sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um tom apocalíptico

1) Como já dizia Derrida, nosso tempo é o tempo de um tom apocalíptico que teima em escorrer pelas análises, prognósticos e balanços, não apenas na filosofia mas em todo discurso crítico ou teórico. É como uma muleta, um anteparo, que dá sustentação ao desejo de abandonar o rigor e o comprometimento sob a desculpa de que, afinal de contas, o estado das coisas é caótico, descontínuo e errático, por que se incomodar? Nada de novo: o tom de Tirésias não era também um tom apocalíptico? O tom de João, na ilha de Patmos, não era também um tom apocalíptico?
2) Para Sebald, o que está em jogo é uma determinada "relação com a história", que determina, em infinitos graus, o contato e a reação do sujeito diante desses fluxos apocalípticos. "Nossa relação com a história", escreve Sebald em Austerlitz, "era uma relação com imagens já predefinidas, impressas no recôndito dos nossos cérebros, imagens que continuamos a mirar enquanto a verdade reside em outra parte, em algum lugar remoto que ninguém ainda descobriu" (tradução de José Marcos Macedo, Companhia das Letras, 2008, p. 75). A posição de Sebald, evidentemente, é contrária: ele quer quebrar essa relação viciada com a história e acessar esses lugares remotos, lugares que estão disponíveis tanto no tempo como no espaço - e por isso as imagens, porque oferecem, ainda que brevemente, essa simultaneidade.
3) Chega um momento, portanto, depois de muito silêncio, muito trabalho e muita reflexão, que o desenfreado caminho para o futuro passa por uma metamorfose: transforma-se em análise do passado e de seus eventos que permaneceram pouco tocados ou pobremente explorados. "De minha parte", escreve Harold Bloom, "desaprovo a moda acadêmica segundo a qual a Renascença Européia é identificada como 'Europa do Início da Modernidade'. Antes, proponho uma volta à noção de Pós-iluminismo, movimento de grande escala que separa Milton de Shakespeare, e entende a literatura, desde Milton até o presente, como longo processo contínuo". A ideia do "longo processo contínuo" é apressada e parece gratuita, mas o que vem em seguida é interessante: "O Romantismo, o chamado Modernismo e o ainda mais arbitrário Pós-modernismo parecem-me nada mais do que fases da sensibilidade Pós-iluminista. Shakespeare, Cervantes e Montaigne são tão grandes que contêm movimentos que ainda estão por surgir: jamais conseguiremos exaurir tais autores" (tradução de José Roberto O'Shea, Gênio, Objetiva, 2003, p. 710).
4) Vemos, paulatinamente, uma inversão do cenário: o futuro aparecia como estéril, desprovido de esperanças ou possibilidades; contudo, sua esterilidade está diretamente ligada ao descaso com o passado e, principalmente, com a desatenção com relação ao fato de que ele segue passando, prenhe de possibilidades. Bloom diz que Shakespeare, Cervantes e Montaigne ainda não foram completamente lidos: seus textos estão carregados de possibilidades (estéticas, formais, linguísticas) que "ainda estão por surgir". Milan Kundera, na conversa que teve com Philip Roth, mostra que pensa na mesma direção, acrescentando os nomes de Sterne, Rabelais e Diderot: "Eles foram os maiores experimentadores formais de toda a história do romance. (...) Sterne e Diderot viam o romance como um grande jogo. (...) Quando ouço pessoas argumentando a sério que o romance esgotou suas possibilidades, o que sinto é exatamente o contrário: no decorrer da sua história, o romance deixou de lado muitas possibilidades. Por exemplo, há impulsos para o desenvolvimento do romance ocultos em Sterne e Diderot que não foram explorados por nenhum sucessor" (tradução de Paulo Henriques Britto, Entre nós, Companhia das Letras, 2008, p. 103).

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Dia de finados

Sabina protesta. Diz que os conflitos, os dramas, as tragédias não significam nada, não têm nenhum valor, não merecem respeito nem admiração. O que todo mundo pode invejar em Franz é o trabalho que ele consegue desenvolver em paz.
Franz balança a cabeça: "Numa sociedade rica, os homens não têm necessidade de trabalhar com as mãos e se dedicam a uma atividade intelectual. Existem cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes. Para obter seus diplomas, precisam encontrar temas de dissertação. Existe um número infinito de temas, pois se pode falar sobre tudo. Pilhas de papel amarelado se acumulam nos arquivos, que são mais tristes do que os cemitérios, porque não se vai até eles nem mesmo no dia de Finados. A cultura desaparece numa multidão de produções, numa avalanche de frases, na demência da quantidade. Acredite em mim, um só livro proibido em seu antigo país significa infinitamente mais do que as milhares de palavras cuspidas pelas nossas universidades".
Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. p. 123.

