terça-feira, 22 de outubro de 2013

O dia do Juízo

1) Em uma carta datada de 3 de abril de 1982, Bruce Chatwin escreve a Susan Sontag sobre sua vontade de ver uma tradução ao inglês do livro de Salvatore Satta, Il giorno del giudizio. "Nosso amigo Calasso manda lembranças", escreve Chatwin. Foi Roberto Calasso (assim como supostamente fez com Sándor Márai alguns anos depois) quem redescobriu o romance de Satta e arriscou uma nova edição pela Adelphi em 1979. Chatwin diz a Sontag que está vendo com Calasso a possibilidade da publicação em inglês (não há detalhes, não sabemos o que Calasso e Chatwin conversaram sobre Satta; o que há de certo é que Calasso não apresentou o livro a Chatwin, que já havia lido uma versão francesa anos antes).
2) Na mesma carta, 3 de abril de 1982, Chatwin escreve, sobre O dia do Juízo: "George Steiner pronounces it one of the truly great works of the century etc". Onde Steiner fala isso? Será que Chatwin conversou diretamente com Steiner? Pouco provável. Talvez Calasso tenha comentado com Chatwin sobre as impressões de Steiner e agora Chatwin repassa a Sontag. O texto célebre de Steiner sobre Salvatore Satta só foi publicado em 19 de outubro de 1987, na New Yorker, quando a tradução ao inglês de Il giorno del giudizio foi finalmente publicada. "A tradução de Patrick Creagh, The Day of Judgement, ao meu ouvido e ao meu espírito, não capta inteiramente o gênio da prosa de Satta - sua ferocidade ebúrnea, o fogo lento que arde dentro da pedra", escreve Steiner em sua resenha.
3) Uma típica frase de Steiner num típico ensaio de Steiner - esse apelo simultâneo à tradição e ao preparo pessoal, ao mesmo tempo uma esquiva e uma tomada de responsabilidade: "meu ouvido" e "meu espírito". E mais: esse lastro metafísico, "o gênio da prosa de Satta", e essa mescla de iluminação profana e fervor religioso, "o fogo lento que arde dentro da pedra". Mas esse é apenas o início do ensaio, a preparação do terreno, porque Steiner é minucioso e precisa justificar essa animosidade de seu espírito e de seu ouvido para com a tradução. Ele cita trechos do original italiano, tentando mostrar que toda experiência de leitura da obra-prima de Satta fora de seu idioma será sempre parcial: "A réplica do marido é uma das frases mais brutais da literatura - é, literalmente, uma sentença de morte: "Tu stai al mondo soltanto perchè c'è posto" ("Estás no mundo só porque há lugar"). A tradução de Creagh - "You're only in this world because there's room for you" - é mais ou menos exata, mas fica aquém. No italiano, há a conotação de um nicho obscuro, predestinado, onde as vidas insignificantes e prisioneiras são encaixadas sem escapatória. E é precisamente essa falta de escapatória que dá a tais vidas sua base contingente de extrema humilhação" (Tigres no espelho, tradução de Denise Bottmann, Globo, 2012, p. 117).

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