terça-feira, 30 de abril de 2013

Beckett: Descartes

1) Ainda o crânio de Descartes, o cogito que Paul Valéry segura em suas mãos, como uma relíquia, um talismã, que contamina de certa forma a leitura de Monsieur Teste, cabeça e texto, razão e método. É Eugene Webb, em livro de 1974 (The Plays of Samuel Beckett), quem fala do cenário de Fim de partida como o interior do crânio "de um indivíduo que fechou seus olhos para o mundo". A desolação exterior de Godot é agora transposta para uma vivência claustrofóbica, solipsista. Mas essa perspectiva se espalha por toda a obra de Beckett, incluindo toda uma vertente de estudos que o aproximam de Descartes - tudo começou com Samuel Mintz, Beckett's Murphy: a Cartesian Novel (1959). 
2) Parece que Beckett gostava de jogar com as ideias de Descartes, tomando sua exposições didáticas ao pé da letra e construindo situações absurdas. Em outras palavras, Beckett estava interessado em ler o Discurso do método como ficção - uma ficção na qual a retórica cria a realidade. Se lembrarmos de Dias felizes, por exemplo, peça de Beckett de 1961, veremos Winnie enterrada até o pescoço, mostrando apenas sua cabeça - uma imagem possível da separação cartesiana entre mente e corpo (mas Beckett vai além, ele suprime o corpo, dissolve o corpo, o que é impensável para Descartes, que via a máquina humana como uma articulação entre mente e corpo).
3) É possível inclusive dizer que, para Beckett, tudo começou com Descartes. Para Beckett, tudo começou com Whoroscope, um longo poema escrito em inglês, mas publicado em Paris por The Hours Press (um pequena casa editorial que contava com um concurso literário, que naquele ano foi vencido por Beckett). O personagem principal é Descartes (Beckett avisa nas notas), que medita sobre o tempo (tema do concurso) em algo que lembra um fluxo de consciência mesclado a comentários culinários, geográficos, teológicos e retóricos (e pode ser lido aqui). Entre outras aparições ilustres no poema de Beckett, está Frans Hals (Who’s that? Hals?/ Let him wait), o pintor responsável por aquele retrato de Descartes que Paul Richer usou como modelo para sua "reconstrução em camadas". É de notar também que Whoroscope é produzido por Beckett simultaneamente ao seu estudo sobre Proust, que é, também ele, um livro sobre o tempo.
     

2 comentários:

  1. Na verdade, o diálogo não é com O Discurso, mas com as Meditações, especialmente o intervalo entre a primeira e a segunda.

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  2. Que blog ótimo. Caí aqui procurando leituras sobre o tema. Por acaso você tem o pdf do texto do Samuel Mintz? Obrigada.

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