domingo, 28 de abril de 2013

Valéry, marinheiro

1) Não é possível dizer que foi por ter segurado o crânio de Descartes que Paul Valéry pôde escrever Monsieur Teste - história e personagem já pertenciam ao imaginário de Valéry muito antes da literal emergência do crânio das águas, em 1910. Na primeira linha de seu ensaio sobre Valéry (1931, em homenagem ao seu sexagésimo aniversário), Walter Benjamin afirma que o poeta "outrora desejava ser um comandante naval", um marinheiro. "Elementos desse sonho juvenil ainda podem ser rastreados em sua poesia", escreve Benjamin. Não é curioso que esse poeta que desejava ser marinheiro pegue nas mãos o crânio de Descartes depois de devolvido pelas águas? Não é curioso que no mesmo livro em que Sebald fala do crânio de Thomas Browne e da presença deste e de Descartes no quadro de Rembrandt, ou seja, em Anéis de Saturno, também aí Sebald comente a vida de Joseph Conrad e seu juvenil desejo de também ele se tornar marinheiro? (não esqueça do encontro de Conrad com Valéry em 1922).
2) Para Benjamin, o marinheiro-Valéry permanece no poeta-Valéry não apenas pelas razões mais óbvias de temas e nomeações (O cemitério marinho), mas pela verticalidade do mergulho, pela pressão, pela condensação, pelo rigor (Valéry como o caçador dos detalhes - curioso que Georges Didi-Huberman fala de Warburg como "detetive do mar", "pêcheur de perles", pescador de pérolas; e mais: parte de sua inspiração vem de um ensaio de Hannah Arendt sobre Benjamin). E ainda para Benjamin o monsieur Teste é o exemplo perfeito para essa visão de Valéry: o puro pensamento, a pura cabeça, o puro raciocínio, a depuração da linguagem em um sistema de equivalências rigorosas (mas que, curiosamente, só ganham vida na associação livre da digressão).
3) E Benjamin, evidentemente, é preciso ao demarcar o exercício de Valéry como uma prospecção radical do legado de Descartes. Larvatus prodeo - mascarado também avança Valéry e Teste: no fragmento "Para um retrato de Monsieur Teste", Valéry escreve que ele é "o Demônio dos possíveis ordenados" (relembrando a vocação demoníaca do larvatus), que "entra e impressiona todos os presentes com sua 'simplicidade'", "alma oculta" de um "teatro mental" (Monsieur Teste, tradução de Cristina Murachco, Ática, 1997, p. 110-113). A consciência como teatro, a identidade como representação, multiplicação, tarefa sem fim. Já não foi dito que o cenário de Fim de partida, de Beckett, se assemelha muito com o interior de um crânio, com suas duas janelas altas servindo como olhos?

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