Em outro lugar, Kundera escreve que a palavra intelectual, durante os dias ensolarados do comunismo na Boêmia, era a pior injúria possível. Nenhum personagem carrega a totalidade de suas ideias e crenças - mas é inegável que Kundera coloca em suas bocas reflexões que lhe dizem respeito. Kundera está interessado em investigar as repercussões estéticas do terror, por isso ocupa toda a sexta parte de A insustentável leveza do ser (intitulada "A Grande Marcha") com uma discussão sobre o kitsch - produzindo frases como: "Aquilo a que chamamos 'gulag' pode ser considerado uma fossa séptica em que o kitsch totalitário joga suas imundícies'. Nesse sentido, ainda que não seja desenvolvido em seguida por Kundera, o trecho em que Franz declara que um só livro proibido em seu antigo país significa infinitamente mais do que as milhares de palavras cuspidas pelas nossas universidades coloca uma curiosa armadilha de ordem estética: a valorização imediata de todo objeto artístico que provenha de uma região conturbada. Mais adiante, quando Sabina, a interlocutora de Franz, estiver nos Estados Unidos, sua carreira decolará justamente por isso: os compradores de seus quadros serão aqueles que desejam oferecer algum tipo de reparação àquela vítima (que, por sorte, é uma artista que oferece, com sua produção, essa possibilidade tão palpável de redenção) das atrocidades cometidas no Leste Europeu.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O filho de Stálin

Só em 1980 se soube da morte do filho de Stálin, Iacov, por um artigo publicado no Sunday Times. Prisioneiro de guerra na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, ele ficou no mesmo campo que os oficiais ingleses. Tinham latrinas comuns. O filho de Stálin as deixava sempre sujas. Os ingleses não gostavam de ver as latrinas sujas de merda, mesmo que fosse a merda do filho do homem mais poderoso do universo na época. Chamaram-lhe a atenção. Ficou aborrecido. Repetiram as repreensões e o obrigaram a limpar as latrinas. Ele se irritou, vociferou, brigou. Finalmente, pediu uma audiência ao comandante do campo. Queria que ele fosse o árbitro da discussão. Mas o alemão estava imbuído demais de sua importância para discutir sobre merda. O filho de Stálin não pôde suportar a humilhação. Bradando aos céus palavrões russos atrozes, jogou-se contra os fios de alta-tensão que cercavam o campo. Deixou-se cair sobre os fios. Seu corpo, que nunca mais sujaria as latrinas britânicas, ficou ali dependurado.

Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. Tradução de Teresa Bulhões da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 275.
*
O romance de Kundera investiga o kitsch, e nesse percurso se ocupa também da merda. A merda como tema, como barreira cultural, como tabu. O que torna esse trecho interessante é o substrato geopolítico por trás da discussão sobre a merda - algo que Zizek já anuncia há tempos ao falar da "ideologia das privadas" e dos três sistemas de construção, o alemão (a merda fica exposta para análise antes de ser eliminada), o francês (a merda cai rapidamente no buraco e fica fora de vista) e o inglês/norte-americano (a merda boia na abundância de água). Mas Kundera oferece outro ponto de vista, não só russo, mas também do Leste Europeu - a merda que escapa, que está para além da privada, a merda que se faz visível. Não está só e Kundera, está em Bohumil Hrabal, na cena de Uma solidão ruidosa em que Mancinka mergulha suas fitas na merda sem perceber, e passa a girar e girar no salão, fazendo de si própria uma espécie de chafariz de merda. 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Olhar a História

