1) Na continuação de suas notas sobre literatura em um Diário - uma espécie de monólogo interior travestido de crítica literária, já que o interlocutor, Emilio Renzi, é ele mesmo, seu outro, seu alter-ego -, Ricardo Piglia (cujo nome completo é Ricardo Emilio Piglia Renzi, daí a graça da coisa) escreve que "algum dia seria preciso escrever um texto sobre Asja Lacis": "Não vejo que sentido pode ter, diz Renzi, escrever algo sobre Asja Lacis. Existem outras mulheres mais interessantes que podem servir de tema para uma narrativa. Por exemplo?, pergunto", isto é, é Piglia quem pergunta, "Por exemplo, responde ele, a filha de Madame Bovary. Alguém deveria escrever uma biografia da filha de Madame Bovary. Na última página do livro começa outro romance, diz Renzi, e se levanta para ir buscar o livro de Flaubert".
2) Pois bem, Renzi volta com o romance de Flaubert, lê as últimas linhas, mostrando o destino da órfã que foi morar com uma tia: "A vida de uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi, esse tema me interessa mais do que a história da amante de Walter Benjamin" (ou a história do filho de Stálin, acrescento eu). O desejo de se ocupar de um texto e de suas potencialidades ao ponto de reescrevê-lo, retomando partes lacunares, postergando seu fim (e profanando a própria poética do autor no processo, como seria o caso de um romance marxista sobre a filha de Madame Bovary). Tal desejo está em Balzac, quando escreve seu Malmoth como continuação daquele de Charles Maturin.
3) É natural que Emilio Renzi, sendo a figura ficcional que é, prefira a história da filha de Madame Bovary à história de Asja Lacis, "figura real" (essa escolhida por Piglia, também figura real, o Fernando Pessoa desse heterônimo que é Renzi). O dilema está ativo também na obra de Coetzee: ele, como figura real, pode interferir na vida de outro autor-figura-real, que é Daniel Defoe, e dessa forma publica Foe, em 1986, uma espécie de versão alternativa para o contexto de criação de Robinson Crusoe. Mas para lidar com uma figura ficcional, para lidar com Molly Bloom, do Ulisses de Joyce, Coetzee precisa de uma mediação, precisa de Elizabeth Costello, figura ficcional como Molly - e é Costello quem publica, em 1969, The House on Eccles Street, a reescrita de Ulisses pelo ponto de vista de Molly.
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