terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Markson, Sócrates

Markson começa Wittgenstein's Mistress com três epígrafes: a primeira de Kierkegaard, a segunda de Bertrand Russell e a última do próprio Wittgenstein (a única delas que não é técnica, é quase já uma anedota, um biografema, dizendo: Entendo muito bem a razão das crianças adorarem areia). A frase de Russell, no entanto, também não chega a ser técnica, embora envolva certo juízo e prepare o caminho para o enigma da frase seguinte de Wittgenstein - Russell relata que pediu referências de Wittgenstein a G. E. Moore, que teve uma impressão positiva porque Wittgenstein se mostrava puzzled durante suas aulas (perplexo? reflexivo? incrédulo? impressionado?). Wittgenstein é introduzido como portador de uma qualidade de fazer-se ver, de uma espécie de ligação entre semblante e pensamento (o que é importante em um romance que faz contínuas referências ao "autorretrato"; a narradora de WM inclusive retorna algumas vezes à declaração biográfica de que era possível ver Wittgenstein pensando, seu esforço, suas feições transtornadas).
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Kierkegaard é mencionado por Lukács em seu ensaio sobre o ensaio - sobre a essência e a forma do ensaio -, posto lado a lado com Montaigne e Platão como um dos três maiores realizadores do gênero. Markson propõe a ligação entre Kierkegaard e Wittgenstein, sublinhando a eloquência gestual deste último. Lukács aproxima Kierkegaard e Platão por conta do estilo e da vastidão de seus imaginações, o que me faz recordar mais uma vez o ensaio de George Steiner:
Com uma arte perfeitamente comparável à de Shakespeare ou Dickens, os diálogos de Platão realizam a mediação corporal de todo discurso articulado. A bem conhecida feiura de Sócrates, sua incrível resistência física nas batalhas ou bebedeiras, sua retórica gestual e sua gestão dos tempos de repouso, a alternância dos passeios e das pausas, encarnam o advento do argumento e do sentido. A brusca mudança de atitude de Sócrates, de repente absorto em profunda reflexão, num momento despropositado e num local inapropriado, é tão essencial à aplicação de seu ensinamento quanto as palavras efetivamente pronunciadas (p. 78-79).
Em outras palavras, era possível ver Sócrates pensando. O Wittgenstein de Markson é bastante semelhante a esse Sócrates que Steiner vê em Platão, ensinando de forma gestual, com atitudes e posturas por vezes absurdas, relembrado por sua intransigência, por sua autenticidade de comportamento (como Italo Calvino escreve no ensaio "Por que ler os clássicos?", citando Cioran e sua anedota sobre Sócrates, que decidiu aprender uma ária na flauta antes de morrer - por quê?, perguntam; ora, para aprender uma ária na flauta antes de morrer). Essa carga gestual de Sócrates, tão enfatizada por Steiner, também foi enfatizada no neoplatonismo do Renascimento italiano, tão profundamente atento à sobrevivência dessas formas que permitem a ligação entre semblante e pensamento (as fórmulas de pathos de Warburg).  

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