1) Claudio Magris foi responsável por certa redescoberta da literatura centro-europeia, principalmente a partir dos anos 1960, 1970. Publicou Danúbio, sua obra-prima, em 1986. Dez anos depois, Microcosmos, seu parente menor. Microcosmos parece um exercício de livre associação: nenhuma informação está completa, nenhum personagem é delineado até o fim. O jogo da narrativa está em seus momentos de corte, quando uma cena torna-se a seguinte, quando uma lembrança pessoal torna-se o relato de um fato histórico, etc.
2) Magris circula pelos arredores de Trieste, e está em uma floresta na divisa da Iugoslávia com a Itália. "Nestes bosques pacíficos e apartados da história", ele escreve, "tecia-se, naqueles dias de guerra, uma intrincada rede de esperanças e mentiras, projetos de liberdade e planos de violência totalitária, espírito de sacrifício e de domínio predatório". Magris está falando do momento em que Josip Broz Tito deixou de ser um herói da resistência para tornar-se um ditador.3) Se fosse um livro de Sebald, talvez tivéssemos uma foto do quadro - mas com Magris não é o que acontece. Ele apenas nos conta sobre o quadro que encontrou, "um quadro anônimo cujo comitente, o Partido, jamais foi buscar, e que jaz num sotão de Ilirska Bristica". O quadro mostra Tito e um de seus principais dirigentes, Kardelj, depois de uma caçada: o urso morto está no chão, diante dos dois homens - "não parece morto", escreve Magris, "mas deleitosamente adormecido, e até imaginamos ouvir seu ronco". Magris fala dos olhos do animal: parecem estar entreabertos, como se estivessem espiando, "zombeteiros", o líder da caçada e da política. "O olhar correto sobre a História", completa Magris, "de esguelha e dissimulado".

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O mudo

1) Há uma passagem curiosa em Alvo noturno, na qual Ricardo Piglia está contando a história de Bravo, com sua "face marcada por cicatrizes porque cortara o rosto num acidente de carro" (tenía la cara cruzada de cicatrices, diz o original, bem mais competente). Mas não é a cara de Bravo que interessa, e sim sua habilidade com o jogo de tênis: "tinha tanto talento natural para jogar tênis que o chamavam de Maneta" (tenía tanto talento natural para jugar al tenis que lo llamaban el Manco).
2) Como é seu hábito, Piglia dá uma dimensão documental ao relato, fazendo com que ele escape da página, escape da leitura imediata, e chegue à história corrente - aquele substrato discursivo que molda a vida cotidiana. E Piglia faz isso com um adendo breve entre travessões: tenía tanto talento natural para jugar al tenis que lo llamaban el Manco - como a Gardel lo llaman el Mudo - y, como todo hombre de talento natural, etc. (A tradução: "...o chamavam de Maneta - como chamavam Gardel de el Mudo -..." Companhia das Letras, 2011, p. 107 - tradução de Heloisa Jahn). O que é espetacular, e trata-se de um elemento completamente perdido na tradução, é que Gardel continua sendo chamado el Mudo, mas Bravo não - lo llamaban el Manco, é passado. Um pequeno deslize em uma tradução repleta de furos.
3) A lembrança desse trecho, como costuma acontecer, ocorreu quando entrei em contato com outro texto, completamente alheio ao contexto de Piglia. Está em Microcosmos, de Claudio Magris:
Viajar, como contar - como viver -, é deixar de lado. Um mero acaso leva a uma margem e perde outra. Na ilha dei Belli, "dos Belos", assim chamada devido à proverbial feiura de alguns de seus habitantes, havia, noutros tempos, a velha Bela, uma bruxa que fazia os ventos se levantarem, tornava infrutífera a pesca dos que não fosse gentis com ela e, por motivos semelhantes, parece, certa vez fez precipitar um avião de reconhecimento com um único gesto da mão.
Claudio Magris. Microcosmos. Tradução Roberta Barni. Rocco, 2002, p. 67.
Me regozijo na força estética de uma simples inversão irônica, passada de mão em mão, quem sabe há quanto tempo.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sacalina

