sexta-feira, 19 de abril de 2013

Que tipo de animal ele era?

Van Gogh, Vaca deitada, 1883, detalhe
1) De tudo que fala Derrida sobre van Gogh retenho ainda a questão da multiplicidade, da variabilidade. Ser tudo, ser de tudo, ser em tudo - o artista como camponês, como sapato, como girassol, como peregrino, como mutilado. Há algo de inquieto em sua poética que o leva às mais variadas posições, mas que são costuradas a partir um conjunto de procedimentos (uma pulsão) que se repete (a pincelada, a ondulação, o choque das cores). O que hoje poderia se aproximar dessa postura é a escrita de Coetzee, numa espécie de atualização decantada da movimentação estética de van Gogh - sem arroubos, só a obsessão.
2) Que tipo de animal ele era?, pergunta outro Vincent, o biógrafo de Verão, aquele que vasculha a vida de um Coetzee já morto. "Ele não era nenhum tipo de animal", responde Julia, "e por uma razão muito específica: a capacidade mental dele e especificamente as suas faculdades de ideação [ideational faculties] eram superdesenvolvidas, à custa do seu ser animal". Talvez outra leitura seja possível: é justamente por conta de suas faculdades de ideação que Coetzee consegue se multiplicar - como mulher, como Defoe, como homem da fronteira do século XVIII, como animal, como Dostoiévski. Talvez essa capacidade seja reforçada pelo cultivo de uma personalidade tão equilibrada, de pouquíssimos desvios e sobressaltos.
3) É o que diz Julia: "o projeto de vida dele era ser gentil", afastar a interferência dos excessos, "direcionar tudo para a escrita, que consequentemente iria se transformar em uma espécie de exercício catártico sem fim". Ele tinha decidido que ia impedir impulsos violentos e cruéis em todos os campos da vida. Julia diz que John era "radicalmente incompleto". Para Coetzee, afirma Julia, escrever é "um gesto de recusa diante da época", uma inadequação, uma inquietude. Coetzee, finalmente, esse Coetzee de Verão, já morto, era compulsivo como van Gogh, "um trabalhador obsessivo". "Se eu ceder à sedução de não trabalhar, o que eu faria comigo mesmo? Que razão haveria para viver? Eu teria de me matar", teria dito Coetzee, afirma Julia. Há algo de perverso nessa multiplicidade tão rica e fascinante que só pode ser alcançada através de um apagamento, de uma negação, de um esvaziamento, de uma recusa veemente.     

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