Sabina protesta. Diz que os conflitos, os dramas, as tragédias não significam nada, não têm nenhum valor, não merecem respeito nem admiração. O que todo mundo pode invejar em Franz é o trabalho que ele consegue desenvolver em paz.Franz balança a cabeça: "Numa sociedade rica, os homens não têm necessidade de trabalhar com as mãos e se dedicam a uma atividade intelectual. Existem cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes. Para obter seus diplomas, precisam encontrar temas de dissertação. Existe um número infinito de temas, pois se pode falar sobre tudo. Pilhas de papel amarelado se acumulam nos arquivos, que são mais tristes do que os cemitérios, porque não se vai até eles nem mesmo no dia de Finados. A cultura desaparece numa multidão de produções, numa avalanche de frases, na demência da quantidade. Acredite em mim, um só livro proibido em seu antigo país significa infinitamente mais do que as milhares de palavras cuspidas pelas nossas universidades".
Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. p. 123.
Em outro lugar, Kundera escreve que a palavra intelectual, durante os dias ensolarados do comunismo na Boêmia, era a pior injúria possível. Nenhum personagem carrega a totalidade de suas ideias e crenças - mas é inegável que Kundera coloca em suas bocas reflexões que lhe dizem respeito. Kundera está interessado em investigar as repercussões estéticas do terror, por isso ocupa toda a sexta parte de A insustentável leveza do ser (intitulada "A Grande Marcha") com uma discussão sobre o kitsch - produzindo frases como: "Aquilo a que chamamos 'gulag' pode ser considerado uma fossa séptica em que o kitsch totalitário joga suas imundícies'. Nesse sentido, ainda que não seja desenvolvido em seguida por Kundera, o trecho em que Franz declara que um só livro proibido em seu antigo país significa infinitamente mais do que as milhares de palavras cuspidas pelas nossas universidades coloca uma curiosa armadilha de ordem estética: a valorização imediata de todo objeto artístico que provenha de uma região conturbada. Mais adiante, quando Sabina, a interlocutora de Franz, estiver nos Estados Unidos, sua carreira decolará justamente por isso: os compradores de seus quadros serão aqueles que desejam oferecer algum tipo de reparação àquela vítima (que, por sorte, é uma artista que oferece, com sua produção, essa possibilidade tão palpável de redenção) das atrocidades cometidas no Leste Europeu.
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