O nome da ilha-prisão para a qual viajou Tchékhov é Sacalina - fica no extremo oriental da Rússia, logo acima do Japão. Tchékhov saiu de Moscou no dia 21 de abril de 1890, e só chegou em Sacalina no dia 11 de julho. Atravessou toda a Rússia, numa expedição de aproximadamente 12 mil quilômetros, sem ter certeza se sua entrada na ilha seria autorizada - teve uma reunião com o diretor da administração carcerária, que lhe prometeu uma autorização oficial que nunca chegou a ser emitida. De modo que todo o esforço de Tchékhov poderia redundar, no fim, em fracasso, em retorno de mãos abanando. O trajeto foi interminável: Tchékhov saiu de Moscou de trem, um breve trecho, até alcançar um vapor que desceu o Volga. Depois do Volga, surgiu o Kama, que Tchékhov desceu a bordo do mesmo vapor. Da cidade de Pern, ele prosseguiu de trem através dos montes Urais - e sofreu durante dias sob uma tempestade de neve. Passa por Ekaterinburg, onde aluga uma espécie de carroça e vai até Tiumien, local de saída de outro vapor.
O trajeto de Tchékhov segue as fronteiras ao sul da Rússia. A partir de Tomsk, ele segue mais um bom trecho pela estrada, passando pelo rio Ienissei e depois pelo lago Baikal. No lago Baikal, Tchékhov consegue pegar outro vapor, descendo o rio Amur ao longo da fronteira com a China. Em suas cartas, Tchékhov compara a paisagem inóspita à Patagônia e ao Texas. Em 5 de julho de 1890, o vapor chega a Nicoláievsk, de onde sai a balsa para a ilha de Sacalina.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Um Bartleby no campo de concentração

Tchékhov, na condição de médico, vai visitar uma ilha-prisão [o tipo de lugar aprazível que só os russos conseguem imaginar] na costa oriental da Rússia. Isso acontece em 1890, quando o escritor tinha trinta anos de idade. São poucas semanas de visita, e por isso Tchékhov toma notas de forma febril, observando tudo que pode, recolhendo depoimentos, percorrendo o território a pé, sem descanso. Muitas das histórias que Tchékhov recolhe carregam, sem dúvida, sua marca, ainda que não tenham sido criadas por sua mente - o que mostra que a ficção pode estar, eventualmente, em outro lugar.
Desde sua fundação, a vida em Due manifestou-se de um jeito que só pode ser representado por sons inexoravelmente perversos, desesperados, e pelo impetuoso vento frio, que nas noites de inverno sopra do mar sobre as fendas, o único a poder cantar livremente. Por isso, causa estranheza ouvir esse silêncio ser de repente quebrado pela cantoria de Skandyba, o esquisitão de Due. Trata-se de um forçado, um velho, que desde o primeiro dia de sua chegada a Sacalina recusou-se a trabalhar, e diante de sua invencível obstinação, puramente animal, todas as medidas coercitivas mostravam-se inúteis; foi posto no escuro, foi açoitado inúmeras vezes, mas suportava estoicamente o castigo e depois de recebê-lo exclamava: "Não adianta que eu não vou trabalhar!". Tentaram de tudo com ele e, por fim, desistiram. Agora perambula por Due e canta.
Anton Tchékhov. Um bom par de sapatos e um caderno de anotações. Seleção e prefácio Piero Brunello. Tradução do russo e do italiano Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Martins Editora, 2007, p. 65.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Fricções, 2

De qualquer forma, não fica claro se o suicídio de José Luis Ríos Patrón diante de María Esther Vázquez aconteceu antes ou depois da moça ter conhecido Borges. Edwin Williamson não conseguiu estabelecer a cronologia dos fatos, embora escreva que María Esther, abalada pelo fato, "abandonou seu emprego na Biblioteca Nacional" e, bastante doente, foi passar uns tempos na Europa. Quando voltou, "retomou seu contato com Borges". Williamson deixa nas entrelinhas que foi justamente a história trágica de María Esther que teria despertado o interesse de Borges - claro, nada mais livresco do que um suicídio passional diante da amada. Além disse, Williamson liga a María Esther um dos primeiros momentos em que Borges vai contra a vontade de sua onipresente mãe (Leonor Acevedo Suárez, que viveu até os 99 anos): Borges teria preferido realizar uma viagem à Europa, em 1964, com María Esther e não com sua mãe. Uma vez na Europa (Borges havia sido convidado para falar no Congrès pour la Liberté de la Culture, em Berlim), uma das missões de María Esther (além das corriqueiras: ler, escrever, responder, guiar a mão de Borges para os cumprimentos) foi acompanhar Borges até a costa do mar Báltico - lá, Borges ajoelhou-se na areia e declamou versos sobre os Vikings. Foi nessa viagem que Borges e María Esther criaram a proximidade necessária para os dois livros que viriam - sendo um deles aquele que Compagnon fez referência.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Fricções, 1

