um deslocamento que se também no tempo - um pouco como acontece também no romance Glosa, de Saer, que narra uma caminhada que dura 21 quarteirões de Santa Fe); a Paris de Vila-Matas em Doutor Pasavento (operando metonimicamente a partir do uso da Rue Vaneau); toda a noção de localidade compartilhada no tempo e no espaço na série O Bairro, de Gonçalo Tavares.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Mistério, romance

Leonardo Sciascia e a questão da escrita, da leitura e da interpretação - como o primeiro pressuposto é sempre o da dúvida, é preciso duvidar também da escrita, da mensagem, dos sentidos múltiplos estimulados pelos signos:

1) Sua obra-prima de 1966, o romance A cada um o seu, já começa com uma lição de escrita e leitura: uma carta anônima, cujas palavras são recortadas de um jornal e coladas na folha, chega no estabelecimento do farmacêutico Manno. A primeira lição, contudo, é desdobrada: vendo o papel contra a luz, o professor Laurana reconhece uma palavra em latim no verso do recorte: UNICUIQUE, palavra que só pode vir do jornal L'Osservatore Romano, de circulação extremamente restrita na cidadezinha siciliana onde se passa a trama (e daí vem o título do romance: unicuique = a cada um o seu).

2) Trata-se da expansão (transformação) do tema de Pirandello - referência contínua e central para Sciascia - da dúvida e do jogo de espelhos, do falso que se mascara de verdadeiro e vice-versa (ou, para dizer com Fernando Pessoa (morto em 1935), absoluto contemporâneo de Pirandello (morto em 1936): fingir que é dor a dor que deveras sente); uma expansão que Sciascia leva do metafísico/psicológico em direção ao arquivístico/filológico: há sempre alguém envolvido com um manuscrito, uma notícia de jornal, uma impressão duvidosa (o exemplo maior talvez esteja em O conselho do Egito, breve romance de 1963, no qual o padre Giuseppe Vella - em fins do século XVIII - falsifica uma história da ocupação árabe da Sicília).  

3) De forma panorâmica, para além dos casos específicos, Sciascia indica que é preciso também saber ler nas entrelinhas dos relatos - como na nota que encerra O dia da coruja, de 1961, na qual Sciascia ironicamente enfatiza que, como sempre na Sicília, todo caso de justiça é um relato fantástico. Retornando ao romance A cada um o seu com isso em mente, salta aos olhos a epígrafe de Poe, retirada do conto da rua Morgue: mas não pensem que eu esteja para revelar um mistério ou escrever um romance. Em conjunto com a dúvida, o que sustenta a poética de Sciascia é a permanente preocupação com o arquivo, o fato e a história (e a inacessibilidade irredutível dos três).