sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Cronotopo, século XIX



1) O ensaio de Benjamin sobre Proust ("A imagem de Proust", 1929) termina com uma sobreposição de visões: Benjamin aproxima a visão de Proust deitado em sua cama, escrevendo freneticamente, à visão de Michelangelo deitado nos andaimes enquanto pintava o teto da Capela Sistina. Ele parece reservar para o final, estrategicamente, "a imagem de Proust", uma imagem impura, dialética, na medida em que faz pensar em diferentes associações (o tempo do trabalho, a solidão, a grandiosidade) e leva a múltiplas direções simultaneamente (a sobreposição é um corolário da fórmula expressa por Benjamin um pouco antes, "ver e desejar imitar eram a mesma coisa").

2) Se Michelangelo está para Proust, a Recherche está para a Capela Sistina. Eis a doutrina das semelhanças, das correspondências que não se dão de imediato, que não se oferecem pacificamente (devem ser forçadas manualmente). É o trabalho que Proust faz a partir de Baudelaire e para além dele, escreve Benjamin - é Proust quem torna o século XIX visível, possível, inteligível, justamente quando ele não existe mais (especialmente porque ele não existe mais). É só a partir de Proust e da reconfiguração de espaço-tempo feita por ele que o século XIX pode ser "partilhado" (e disso decorre a possibilidade de Paris ser a "capital do século XIX"). Benjamin escreve que Proust transforma o século XIX em um "campo de forças" (já não é mais uma "simples época").

3) Essa ideia de Benjamin repercute em um ensaio de Hayden White de 1987 intitulado "O século XIX como cronotopo", no qual ele tenta o mesmo gesto: pensar a passagem do século XIX de uma "simples época" para um "campo de forças" (fazendo uso da categoria de Bakhtin). Aquilo que Benjamin faz de forma por vezes intuitiva (e com o foco restrito a um único autor), White tenta fazer de forma ampla, estrutural (aproveitando o trabalho já feito por Fredric Jameson em O inconsciente político, que cita, especialmente quando Jameson fala do cronotopo de Bakhtin como uma condensação das dimensões espaciais, temporais e socio-culturais, manejando tanto a persistência do antigo hegemônico quanto a ressurgência de conteúdos políticos latentes, subterrâneos, soterrados).

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