Edwin Williamson, um dos biógrafos de Borges (Borges: uma vida, Companhia das Letras, 2011), dedica algumas páginas a Maria Esther Vázquez. Conta a trágica história do suicídio de um de seus namorados: em 1957, inconformado com a recusa diante de seu pedido de casamento, José Luis Ríos Patrón estoura seus miolos diante de María Esther. Williamson não dá o nome do rapaz - menciona apenas sua condição de "jovem crítico" e o fato de ter sido um dos primeiros a publicar um estudo sobre a obra de Borges (Jorge Luis Borges, Buenos Aires, La Mandrágora, 1955). James Woodall, outro biógrafo de Borges (The man in the mirror of the book: a life of Jorge Luis Borges; no Brasil, O homem no espelho do livro, pela Bertrand Brasil), conta a mesma história, também em suas linhas gerais. Foi no mesmo ano em que María Esther conheceu Borges na Biblioteca Nacional. Além da recusa do pedido de casamento (detalhe mencionado apenas por Woodall), os biógrafos mencionam também o fato de José Luis Ríos Patrón estar profundamente enciumado por conta do aparecimento de um "rival" no afeto de María Esther - mas não chegam a levantar a hipótese de que seja justamente Borges o "rival".

sábado, 10 de dezembro de 2011

Fricções

1) Antoine Compagnon, em O trabalho da citação, conta uma história curiosa sobre Borges e uma edição de um de seus livros em francês:
No prefácio da edição de bolso de Essai sur les Anciennes Littératures Germaniques (Ensaio sobre as Antigas Literaturas Germânicas [a informação entre parênteses é dada pela tradutora; o título do livro de Borges é bem mais simples: Literaturas germánicas medievales]), de Jorge Luis Borges (e de M. E. Vasquez, cujo sobrenome não aparece na capa do volume, mas na folha de rosto do livro, precedido apenas das iniciais de seus prenomes), encontra-se a lista das obras do autor (no caso, Borges, estando excluído o seu parceiro) disponíveis em tradução francesa; Uma gralha desastrada modificou o título na primeira linha da lista: Frictions (Fricções), Edições Gallimard. Como não se alegrar com uma sorte dessas, que vem atribuir a Borges um escrito apócrifo, um a mais em sua história? Frictions seria o livro dos livros, que falta na biblioteca de Babel, a teoria geral do livro como citação.
Antoine Compagnon. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice Mourão. UFMG, 2007, p. 56.
2) A história, por si só, já arrasta o leitor para uma infinidade de questionamentos. A forma como ela é contada só acrescenta ainda mais dúvida. Quando Compagnon escreve "M. E. Vasquez", informando que a edição só dá as iniciais desse nome, me parece que ele segue adiante apenas com as iniciais, sem se preocupar em descobrir, afinal de contas, que nomes são esses. Quando Compagnon escreve que Borges tinha um "parceiro", "o seu parceiro", não sei dizer se esse é um erro da tradução ou um desdobramento do primeiro descaso de Compagnon, ou seja, o descaso com as iniciais.
3) Não é muito irônico que, em uma historieta pescada por conta do teor pedagógico de um erro, encontremos mais um erro, dessa vez não de desatenção, mas fruto de um desleixo muito tênue, que se camufla nas comissuras do texto tão ágil de Compagnon? Porque "M. E. Vasquez" é, na realidade, María Esther Vázquez, parceira de Borges em dois livros teóricos (Introducción a la literatura inglesa e o já citado Literaturas germánicas medievales). A "fricção" maior do caso certamente está mais no contato de Borges com María Esther Vázquez do que num erro de digitação - um contato negligenciado por Compagnon, mas que teve grande importância para Borges.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sobre ensinar

