quarta-feira, 13 de março de 2013

Avenida Niévski, 3

1) Os corpos na avenida Niévski, indo e vindo. O corpo da linda moça que o pintor Piscariov deseja e que persegue. Os corpos no prostíbulo, "repugnante antro" de "depravação deplorável", demais para a sensibilidade do jovem Piscariov. Os corpos no sonho, dançando com cortesia e decoro: "ombros reluzentes das damas e os fraques pretos, os lustres, as lâmpadas, as gazes vaporosas que esvoaçavam, as fitas etéreas e o gordo contrabaixo que assomava por trás do parapeito do magnífico balcão, tudo era esplêndido para ele". Mas é o corpo de Piscariov que acorda, de repente, descobrindo a farsa - "pareceu-lhe que algum demônio esmigalhara o mundo inteiro em muitos pedaços diferentes e juntara todos esses pedaços sem nenhum sentido, sem nenhum tino".
2) No fim, o corpo morto de Piscariov no chão, a garganta aberta por sua própria navalha. "Ninguém chorou por ele", escreve Gógol, "ao lado do corpo sem vida, não se via nenhuma pessoa além da habitual figura do inspetor de polícia do quarteirão e da carranca indiferente do médico legista". A modernidade como cena do crime (que é o tema central de Kusniewicz, como visto aqui). Não é por acaso que os únicos que acompanham o cadáver sejam os representantes da medicina e da polícia - os responsáveis pelo manejo dos dispositivos de medição, análise e contenção dos corpos. 
3) Esse controle, que Gógol condensou na breve cena de um corpo morto na avenida Niévski, ganharia proporções imensas com o passar do tempo. Pouco mais de cem anos depois, em 1940, o assassinato de Issac Bábel coroaria essa progressão. Bábel, assim como Gógol, era um artista aberto ao mundo e aos fluxos heterogêneos de outras geografias. Aquilo que a Itália foi para Gógol, a França foi para Bábel - seus primeiros contos foram escritos em francês, língua que Bábel traduzia ao russo. Um de seus melhores contos é justamente sobre uma tradução de Guy de Maupassant (e o conto leva como título o nome do escritor francês). Do cadáver de Piscariov ao corpo fuzilado de Bábel, uma linha tortuosa que mostra o absurdo crescimento do controle e de seus procedimentos de nacionalização e purificação das artes.         

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