1) "Foi T. S. Eliot quem disse que a crítica é tão natural quanto o ato de respirar, e eu acredito nisso", escreve Jay Parini, e continua: Quando leio alguma coisa, quero falar sobre ela. Quero compará-la com outros textos. Quero comparar minha própria voz com a voz do texto. Isso está num livro publicado por Parini em 2005, e editado no Brasil em 2007: A arte de ensinar. Tem histórias interessantes, apesar do título piegas.
2) Parini dá atenção especial aos escritores que foram (que são) também professores. Ele conta uma história sobre o poeta Robert Frost:
Em 1976, entrevistei John Dickey, que era presidente de Dartmouth quando Frost ensinava lá, na década de quarenta. Ele lembrou que "Frost entrou na sala, no início do período, e perguntou aos estudantes, que haviam acabado de fazer seus primeiros trabalhos, se alguém tinha escrito qualquer coisa que conseguiria defender apaixonadamente. Como ninguém levantou a mão, ele prontamente arremessou todos os trabalhos na cesta de lixo e abandonou a sala, dizendo que voltassem para a aula seguinte com alguma coisa que pudessem defender apaixonadamente". Nesta nossa época de educação dirigida para o consumo, quando os professores estão frequentemente aterrorizados pelas avaliações dos alunos (das quais depende sua carreira), alguém dificilmente pode imaginar que tal cena possa acontecer, por mais instrutiva que seja.
Jay Parini. A arte de ensinar. Tradução de Luiz Antonio Aguiar. Civilização Brasileira, 2007, p. 109.

3) Há também uma piada sobre Harold Bloom:
Há, entretanto, um certo espetáculo na superprodução. Fico fascinado por pessoas como Harold Bloom, que podem apresentar grandes e complicados livros todos os anos, durante muitas décadas, sem demonstrar cansaço. Há uma velha piada, sem dúvida apócrifa, que é mais ou menos assim: um estudante toca a campainha da casa do Professor Bloom em New Haven. Ele pede para ver o Professor Bloom. "Sinto muito", diz a Sra. Bloom, "mas Harold está escrevendo um livro". "Tudo bem", responde o estudante. "Eu espero".
A arte de ensinar. p. 114. Grifo meu.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A potência do falso

Sonho com um livro que seja um longo inventário do tema da falsidade na literatura: apócrifos, embustes, farsas, falsas assinaturas, encontros impossíveis, todos esses procedimentos que mesclam fato e fantasia. Uma das figuras de frente desse livro imaginário seria Ermes Marana, o tradutor que, em Se um viajante numa noite de inverno, funda a Organização do Poder Apócrifo, dedicada ao culto dos livros secretos, a favor de uma literatura de imitações, contrafações e mistificações. É importante lembrar também F for Fake, de Orson Welles, e a fantástica reconstrução que Martín Caparrós faz do roubo da Monalisa (1911) em Valfierno. Certamente uma seção reservada ao Livro dos peixes de William Gould, de Richard Flanagan, sobre o falsário que inventou a fauna aquática da Austrália durante uma temporada na prisão. Mas ainda preciso ler melhor Peter Carey: dois de seus livros são sobre o tema da falsificação, Minha vida, uma farsa, de 2003, e Roubo: uma história de amor, de 2006. Como já foi esboçado em outro lugar, há muito espaço nesse livro-por-vir para Duchamp, César Aira, Roberto Arlt e outros nomes já conhecidos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Um sujeito estranho

Há um ensaio de Thomas Mann sobre Dostoiévski (incluído no recente e excelente volume O escritor e sua missão) no qual o escritor alemão comenta a fixação que Dostoiévski tinha com o motivo da violência sexual contra crianças. "Ao que tudo indica", escreve Mann, "essa transgressão vil ocupou constantemente a fantasia moral do escritor". Mann também conta que, certa vez, Dostoiévski teria confessado um "pecado pessoal desse tipo" ao colega Turguêniev, "certamente uma confissão inventada", escreve Mann, com o objetivo de "assustar e confundir Turguêniev", de quem Dostoiévski não gostava. E Mann escreve mais:
Certa vez, em Petersburgo, quando tinha por volta de quarenta anos e já era o festejado autor de um livro que teria feito o próprio czar chorar [trata-se de Recordações da casa dos mortos], rodeado de uma família na qual havia crianças e jovens moças, ele contou sobre um plano literário de sua juventude, um romance em que um senhor feudal, um homem remediado, honorável e agradável, subitamente se lembra de que, vinte anos antes, após uma noite de bebidas e atiçado por amigos ébrios, teria violentado uma menina de dez anos.
"Fiódor Mikhailovich!", exclamou a mãe, juntando as mãos por cima da cabeça. "Tenha piedade, pelo amor de Deus! As crianças estão escutando!".
Deve ter sido um sujeito estranho, esse Fiódor Mikhailovich.

Thomas Mann. "Dostoiévski, com moderação".
O escritor e sua missão. Zahar, 2011, p. 120.